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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Março 29, 2024

Sentar com o outro à mesa

Miguel Marujo

 

the-old-oak.jpegO Pub The Old Oak: retrato de uma cidade mineira deprimida, com o desemprego a ocupar os dias dos seus habitantes e a especulação imobiliária a invadir as suas casas. Foto: Direitos reservados.

 

 

Anda por aí um livro que nos convida a sentar à mesa, a partir dos textos bíblicos. A Mesa de Deus (de Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti, Quetzal Editores) é, segundo escreve José Tolentino Mendonça, no prefácio, uma oportunidade para “entrar na Bíblia pela porta da cozinha”. “É um argumento mais sério do que se possa supor. E também mais espiritual.”

Façamos a vontade ao poeta e cardeal, que sintetiza o livro com uma bela definição: “Um livro de espiritualidade bíblica, um compêndio de exegese, uma refeição da Palavra.” Entremos então pela cozinha, saboreando as palavras, olhando uns e outros, neste caso, com as falas e os gestos de dois filmes, muito diferentes no tempo e no modo, que fazem da mesa um ponto de encontro entre iguais e diferentes, de aceitação do outro.

A Festa de Babette (1987) é a história de uma mulher francesa, fugida do seu país, que encontra refúgio numa remota comunidade nórdica, na casa de duas mulheres solteiras, anos depois da morte do pai delas, um homem que tinha fundado uma seita religiosa puritana, e onde o prazer era uma palavra proibida.

Aproximando-se o centenário do nascimento do pastor, Babette recebe a notícia de que ganhou a lotaria, no valor de 10 mil francos, e oferece-se para preparar o jantar de celebração dessa data, “um autêntico jantar francês”. Herdeiras da austeridade do pai, as filhas apenas tinham planeado servir “uma comida modesta” e uma chávena de café e não aceitam a oferta. “Nunca oferecemos outra coisa”, argumentam. Acabam por aceitar o pedido “do coração” daquela mulher francesa, que as ajudava a servir e a cuidar dos velhos da aldeia.

Perante a chegada da mercadoria com os ingredientes (quase exóticos, para aquelas paragens e bocas, como codornizes e tartaruga, ou vinho) para o jantar, as filhas do pastor convocam a comunidade para lhes contar que não pretendiam fazer nada de mal e que só queriam agradar a Babette. “Agora estamos expostos a forças perigosas, talvez forças do mal. Nem lhes posso contar o que nos dará para comer e beber.” O medo instala-se entre os crentes. “O que nos vai acontecer? Senhor, concedei-nos a vossa misericórdia.” E ali estabelecem um pacto, de que não dirão uma só palavra sobre o que comerem e beberem. “Será como se não tivéssemos o sentido do paladar.”

 

Festa de Babette.jpgA Festa de Babette: “Será como se não tivéssemos o sentido do paladar”, diz uma das personagens.
Foto: Direitos reservados.

 

À mesa, a descoberta de sabores, aromas e sensações desconhecidas é um acontecimento, que em nada põe em causa a sua fé. Afinal, aquele jantar é um ato de amor fraterno, como exultou também o Papa Francisco, que incluiu este filme de Gabriel Axel entre os seus favoritos, e que o leva mesmo a citá-lo na encíclica Amoris Laetitia: “As alegrias mais intensas da vida surgem, quando se pode provocar a felicidade dos outros, numa antecipação do Céu. Vem a propósito recordar a cena feliz do filme A Festa de Babette, quando a generosa cozinheira recebe um abraço agradecido e este elogio: «Como deliciarás os anjos!» É doce e consoladora a alegria de fazer as delícias dos outros, vê-los usufruir delas. Este júbilo, efeito do amor fraterno, não é o da vaidade de quem olha para si mesmo, mas o do amante que se compraz no bem do ser amado, que transborda para o outro e se torna fecundo nele.” (nº 129)

A fecundidade daquela refeição é a fecundidade que encontramos num filme bem distinto — e muito atual. O Pub The Old Oak (2023), de Ken Loach, traça o retrato de uma cidade mineira deprimida, com o desemprego a ocupar os dias dos seus habitantes e a especulação imobiliária a invadir as suas casas. O filme arranca com a chegada de refugiados sírios a essa cidade na costa do Nordeste da Inglaterra — e sente-se a hostilidade de parte da comunidade. Há tensão e um forte discurso xenófobo e, logo ali, sente-se que o tema divide amigos, vizinhos e conhecidos.

