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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Fevereiro 17, 2024

Em defesa da vida. Porque se calam os bispos contra o Chega?

Miguel Marujo

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Este texto podia ir beber a um outro, de Henrique Raposo, no Expresso (8/1/24), no qual, quase para começo de conversa, o cronista nos dizia que um católico não podia votar no Chega “porque um católico no Chega é como um bloquista na especulação imobiliária: é uma contradição nos termos”. E explicava-se: “A obsessão nacionalista com os “portugueses de bem” ou com o “Portugal invadido” é a direta negação do bom samaritano e do Pentecostes, é a negação do discurso universal e humanista do Evangelho. O Evangelho está construído contra a imanência do sangue, contra o tribalismo, contra os totens de classe e de nação fechada. Acolher e integrar o estrangeiro é a essência do catolicismo, que é uma ponte entre classes e etnias; o catolicismo não é um muro, muito menos um castelo para defender numa lógica de seita de puros fechada ao mundo.”

Podia lançar mão de mais umas quantas palavras deste cronista, que já em 2019 tinha afirmado categoricamente, então na Rádio Renascença, ​“nem um voto cristão no Chega”, mas tenho antes que lamentar que estes textos não tenham suscitado qualquer adesão imediata dos membros da Conferência Episcopal Portuguesa, ao contrário de outros temas, sobre os quais os senhores bispos estão sempre muito prontos a dizer coisas.

O que a CEP ou os diferentes bispos diocesanos têm a dizer sobre o voto são formulações vagas sobre a necessidade de escolher quem defende “valores cristãos e evangélicos” (ignorando o atropelo evangélico que são muitas das ideias e propostas do Chega) ou “em defesa da vida” (levando a equívocos sérios, em que se apela ao voto num partido que defende o contrário da vida).

Sejamos claros: um partido que assenta a sua mensagem política no ódio e na divisão, que odeia o Outro e ataca os outros em função da sua pele e da sua origem, que defende a pena de morte ou a castração química, numa clara violação da defesa intransigente da vida, incluindo aos que falham gravemente, sem possibilidade de perdão, é um partido profundamente anti-evangélico, à luz da Bíblia e de qualquer texto essencial da Igreja Católica. E, no entanto, os bispos calam-se e não levantam a sua voz contra o apoio de católicos ao Chega. Pior: calam-se, perante a invocação sistemática, hipócrita e falsa que Ventura faz de Deus, da Bíblia ou da Igreja.

“A adesão ao populismo de muitos católicos privilegiados que compõem o sector fariseu”, como bem nota Raposo, devia ser combatida com discernimento e clareza pelos bispos (e padres e religiosas e religiosos). E não é.

Aliás, há maus exemplos que vêm de dentro, com setores ultraconservadores ditos católicos a insistirem que a defesa da vida se faz com posições como a “vida por nascer”, a “rejeição [da] eutanásia”; a “liberdade de educação”; a “oposição [à] ideologia de género”; a “proibição [de] barrigas de aluguer”; e o “combate à prostituição”.

Uma mistura de alhos com demasiados bugalhos para, mais uma vez, não ajudar a discernir, antes confundir. Como se a defesa das escolas católicas fosse primordial perante o ataque racista ao imigrante, que foge da guerra e da pobreza e apenas procura o nosso país para trabalhar e ter uma vida melhor – apesar de invisíveis. Como se alinhar na mentira desbragada de casas de banho únicas nas escolas (já agora: ninguém do Chega usa casas de banho nos comboios?) fosse mais importante que retirar apoios a quem quase nada tem (é disso que se trata, por exemplo, no rendimento social de inserção).

É assustador ver como os bispos se calam perante o desmando diário de falsidades, insultos e incêndios ateados por aquele partido, e sem merecer uma palavra de condenação, vivo repúdio, genuína repulsa por parte dos católicos, muitos dos quais ditos praticantes, e que batem tanto no peito. São autênticos vendilhões do templo, como bem descreve Raposo: “É por isso que o mais bíblico dos papas recentes, Francisco, causa tanto desconforto. Então não está no centro do evangelho a ideia de misericórdia para aqueles que estão nas margens? Está. Então porque é que causa tanta celeuma a empatia de Francisco para com os recasados, com os homossexuais, com os trans, com mães solteiras, etc, etc. etc.? Um católico que vota no Chega é um traidor do Evangelho.” Ámen.

 

Declaração de interesses: trabalho, conjunturalmente, como assessor de comunicação no atual Governo. Não me retira qualquer legitimidade, mas também por isso me socorri de alguém insuspeito como Henrique Raposo.
[Texto originalmente publicado no Sete Margens, a 14 de fevereiro de 2024; foto do Santuário de Fátima, na missa convocada pelos bispos por intenção das vítimas de abusos sexuais, em Fátima]