Anda por aí um livro que nos convida a sentar à mesa, a partir dos textos bíblicos. A Mesa de Deus (de Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti, Quetzal Editores) é, segundo escreve José Tolentino Mendonça, no prefácio, uma oportunidade para “entrar na Bíblia pela porta da cozinha”. “É um argumento mais sério do que se possa supor. E também mais espiritual.”
Façamos a vontade ao poeta e cardeal, que sintetiza o livro com uma bela definição: “Um livro de espiritualidade bíblica, um compêndio de exegese, uma refeição da Palavra.” Entremos então pela cozinha, saboreando as palavras, olhando uns e outros, neste caso, com as falas e os gestos de dois filmes, muito diferentes no tempo e no modo, que fazem da mesa um ponto de encontro entre iguais e diferentes, de aceitação do outro.
A Festa de Babette (1987) é a história de uma mulher francesa, fugida do seu país, que encontra refúgio numa remota comunidade nórdica, na casa de duas mulheres solteiras, anos depois da morte do pai delas, um homem que tinha fundado uma seita religiosa puritana, e onde o prazer era uma palavra proibida.
Aproximando-se o centenário do nascimento do pastor, Babette recebe a notícia de que ganhou a lotaria, no valor de 10 mil francos, e oferece-se para preparar o jantar de celebração dessa data, “um autêntico jantar francês”. Herdeiras da austeridade do pai, as filhas apenas tinham planeado servir “uma comida modesta” e uma chávena de café e não aceitam a oferta. “Nunca oferecemos outra coisa”, argumentam. Acabam por aceitar o pedido “do coração” daquela mulher francesa, que as ajudava a servir e a cuidar dos velhos da aldeia.
Perante a chegada da mercadoria com os ingredientes (quase exóticos, para aquelas paragens e bocas, como codornizes e tartaruga, ou vinho) para o jantar, as filhas do pastor convocam a comunidade para lhes contar que não pretendiam fazer nada de mal e que só queriam agradar a Babette. “Agora estamos expostos a forças perigosas, talvez forças do mal. Nem lhes posso contar o que nos dará para comer e beber.” O medo instala-se entre os crentes. “O que nos vai acontecer? Senhor, concedei-nos a vossa misericórdia.” E ali estabelecem um pacto, de que não dirão uma só palavra sobre o que comerem e beberem. “Será como se não tivéssemos o sentido do paladar.”
À mesa, a descoberta de sabores, aromas e sensações desconhecidas é um acontecimento, que em nada põe em causa a sua fé. Afinal, aquele jantar é um ato de amor fraterno, como exultou também o Papa Francisco, que incluiu este filme de Gabriel Axel entre os seus favoritos, e que o leva mesmo a citá-lo na encíclica Amoris Laetitia: “As alegrias mais intensas da vida surgem, quando se pode provocar a felicidade dos outros, numa antecipação do Céu. Vem a propósito recordar a cena feliz do filme A Festa de Babette, quando a generosa cozinheira recebe um abraço agradecido e este elogio: «Como deliciarás os anjos!» É doce e consoladora a alegria de fazer as delícias dos outros, vê-los usufruir delas. Este júbilo, efeito do amor fraterno, não é o da vaidade de quem olha para si mesmo, mas o do amante que se compraz no bem do ser amado, que transborda para o outro e se torna fecundo nele.” (nº 129)
A fecundidade daquela refeição é a fecundidade que encontramos num filme bem distinto — e muito atual. O Pub The Old Oak (2023), de Ken Loach, traça o retrato de uma cidade mineira deprimida, com o desemprego a ocupar os dias dos seus habitantes e a especulação imobiliária a invadir as suas casas. O filme arranca com a chegada de refugiados sírios a essa cidade na costa do Nordeste da Inglaterra — e sente-se a hostilidade de parte da comunidade. Há tensão e um forte discurso xenófobo e, logo ali, sente-se que o tema divide amigos, vizinhos e conhecidos.
O pub do título é o lugar que resta numa terra onde tudo desapareceu. Mas até The Old Oak sofre das agruras do tempo e da escassez de clientes, o que não impede o seu proprietário de tentar ajudar os que mais precisam, recebendo a ajuda dos refugiados sírios. Estes sentem-se agradecidos pelo acolhimento na cidade, apesar da hostilidade com que são tratados, e querem retribuir preparando refeições (também cozinhados seus) para quem não tem de comer. Um gesto que comove, e que faz aproximar estranhos, apesar de, como desabafa uma das personagens, ser “a esperança que causa tanta dor”.
Um e outro filme sentam-nos à mesa com o estrangeiro, com a diferença, nos pratos e nos paladares, confrontando aquelas gentes com as certezas muito arrumadas das suas vidas, seja a aldeia austera e puritana da dinamarquesa Jutlândia, seja a comunidade de desempregados e pobres da Inglaterra. Um e outro filme fazem da mesa espaço de partilha, que remove desconfianças e tensões. Talvez seja mesmo pelo estômago que devemos começar, fazendo da refeição da Palavra o tempo certo para o acolhimento.
[artigo originalmente publicado no PontoSJ, no dia 15 de março de 2024]