O pub do título é o lugar que resta numa terra onde tudo desapareceu. Mas até The Old Oak sofre das agruras do tempo e da escassez de clientes, o que não impede o seu proprietário de tentar ajudar os que mais precisam, recebendo a ajuda dos refugiados sírios. Estes sentem-se agradecidos pelo acolhimento na cidade, apesar da hostilidade com que são tratados, e querem retribuir preparando refeições (também cozinhados seus) para quem não tem de comer. Um gesto que comove, e que faz aproximar estranhos, apesar de, como desabafa uma das personagens, ser “a esperança que causa tanta dor”.

Um e outro filme sentam-nos à mesa com o estrangeiro, com a diferença, nos pratos e nos paladares, confrontando aquelas gentes com as certezas muito arrumadas das suas vidas, seja a aldeia austera e puritana da dinamarquesa Jutlândia, seja a comunidade de desempregados e pobres da Inglaterra. Um e outro filme fazem da mesa espaço de partilha, que remove desconfianças e tensões. Talvez seja mesmo pelo estômago que devemos começar, fazendo da refeição da Palavra o tempo certo para o acolhimento.

 

Foto de <a href="https://unsplash.com/pt-br/@roby54?utm_content=creditCopyText&utm_medium=referral&utm_source=unsplash">Roberto Patti</a> na <a href="https://unsplash.com/pt-br/fotografias/nozes-marrons-ao-lado-de-frutas-de-roma-a-bordo-weravkagvgE?utm_content=creditCopyText&utm_medium=referral&utm_source=unsplash">Unsplash</a>

“Entrar na Bíblia pela porta da cozinha é um argumento mais sério do que se possa supor”, defende Tolentino Mendonça. Foto de Roberto Patti na Unsplash.

[artigo originalmente publicado no PontoSJ, no dia 15 de março de 2024]

Março 04, 2024

Este espelho é pouco meigo. E gostamos disso

Miguel Marujo

Cara-de-Espelho-em-concerto-no-Theatro-Circo-em-Br

 

Entre o fadistão e o corridinho, até nesta música há lugar para o filho da mãe, que aqui se chama Dr. Coisinho, e a letra é contrassenha para sorrisos e uma música que renova a linguagem da intervenção. Cara de Espelho é o novo projeto, que se estreou em disco em janeiro e, em palco, no sábado, 24 de fevereiro, em Braga, na bela sala do Theatro Circo, reunindo alguns dos nomes mais importantes da música portuguesa. Seguiu-se Loulé, agora apresenta-se em Lisboa e depois será a vez do Porto.

Cara de Espelho, nome também do disco, é antes de mais um manifesto, nestes tempos de populismos e extremismos à direita, sem medo de jogar com as palavras e as metáforas, onde se reconhecem atores e políticas que ameaçam direitos e liberdades. Sem medos. Corridinho Português canta o óbvio: “Separando o africano do cigano/ Do chinês, do indiano, ucraniano,/  muçulmano, do romeno ou tirolês/ Como vês/ Sobra muito, muito pouco português, ó pá// Separando o cristão do taoista,/ do judeu do islamita, do ateu ou do budista,/ do baptista mirandês/ Como vês/ Sobra muito, muito pouco português, ó pá”.

Sobra muito do que é isto tudo, os portugueses ao espelho, genuínos, como se canta em Genuinamente, “O bacalhau tão soberano/ Afinal vem da Noruega/ Nem batata, nem azeite/ São de origem cá da terra/ E quem canta o nosso hino/ Será que já viu o nome/ Alemão que o compôs/ Ou que o galo de Barcelos/ Um galego inventou/ Reformula então bem isso”. Não há “português de bem” que não fique de orelhas a arder.

