Em Goa, Índia, em janeiro de 2017, António Costa recebeu o prémio da diáspora. Por se tratar de uma distinção pessoal, este prémio não está incluído nas ofertas que o primeiro-ministro tem à guarda do Estado.
Um fato árabe, várias gravatas de marca e uma mola de gravata, botões de punho, relógios e joias. O leitor não se engane: não abrimos nenhum armário e gavetas de um qualquer príncipe saudita. Trata-se apenas de uma pequena amostra das prendas que foram recebidas por membros do Governo e que estão guardadas num cofre do Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE).
Estes presentes guardados naquele cofre - e noutros locais dos diferentes ministérios - são o lado visível da resolução do Conselho de Ministros n.º 53/2016, que descodificada se traduz no "código de conduta do governo" (e saltou de novo para a ordem do dia com a sua alegada violação pelo ministro Vieira da Silva no "caso Raríssimas"), no qual se "esclarece em que condições e até que valores os membros do Governo ou dos respetivos gabinetes podem aceitar ofertas ou convites de entidades privadas".
Como gato escaldado de água fria tem medo, o Governo resolveu arrefecer eventuais suspeitas na aceitação de ofertas - depois de serem conhecidas as viagens pagas pela Galp, ao Euro de futebol, a três secretários de Estado - com a aprovação deste código a 8 de setembro de 2016.
No artigo 10.º, que se refere a "convites ou benefícios similares", refere-se que "os membros do Governo abstêm-se de aceitar, a qualquer título, convites de pessoas singulares e coletivas privadas, nacionais ou estrangeiras, e de pessoas coletivas públicas estrangeiras, para assistência a eventos sociais, institucionais ou culturais, ou outros benefícios similares, que possam condicionar a imparcialidade e a integridade do exercício das suas funções".
Quem diz convites, também diz bens. No artigo 8.º repete-se quase textualmente a mesma fórmula, reportando-se a ofertas "de bens, consumíveis ou duradouros, que possam condicionar a imparcialidade e a integridade do exercício das suas funções". E logo aí se diz que "entende-se que existe um condicionamento da imparcialidade e da integridade do exercício de funções quando haja aceitação de bens de valor estimado igual ou superior a 150 euros", valor idêntico para os convites.
Há exceções de prendas que podem ser aceites, admitidas pela lei. Mas esses bens acabam confiados ao Estado. "Todas as ofertas" superiores a 150 euros, "que constituam ou possam ser interpretadas, pela sua recusa, como uma quebra de respeito interinstitucional, designadamente no âmbito das relações entre Estados, devem ser aceites em nome do Estado".
Manda a educação e a diplomacia que não se recusem estas prendas, mas o seu destino (neste pouco mais de um ano de aplicação do código) é o depósito num cofre ou num armário, com usos pontuais: a exposição numa vitrina num átrio de edifícios ministeriais; uma ou outra peça decorativa em gabinetes.
No edifício da Presidência do Conselho de Ministros (PCM), um simples armário de escritório guarda os 30 artigos oferecidos (até 27 de outubro) aos membros do governo integrados na PCM "ou a quem esta presta apoio", como o gabinete do primeiro-ministro. A maior parte destas prendas foram dadas a António Costa. E há de tudo: um alaúde dourado que Marrocos entregou numa caixa; um serviço de jantar para 12 pessoas, oferecido pela República da Colômbia; um cubo forrado a azulejo, com o título "Comunidade das Bandeiras", da autoria de João Henrique, dado pelo Brasil; há peças decorativas de cerâmica de Sargadelos de Dom Quixote e Sancho Pança, que o reino de Espanha ofereceu a António Costa; mas também há um faqueiro Cutipol para quatro pessoas que a Câmara Municipal de Guimarães deu ao primeiro-ministro, do modelo Goa Blue Gold.
O reino do Qatar tem uma predileção especial por relógios: ofereceu vários de marcas luxuosas aos membros do gabinete de Costa, enquanto para o primeiro-ministro ofertou uma caixa com um relógio de secretária. Estão guardados nas respetivas caixas no armário do edifício da Gomes Teixeira.
Uma escultura de figura humana de madeira preta, de artesanato moçambicano, decora o gabinete da ministra da Presidência e da Modernização Administrativa, Maria Manuel Leitão Marques, a quem foi oferecida pela República de Moçambique. Um tabuleiro de xadrez ofertado pela República do Paraguai a António Costa já esteve exposto na entrada do edifício da Presidência do Conselho de Ministros.
As ofertas utilitárias não têm, por enquanto, utilidade - há um telemóvel enfiado no armário. Só no caso do drone Phantom 3 Advanced já foi atribuído um destino: a Polícia Marítima vai recebê-lo em breve, para auxiliar na sua tarefa de fiscalização e policiamento. As duas prendas têm origem chinesa.
No caso de bens perecíveis, são encaminhados para instituições de solidariedade social. O Centro Social Paroquial São Francisco de Paula, em Lisboa, nas proximidades do Palácio das Necessidades, recebeu um cabaz de Natal que o consulado honorário de Portugal em Palm Coast, na Florida, ofereceu ao secretário de Estado das Comunidades Portuguesas.
Os embaixadores em Lisboa gostam de oferecer gravatas: o ministro Augusto Santos Silva recebeu uma Hermès do representante do Koweit (que também deu idênticas peças ao secretário de Estado da Internacionalização e ao chefe do Protocolo) e uma outra Salvatore Ferragamo do representante diplomático italiano.
Sir Ban Yas, do Abu Dhabi, surge identificado no registo de ofertas consultado pelo DN no MNE como o ofertante do fato árabe (uma túnica) ao ministro dos Negócios Estrangeiros. Percebe-se que esteja arrumado sem que se lhe dê uso. Também guardados estão os botões de punho e a mola de gravata Cartier que o ministro dos Negócios Estrangeiros do Azerbaijão ofertou ao seu homólogo português. Como na Presidência do Conselho de Ministros, no cofre do Instituto Diplomático, há ainda peças de escultura e estatuetas, quadros, jarras e jarrões.
Num futuro, estas peças poderão fazer parte do espólio de um eventual museu diplomático, mas por enquanto a ideia está no papel.
Para já, não é possível ver ao vivo estas ofertas, que por vezes parecem ter uma carga política. Numa altura em que as relações entre Lisboa e Luanda conhecem momentos tensos, o governo angolano ofereceu a Santos Silva uma estatueta de madeira do rei Ekuikui II, "símbolo da bravura e da coragem contra a ocupação colonial portuguesa". Subtilezas da diplomacia, só redimidas com a oferta de uma árvore à secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação.
[artigo originalmente publicado no Diário de Notícias, a 25 de dezembro de 2017; na foto, relógio Maserati oferecido pelo Qatar, do arquivo Global Imagens]