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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Fevereiro 28, 2024

A interrupção voluntária do diálogo

Miguel Marujo

Em dezembro de 2006 (!!!), eu, a Ana Berta Sousa, o José Manuel Pureza​, a Marta Parada​ e a Paula Abreu​ escrevemos este texto no jornal Público. Hoje, quase 20 anos depois, recupero-o, porque há sempre setores de uma certa Igreja (sempre os mesmos, e sempre ligados a determinados partidos) prontos a atirar-nos para trás, ignorando o que a lei da interrupção voluntária da gravidez trouxe em termos de saúde, nomeadamente, na diminuição do número de abortos, e de mortes de mulheres. E ignorando a defesa da vida.

 

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"Somos católicos e assistimos, inquietos e perplexos, à reiteração de uma lógica de confronto crispado por parte de sectores da Igreja Católica — incluindo os nossos bispos — no debate suscitado pelo referendo sobre a despenalização do aborto. Frustrando as melhores expectativas criadas pelas declarações equilibradas de D. José Policarpo, a interrupção voluntária do diálogo volta a ser a linha oficial. E o radicalismo vai ao ponto de interrogar a legitimidade ao Estado democrático para legislar nesta matéria. É um mau serviço que se presta à causa de uma Igreja aberta ao mundo.

A verdade é que a despenalização do aborto não opõe crentes a não crentes. Nem adeptos da vida a adeptos da morte. Não é contraditório afirmarmo-nos convictamente «pela vida» e sermos simultaneamente favoráveis à despenalização do aborto. Porque sendo um mal, não desejável por ninguém, o recurso ao aborto não pode também ser encarado como algo simplesmente leviano e fácil. As situações em que essa alternativa se coloca são sempre dilemáticas, com um confronto intensíssimo entre valores, direitos, impossibilidades e constrangimentos, vários e poderosos, especialmente para as mulheres. Ora, mesmo quando, para quem é crente, a resposta concreta a um tal dilema possa ser tida como um pecado, manda a estima pelo pluralismo que se repudie por inteiro qualquer tutela criminal sobre juízos morais particulares, por ser contrária ao que há de mais essencial numa sociedade democrática.

Por isso, não nos revemos no carácter categórico e absoluto com que alguns defendem a vida nesta questão, dela desdenhando em situações concretas de todos os dias: a pobreza extrema é tolerada como "inevitável", a pena de morte "eventualmente aceitável", o racismo e a xenofobia é discurso vertido até nos altares. A Igreja Católica insiste em dar razões para ser vista como bem mais afirmativa "nesta" defesa da vida do que nos combates por outras políticas da vida como as do emprego, do ambiente, da habitação ou da segurança social. Além de que, no caso do aborto, a defesa da vida deve sempre ser formulada no plural. Estão em questão as vidas de pelo menos três pessoas e não apenas a de uma. Por isso, quando procuramos — como recomenda um raciocínio moral coerente mas simultaneamente atento à vida concreta das pessoas — estabelecer uma hierarquia de valores e de princípios, ela nem sempre é fácil ou mesmo clara e não será, seguramente, única e universal. Nem o argumento de que a vida do feto é a mais vulnerável e indefesa das que se jogam na possibilidade de uma interrupção voluntária da gravidez pode ser invocado de forma categórica e sem quaisquer dúvidas.

É de mulheres e de homens que se trata neste debate. E também aqui, o esvaziamento do discurso de muitos católicos e sectores da Igreja relativamente aos sujeitos envolvidos nos dilemas de uma gravidez omite a recorrente posição de isolamento, fragilidade ou subalternização das mulheres, para quem o problema poderá ser absoluto e incontornável, e reproduz a distância que sustenta a sobranceria e condescendência moral de muitos homens (mesmo que pais). A invocação do direito da mulher a decidir sobre o seu corpo é um argumento que, bramido isoladamente, corre o risco de reproduzir de uma outra forma a tradicional atitude de desresponsabilização de grande parte dos homens perante as dificuldades com que se confrontam as mulheres na maternidade e no cuidado de uma nova vida. A defesa da autonomia da mulher, da sua plena liberdade e adultez é indiscutível e será sempre tanto mais legítima e forte quanto reconhecer e atribuir ao homem os deveres e os direitos que ele tem na paternidade. Ignorá-lo é mais uma vez descarregar apenas sobre os ombros das mulheres a dramática responsabilidade de decidir sobre o que é verdadeiramente difícil. A Igreja tem, neste aspecto particular, uma responsabilidade maior. As suas preocupações fundamentais com a família exigem uma reflexão igualmente apurada sobre as responsabilidades conjuntas de mulheres e homens na concepção e cuidado da vida.