Esta música que é de intervenção nas palavras, também se faz no som, com sabores bebidos na pop, na tradição popular e com pitadas do Brasil e das Áfricas, numa reinvenção que nada deve a saudosismos. Não é de espantar: este supergrupo junta gente que esteve nos Gaiteiros de Lisboa, em A Naifa e Señoritas, Deolinda, Ornatos Violeta e Humanos, experiências e projetos que, na medida justa, contribuíram para algumas belas páginas da música portuguesa.

As canções nascem da pena de Pedro da Silva Martins, também na guitarra, o autor do hino da geração lixada pela troika, que foi Parva que sou, dos Deolinda (2011), e logo se percebe de onde vem a verve cáustica e humorada, irónica e crítica, de cada uma das 12 canções do disco (e dos novos temas levados ao palco). Juntam-se o saber e a voz dos instrumentos criados por Carlos Guerreiro, o baixo de Nuno Prata, as guitarras de Luís J. Martins, as percussões de Sérgio Nascimento (a quem se deve a ideia de um grupo assim), e Maria Antónia Mendes, na voz, ela que é das vocalistas que melhor trata a língua portuguesa.

Em palco, o álbum ganha outra solidez (e o que vimos em Braga foi a estreia absoluta ao vivo), com a banda a ensaiar-se em cinco novos temas (D de denúncia, Roda do crédito, Já vou, O que esta gente quer?, e Aldeia fantasma) que mantêm a língua afiada e as canções sintonizadas numa paleta de soluções musicais criativas e, simultaneamente, tão próximas de quem ouve. Um reflexo feliz. “Nós somos os Cara de Espelho e estamos aqui para vos refletir. Sempre”, como atirou Maria Antónia para o público.

Maria Antónia ganha o palco e o público sem maneirismos desnecessários, nem apresentações a mais, tudo no tempo e modo certos, para saciar um público que talvez anseie por quem cante contra ventureiros de falsas ilusões e ódios exacerbados ou que ouve ali, em primeira mão, dignos herdeiros da melhor música de intervenção (sem pudor da palavra) de José Afonso, José Mário Branco, Sérgio Godinho, Fausto ou Adriano Correia de Oliveira, entre outros.

Se cada canção é o reflexo das virtudes ou defeitos, das fraquezas, dos pequenos ou grandes poderes, dos tiques, dos vícios, disto que é ser cidadão ou, no sentido lato, do que é ser humano, como é apresentado este projeto, gostamos de nos olhar ao espelho.

 

 

 

Próximos concertos:
4 e 5 de março, segunda e terça: Lisboa – Teatro Maria Matos
16 de março, sábado: Porto – Casa da Música

[artigo originalmente publicado no 7Margens, a 1 de março de 2024; foto © Adriano Ferreira Borges/Theatro Circo]

Março 01, 2024

A tragédia do autocarro que é a tragédia de dois povos

Miguel Marujo

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Um dia na vida de um pai à procura do filho que seguia num autocarro que sofreu um acidente é uma síntese aparentemente banal de uma história trágica e pessoal. Seria o caso de Um Dia na Vida de Abed Salama, não fosse Abed um palestiniano residente na Cisjordânia, Palestina. À tragédia pessoal de Abed, do seu filho Milad, da sua família e de todos os que têm filhos e familiares naquele autocarro, junta-se uma tragédia maior: a de viverem num território esquartejado por um muro e postos de controlo, entrincheirados ao sabor de bilhetes de identidade que definem por onde circularem, que escolas frequentarem e a que hospitais recorrerem. 

Um Dia na Vida de Abed Salama – Anatomia de uma Tragédia em Jerusalém é uma notável reportagem – da autoria do jornalista americano Nathan Thrall – vertida em livro e que nos leva a percorrer as ruas de angústia, num dia de fevereiro de 2012, de uma forte tempestade, com muita chuva, por entre “um labirinto de obstáculos físicos, emocionais e burocráticos”, na síntese certeira da contracapa do livro. 

Abed está do lado do muro em que todas as coisas se complicam, em que percorrer escassas centenas de metros é um calvário moderno de ódio, racismo ou de fria burocracia a condicionar a vida de todos: na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, no amor e no divórcio. 

Este livro atual, publicado nos inícios de outubro do ano passado (em simultâneo nos EUA e em Portugal) ganhou uma maior acuidade com os ataques do Hamas a 7 de outubro de 2023, lançando para o abismo dois povos vizinhos e inimigos, numa espiral que parece longe de qualquer fim, e mais ainda de qualquer centelha de paz. 

