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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Novembro 29, 2023

Muito lá de casa

Miguel Marujo

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Sozinho em palco, Francisco Sassetti pega em Home, o seu primeiro trabalho a solo, e conta-nos a ideia de cada tema, a imagem que acompanhou o compositor e pianista na feitura de cada música, um céu estrelado, como em Nocturne I, ou um salão de baile em fim de festa, com os copos vazios pelas mesas e um homem ali sozinho, em Goodbye.

Home (o tema-título) é um regresso à casa em que nos sentimos de facto em casa, e no palco e no disco, Sassetti faz isso mesmo, mete-nos dentro da sua sala de estar, a ouvir as gargalhadas da mulher, o filho a libertar a princesa das garras de um dragão, por entre uma floresta tenebrosa, e os sonhos da filha.

No disco há também assumidamente Bernardo Sassetti, o irmão de Francisco que morreu em 2012: Inocência I e Inocência II recuperam composições de Bernardo, para uma citação que vai mais além, com Francisco a notar a profunda tristeza desta última versão, que (no concerto) dedicou às mães palestinianas e israelitas e aos pais russos e ucranianos, que veem morrer os seus filhos na guerra. “Podia chamar-se Desolação…”

“Na realidade, a maioria dos temas já tem cerca de dez anos. Depois da morte do meu irmão, em 2012, comecei a compor compulsivamente, quase como se quisesse continuar a obra dele, tão tragicamente deixada a meio. Era uma forma de lamento e, também, um espaço de paz e silêncio. Por outro lado, o exigente trabalho como concertista e professor (na Escola Superior de Música de Lisboa e na Orquestra Metropolitana, entre outras instituições) não me deixava muito tempo para terminar as composições, o que, entretanto, consegui”, revelou Francisco Sassetti.

Este disco – apresentado numa versão mais curta numa breve digressão de quatro datas com o belga Wim Mertens e que será revelado brevemente, na íntegra, em Lisboa – é mais do que aquilo que se ouviu em Leiria (e em Lisboa, Porto e Espinho). Há um espaço de paz e silêncio que se reconhece nos fraseados que Francisco traz neste disco, que (pasme-se) é a sua primeira obra a solo. Há novas composições a serem trabalhadas, promete Sassetti, mas por agora é em casa que nos sentimos com este Home.

 

Foto: Rita Carmo (disponibilizada no site oficial de Francisco Sassetti). Artigo originalmente no 7Margens, em 22 de novembro de 2023.

Novembro 21, 2023

Um senhor calhamaço para melhor compreender o país

Miguel Marujo

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O peso deste O Essencial da Política Portuguesa não se fica pela sua dimensão. É de facto uma obra essencial para compreender Portugal quando a democracia já tem mais anos de vida do que a ditadura e se prepara para cumprir 50 anos. (Foto © Miguel Marujo)

 

 

É essencial este livro do “essencial da política portuguesa”, um senhor calhamaço de 934 páginas, com organização de Jorge M. Fernandes, Pedro C. Magalhães e António Costa Pinto. Trata-se da edição portuguesa do Oxford Handbook of Portuguese Politics, que em boa hora a Tinta-da-China trouxe à estampa em língua portuguesa, com a contribuição de 68 investigadores.

O peso deste livro não se fica pela sua dimensão. É de facto uma obra essencial para compreender Portugal quando a democracia já tem mais anos de vida do que a ditadura e se prepara para cumprir 50 anos. No prefácio à edição, Gonçalo Saraiva Matias e João Tiago Gaspar, responsáveis da FFMS – Fundação Francisco Manuel dos Santos (que apoiou o projeto), notam que “a democracia portuguesa, tal como a generalidade das chamadas ‘democracias liberais’, enfrenta desafios consideráveis à sua estabilidade e autoridade e, portanto, à sua própria sobrevivência”.

Este livro (48 capítulos, tantos como os anos da ditadura) ajuda a caminhar por entre os desafios que a democracia experimenta, como movimentos e partidos populistas, a participação cada vez menor de cidadãos e a própria erosão dos princípios e valores democráticos, como identificam os autores do prefácio. A estas ameaças, os organizadores de O Essencial da Política Portuguesa somam os “enormes desafios às perspetivas de desenvolvimento de Portugal”, colocando no “centro deste livro” a “economia política e as dimensões políticas subjacentes a estes desafios”.

Não é coisa pouca, e os autores assumem a empreitada como tal: o livro “tem a ambição de se tornar a referência em Portugal e o seu sistema político”, com um alvo mais especializado identificado – “cientistas políticos, economistas, historiadores e sociólogos”.

Não se assuste o leitor que não vista uma destas camisas. Apesar do tom e do rigor académicos, há (como se aponta) uma “grande diversidade de análises e de dados”, que permitem, também ao leitor “comum”, ler e refletir sobre o percurso exaustivo de uma sociedade que aprendeu a viver a democracia, e em democracia, e fazem deste Essencial… uma obra de consulta obrigatória quando se quer estudar e pensar o país, entre o passado e o presente.

Se hoje a investigação nas ciências sociais portuguesas permite esta “visão abrangente, atualizada e sistemática como nunca”, é pena que a apresentação de cada investigador (com exceção dos três organizadores) se limite a uma linha que explica o lugar académico de origem de cada autor. A diversidade de autores é também política, e vale a pena ao leitor perceber o quadro em que se move o investigador.

Esta é, no entanto, uma falta menor perante a dimensão e a ambição deste projeto, que permite um retrato minucioso (e muito atualizado) nas mais variadas áreas. É, por exemplo, pertinente a abordagem cronológica sobre “as relações entre a Igreja Católica e o poder político em Portugal”, por Madalena Meyer Resende, onde se aponta “a peculiar reserva da hierarquia católica nas suas relações com o campo político”, desde logo “condicionada” pela “sua natureza de instituição religiosa” e também pela sua intensa cooperação e interligação com o Estado”.

As etapas da democratização, a transição para a liberdade religiosa, incluindo a lei de 2001 e a nova Concordata de 2004, a liberalização das leis morais, com a despenalização do aborto, e os cortes de financiamento público nos contratos de associação com o ensino particular, acabaram por traduzir-se num declínio do peso político da Igreja, apesar do apoio social à Igreja e à sua autoridade moral parecerem mais elevados do que noutros países do Sul da Europa.

Este é um exemplo breve (entre os 48 capítulos) da diversidade de leituras sobre a atual sociedade portuguesa. Já se disse: O Essencial da Política Portuguesa é uma obra essencial.

 

O Essencial da Política Portuguesa
Jorge M. Fernandes, Pedro C. Magalhães e António Costa Pinto (org.)
Tinta-da-China, 934 pp., 34,90€

[Texto originalmente publicado no 7Margens, em 29 de outubro de 2023; foto MM]