Infelizmente, pelas piores razões, o discurso oficial da Igreja está muito fragilizado para a defesa de abordagens à vida sexual e familiar que acautelem o recurso ao aborto. A moral sexual oficial da Igreja — e, em concreto, em matéria de contracepção — fecha todas as alternativas salvo a da castidade sacrificial. É um discurso que não contribui, de modo algum, para a defesa de uma intervenção prioritariamente preventiva, em que ao Estado fosse exigível um sistemático e eficaz serviço de aconselhamento e assistência no domínio do planeamento familiar e da vida sexual. Pelo contrário, o fechamento dos mais altos responsáveis da Igreja a uma discussão mais séria e aberta sobre a vivência concreta da sexualidade denuncia um persistente autismo, que ignora a sensibilidade, a experiência, o pensamento e a vida das mulheres e dos homens de hoje.

Em síntese, o recurso ao aborto é sempre, em última análise, motivo de um grave dilema moral. E é nessas circunstâncias de extrema dificuldade que achamos ter mais sentido a confiança dos cristãos na capacidade de discernimento de todos os seres humanos, em consciência, sobre os caminhos da vida em abundância querida por Deus para todos e para todas. Optar por uma reiteração de princípios universais, como o do respeito fundamental pela vida, confundindo-os com normas e regras de ordenação concreta das vidas é, além do mais, optar por uma posição paternalista, de imposição e vigilância normativas, e suspeitar de uma postura fraternal, de confiança e solidariedade, com os que, de forma autónoma, procuram discernir as opções mais justas. Partir para este debate com a certeza de que a despenalização do aborto é porta aberta para a sua banalização é abdicar de acreditar nas pessoas, em todas as pessoas, e na sua capacidade de fazer juízos morais difíceis. Não é essa abdicação que se espera de homens e mulheres de fé."

Ana Berta Sousa, José Manuel Pureza, Marta Parada, Miguel Marujo e Paula Abreu
[artigo originalmente publicado no Público, em 21 de dezembro de 2006; foto © Agnès Varda — Portugal, Póvoa de Varzim, 1956 (Sophia Loren Poster)] 

 

Fevereiro 17, 2024

Em defesa da vida. Porque se calam os bispos contra o Chega?

Miguel Marujo

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Este texto podia ir beber a um outro, de Henrique Raposo, no Expresso (8/1/24), no qual, quase para começo de conversa, o cronista nos dizia que um católico não podia votar no Chega “porque um católico no Chega é como um bloquista na especulação imobiliária: é uma contradição nos termos”. E explicava-se: “A obsessão nacionalista com os “portugueses de bem” ou com o “Portugal invadido” é a direta negação do bom samaritano e do Pentecostes, é a negação do discurso universal e humanista do Evangelho. O Evangelho está construído contra a imanência do sangue, contra o tribalismo, contra os totens de classe e de nação fechada. Acolher e integrar o estrangeiro é a essência do catolicismo, que é uma ponte entre classes e etnias; o catolicismo não é um muro, muito menos um castelo para defender numa lógica de seita de puros fechada ao mundo.”

Podia lançar mão de mais umas quantas palavras deste cronista, que já em 2019 tinha afirmado categoricamente, então na Rádio Renascença, ​“nem um voto cristão no Chega”, mas tenho antes que lamentar que estes textos não tenham suscitado qualquer adesão imediata dos membros da Conferência Episcopal Portuguesa, ao contrário de outros temas, sobre os quais os senhores bispos estão sempre muito prontos a dizer coisas.