Os dias do livro são os dias das intifadas, a primeira e a segunda, quando os jovens palestinianos lançaram mão de pedras para lutar contra a presença israelita cada vez mais asfixiante nos territórios ocupados da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. 

Nisso, o relato de Nathan Thrall é de uma secura extraordinária: por entre a trágica história particular de Abed, o jornalista americano tece com paciência e muita informação aquilo que é um conflito de décadas. Vai à História para nos dar as histórias do quotidiano de milhões de palestinianos, que vivem uma tragédia coletiva que se repete, num ciclo obsceno de violência. Em abril de 1948, recorda Thrall  ao contar-nos a vida de pessoas que vão surgindo naquele dia do acidente –Milad“bombardearam as casas palestinianas e os mercados da Baixa. Haifa sucumbiu em apenas um dia”. Através da rádio e de altifalantes, foram dadas instruções para uma evacuação imediata. Parece-se demasiado com as notícias daquelas semanas de outubro e novembro de 2023, e que se prolongam por 2024.

O destino de Milad continua suspenso, ao longo de páginas em que se narra a história do seu pai, da família de Abed, de como as terras dos Salama foram sendo ocupadas para ali se instalarem colonos israelitas, de como o jovem Abed amava Ghazi mas casou com Haifa e Asmahan, de como foi militante da Frente Democrática para a Libertação da Palestina (FDLP), a ala marxista-leninista da Organização para a Libertação da Palestina (OLP)  e estas siglas parecem-nos viver numa cápsula do tempo já distante.

Nathan Thrall traça nestas páginas os caminhos sinuosos que vão marcando a vida do povo palestiniano e dos seus vizinhos israelitas, entre a breve esperança dos Acordos de Oslo, o rápido desencanto de uma cada vez mais intensa ocupação, e as circunstâncias das vidas que lutam todos os dias. Também por causa do seu ativismo Abed será preso e torturado, e passa por Naqab, uma prisão onde se amontoam “jornalistas, advogados, médicos, professores, estudantes, sindicalistas, líderes da sociedade civil, defensores da não-violência, membros de grupos de diálogo entre Israel e OLP, que eram ilegais”, num retrato de como todo um país luta contra o opressor. Com pedras na mão, ou bombas, com diálogo ou com a não-violência: todos são metidos no mesmo saco.

Já o pequeno Milad, 5 anos, sonhava com aquela viagem a um parque temático nos arredores de Jerusalém, e implorou aos pais para poder ir na visita. Os pais de Milad acederam, como outros, reticentes à última hora, por causa da tempestade daquela manhã que assustava muito.

A chuva que não parava de cair, não lavou a memória da tragédia. Kayed divorciou-se de Nansy, culpando-a pela morte de Salaah. Todas aquelas famílias ficaram destruídas, enquanto iam e vinham entre os hospitais de Ramalah e Jerusalém, à procura de notícias dos seus filhos. Esta é também a história de Radwan, o motorista do autocarro escolar que ficou com a vida destroçada, ou de Huda, Nader, Eldad, Salem, Dubi, e todos os que convergiram naquela estrada nas proximidades de Jaba – médicos, técnicos de emergência, bombeiros, militares, ou apenas curiosos.

A morte daquelas crianças e professores chocou de frente com o ódio instalado: houve jovens israelitas, miúdos, que espalharam pelas redes sociais comentários de alegria e sarcasmo, celebrando a morte de dez palestinianos, quase todos crianças pequenas. “É só um autocarro cheio de palestinianos. Nada de especial. É pena que não tenham morrido mais.” Este livro é uma ferida aberta. Obrigatório para entender a tragédia de dois povos.

 

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Um Dia na Vida de Abed Salama – Anatomia de uma Tragédia em Jerusalém
de Nathan Thrall (tradução de Sara Veiga)

Livros Zigurate
outubro de 2023
208 págs

 

Artigo originalmente publicado no 7Margens, a 25 de fevereiro de 2024. Foto de Abed Salama a segurar um retrato do filho Milad, de Ihab Jadallah / Nathan Thrall, in People's World.