O que a CEP ou os diferentes bispos diocesanos têm a dizer sobre o voto são formulações vagas sobre a necessidade de escolher quem defende “valores cristãos e evangélicos” (ignorando o atropelo evangélico que são muitas das ideias e propostas do Chega) ou “em defesa da vida” (levando a equívocos sérios, em que se apela ao voto num partido que defende o contrário da vida).

Sejamos claros: um partido que assenta a sua mensagem política no ódio e na divisão, que odeia o Outro e ataca os outros em função da sua pele e da sua origem, que defende a pena de morte ou a castração química, numa clara violação da defesa intransigente da vida, incluindo aos que falham gravemente, sem possibilidade de perdão, é um partido profundamente anti-evangélico, à luz da Bíblia e de qualquer texto essencial da Igreja Católica. E, no entanto, os bispos calam-se e não levantam a sua voz contra o apoio de católicos ao Chega. Pior: calam-se, perante a invocação sistemática, hipócrita e falsa que Ventura faz de Deus, da Bíblia ou da Igreja.

“A adesão ao populismo de muitos católicos privilegiados que compõem o sector fariseu”, como bem nota Raposo, devia ser combatida com discernimento e clareza pelos bispos (e padres e religiosas e religiosos). E não é.

Aliás, há maus exemplos que vêm de dentro, com setores ultraconservadores ditos católicos a insistirem que a defesa da vida se faz com posições como a “vida por nascer”, a “rejeição [da] eutanásia”; a “liberdade de educação”; a “oposição [à] ideologia de género”; a “proibição [de] barrigas de aluguer”; e o “combate à prostituição”.

Uma mistura de alhos com demasiados bugalhos para, mais uma vez, não ajudar a discernir, antes confundir. Como se a defesa das escolas católicas fosse primordial perante o ataque racista ao imigrante, que foge da guerra e da pobreza e apenas procura o nosso país para trabalhar e ter uma vida melhor – apesar de invisíveis. Como se alinhar na mentira desbragada de casas de banho únicas nas escolas (já agora: ninguém do Chega usa casas de banho nos comboios?) fosse mais importante que retirar apoios a quem quase nada tem (é disso que se trata, por exemplo, no rendimento social de inserção).

É assustador ver como os bispos se calam perante o desmando diário de falsidades, insultos e incêndios ateados por aquele partido, e sem merecer uma palavra de condenação, vivo repúdio, genuína repulsa por parte dos católicos, muitos dos quais ditos praticantes, e que batem tanto no peito. São autênticos vendilhões do templo, como bem descreve Raposo: “É por isso que o mais bíblico dos papas recentes, Francisco, causa tanto desconforto. Então não está no centro do evangelho a ideia de misericórdia para aqueles que estão nas margens? Está. Então porque é que causa tanta celeuma a empatia de Francisco para com os recasados, com os homossexuais, com os trans, com mães solteiras, etc, etc. etc.? Um católico que vota no Chega é um traidor do Evangelho.” Ámen.

 

Declaração de interesses: trabalho, conjunturalmente, como assessor de comunicação no atual Governo. Não me retira qualquer legitimidade, mas também por isso me socorri de alguém insuspeito como Henrique Raposo.
[Texto originalmente publicado no Sete Margens, a 14 de fevereiro de 2024; foto do Santuário de Fátima, na missa convocada pelos bispos por intenção das vítimas de abusos sexuais, em Fátima]

Fevereiro 16, 2024

Os extremismos são pasto dos fundamentalismos — religiosos e seculares

Miguel Marujo

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Duas notícias publicadas no mesmo dia, 10 de dezembro de 2023, na página inicial do 7MARGENS mostram cabalmente como os extremos continuam a tocar-se, esmagando a possibilidade de um caminho radical para um secularismo e uma laicidade que sejam completamente vividos, sem extremismos. Numa das notícias, o Presidente francês era criticado e atacado por todos – da extremíssima-direita à esquerda – por ter acolhido no Palácio do Eliseu uma cerimónia do Hanukkah, ouvindo o que nunca Maomé terá dito do toucinho. Na outra notícia, o óbvio pedido por um lorde de separação entre a Igreja oficial do reino e a coroa do Reino Unido recebido com sarcasmo e um liminar “não” a qualquer discussão séria.

A excessiva invisibilidade da religião na laïcité da República Francesa abre a porta à torrente de críticas a Emmanuel Macron. O jornal Muslim Times notou a contradição, em tempo de conflito aberto entre Israel e o Hamas: o uso da abaya (um vestido longo, usado por muçulmanas) foi proibido nas escolas francesas, com o [então] ministro da Educação [agora primeiro-ministro] francês a afirmar, sem qualquer nuance, que “a laicidade é a liberdade de emancipar-se através da escola”. Antes, Gabriel Attal tinha dito que ir à escola vestindo uma abaya era “um gesto religioso destinado a testar a resistência da República sobre o santuário secular que deveria ser a escola”. Este secularismo, acusa o jornal publicado no Reino Unido, só não é aparentemente posto em causa quando Macron assiste à missa com o Papa Francisco em Marselha ou acende “uma vela religiosa” no Eliseu — “tudo isto não é muito coerente”. Ou mesmo nada.

No Reino Unido, uma proposta do lorde liberal-democrata Paul Scriven para “desestabilizar a Igreja da Inglaterra” foi acolhida com protestos dos seus pares na Câmara dos Lordes, a câmara alta do Parlamento britânico. Esta lei pretende separar oficialmente a Igreja e o Estado, no país onde o monarca é o chefe da Igreja. Scriven disse o óbvio, para quem vive num país como Portugal: “Numa sociedade moderna, pluralista e secular, é um privilégio religioso bastante arcaico e injustificável” ter uma instituição religiosa “implantada no coração da nossa constituição, no coração da organização e gestão do Estado”. “A separação entre a Igreja da Inglaterra e o Estado já deveria ter sido feita há muito tempo.” Pois já.

O caminho é óbvio: nem tanto ao secularismo, nem tanto à religião. Em Portugal, com a Liberdade Religiosa a ser celebrada nos espaços do Parlamento, sublinha-se o equilíbrio que alguns insistem em desequilibrar: a laicidade do Estado e o secularismo da sociedade não são postos em causa por apoios do Estado a eventos religiosos, nem a religião se vive enfiada na sacristia ou fica fechada no espaço dos cultos.

É óbvio que alguns poucos insistem em apropriar-se da religiosidade no espaço da política, invocando Jesus em debates políticos, quando a sua prática partidária e pública exclui o outro e ataca o pobre, o refugiado, o migrante, o asilado, o homossexual ou o transsexual. Se uma Igreja, como a católica, deve evitar colar-se a partidos, quaisquer que sejam, também deve ser clara e profética: apontando que estes que agora invocam Deus são vendilhões do templo, e apenas procuram o oportunismo do voto. (Sim, falo do Chega, que devia ser denunciado pelos bispos católicos, como fizeram de forma clara os bispos da Baviera, Alemanha, em relação aos neonazis da AfD.)

E também é óbvio que há outros que invocam uma espécie de neutralidade “enverhoxhista” (lembrando o antigo ditador albanês que consagrou o ateísmo como “religião” de estado), como se a liberdade de expressão religiosa estivesse diminuída no espaço público.

A conclusão é necessária. Se a França laica e secular convivesse saudavelmente com as religiões, não berrava contra uma cerimónia religiosa no Eliseu, porque haveria pluralidade. (Assim, houve apenas um aproveitamento político de apoiantes de uma causa próxima da guerra.) Todos diferentes, e todos iguais — e esse caminho é o que o Reino Unido também devia seguir, recusando uma igreja oficial e oficializando antes a separação entre a Igreja e o Estado. Os extremismos são pasto dos fundamentalismos. Os religiosos e os seculares.

 

[artigo revisto a partir do original publicado no Sete Margens, em 13 de dezembro de 2023]