Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Outubro 23, 2023

As mães conseguirão fazer-se ouvir?

Miguel Marujo

Oracao-das-Maes.png

 

Há mulheres, muitas, que marcham, vestidas de branco, lado a lado, sorridentes, em festa – e fazem-no pela paz. São quatro mil, duas mil israelitas, duas mil palestinianas, que caminharam em direção a Jerusalém, para pedirem a paz numa terra a que muitos chamam santa e vive em estado (quase) permanente de guerra e conflito.

Estávamos em 2016, há sete anos, no dia 19 de outubro, e aquelas mulheres tomaram em mãos a vontade de muitas e muitos naquelas terras do Médio Oriente – a de lutar pela paz sem armas nas mãos. Partiram a 4 de outubro de Qasr el Yahud (a norte do Mar Morto) na “Marcha da Esperança”, até Jerusalém.

A cantora e compositora israelita, também ativista por esta causa, Yael Deckelbaum, juntou-se a esse grupo de mulheres, apresentadas como “corajosas”, que se tinham unido no movimento Women Wage Peace, quando em 2014 se registou uma escalada no conflito, com mais um episódio de guerra entre israelitas e palestinianos. A operação militar de então recebeu o nome de Tzuk Eitan, pelo lado israelita – e os objetivos enunciados na boca de políticos foi muito semelhante ao de agora. 

Yael Deckelbaum juntou-se então a essas mulheres – incluindo Lubna Salame, Miriam Toukan, e também Daniel Rubin, nas principais vozes – , para cantar Prayer Of The Mothers (“Oração das Mães”), em hebraico, árabe e inglês.

As marchas foram acompanhadas pela Nobel da Paz, Leymah Gbowee, que conseguiu conduzir a Libéria à paz, pondo um ponto final da guerra civil, em 2003, pela força conjunta de mulheres. Na música, Yael incluiu uma gravação de Leymah, em que esta deixa um veemente apelo à paz.

A mensagem permanece mais atual do que nunca. “Do norte ao sul, do oeste para o leste, ouçam a oração das mães, tragam-lhes paz.” Ouvirão os senhores da guerra este apelo?

 


[artigo originalmente publicado ontem no 7Margens, dia 22 de outubro de 2023; 
imagem do vídeo de Yael Deckelbaum, Prayer Of The Mothers (Oração das Mães)]

 

Outubro 22, 2023

Coração partido: o regresso de Nick Cave

Miguel Marujo

nickcavecroydon040921-26-of-41-51427853685-1440x51

 

Nick Cave está de regresso à gravação de um álbum com os seus Bad Seeds, depois de Ghosteen (2019). A notícia foi dada pelo próprio, em The Red Hand Files, o site que alimenta com respostas à correspondência dos seus fãs. Numa carta publicada a 15 de maio, Nick Cave anuncia “algumas semanas de folga” do site por, a partir desse dia, entrar em estúdio e trabalhar “nas músicas do novo disco do Bad Seeds”.

Antecipando que “as músicas estão a soar ótimas”, o compositor, cantor e músico australiano, há muito radicado na Grã-Bretanha, não desvela muito mais sobre como vai ser esse disco. Neste intervalo, Nick não tem estado parado: gravou sozinho, numa emissão ao vivo por streaming, o disco Idiot Prayer (Nick Cave Alone at Alexandra Palace), em plena pandemia (2020), escreveu o libreto para uma ópera de câmara do belga Nicholas Lens, L.I.T.A.N.I.E.S (2020), juntou-se a Warren Ellis, seu companheiro nos Bad Seeds, para gravar um dos grandes álbuns do ano de 2021, Carnage, e acompanhou o mesmo Ellis em três bandas sonoras: La Panthère des neiges (2021), Dahmer — Monster: The Jeffrey Dahmer Story e Blonde (ambas em 2022); reuniu os seus B-Sides & Rarities Part II (2021), com os Bad Seeds; por fim, escreveu e leu Seven Psalms (2022) num disco tão breve quanto intenso. E ainda teve tempo para uma longa conversa em livro, com o jornalista Seán O’Hagan, cujo título é uma perfeita síntese da vida, obra e música de Nick Cave: Fé, Esperança e Carnificina (ed. Relógio d’Água, 2022).  No meio disto tudo, passou por duas vezes no verão do ano passado pelos palcos do Porto e de Lisboa.

Respiremos: este enunciado burocrático quase esconde o caminho que Cave tem feito, nestes anos mais recentes, no qual parece ter pressa em dialogar com Deus. O músico perdeu dois filhos nos últimos anos, e — a partir da morte de Arthur, em 2015, aos 15 anos — a sua criação artística assemelhou-se a uma erupção violenta em que assomam o amor, a dor, a morte e Deus. Se estes eram temas já recorrentes na sua obra, agora Nick Cave sintetiza o que o guia: “Assumi, por razões de sobrevivência, um compromisso com a natureza incerta do mundo. É aqui que o meu coração está.”

No livro Fé, Esperança e Carnificina, o australiano reconhece: “As canções que escrevo hoje em dia tendem a ser canções religiosas no sentido mais lato do termo. Essas canções comportam-se como se Deus existisse. Essencialmente, argumentam a favor da própria crença, pese embora sejam às vezes ambivalentes ou inconsistentes quanto à existência de Deus.”

E que Deus é este, então? Há tempos, na troca de correspondência com os fãs, à pergunta “o que é Deus?”, a resposta foi assertiva: “Deus é amor”, adiantando que é por isso que sente “dificuldade” em relacionar-se “com a posição ateísta”. E demora-se a explicar: “Cada um de nós, mesmo os mais resistentes espiritualmente, anseia por amor, quer percebamos ou não. E esse anseio chama-nos para sempre em direção ao seu objetivo — que devemos amarmo-nos uns aos outros. Devemos amarmo-nos uns aos outros. E principalmente acho que o fazemos — ou vivemos muito próximos dessa ideia, porque quase não há distância entre um sentimento de neutralidade em relação ao mundo e um amor crucial por ele, quase nenhuma distância de todo. Tudo o que é necessário para passar da indiferença ao amor é ter os nossos corações partidos. O coração parte-se e o mundo explode diante de nós como uma revelação.”

O coração partido revela-se de muitos modos. E neste caso salva — como a música, já se sabe. “Para mim, a canção de amor existe, em última análise, para preencher o silêncio entre nós e Deus, para diminuir a distância entre o temporal e o divino.”

 

Texto originalmente publicado no Ponto SJ, a 2 de junho de 2023. Fotografia: Raph_PH (NickCaveCroydon040921 (4 of 41) | Raph_PH | Flickr)

Outubro 19, 2023

Os artifícios dos artífices

Miguel Marujo

possessed-photography-u3sowvixhky-unsplash-1440x51

 

Está instalado o debate – e o medo e a incerteza e a ignorância e a excitação. Tudo à vez, e tudo em separado: a inteligência artificial, que já anda cá há bastante tempo, irrompeu no nosso quotidiano como uma ferramenta ao alcance de todos. Já não é da ordem da ficção, já não é uma coisa de filmes (AI – Inteligência Artificial, de Steven Spielberg, é de 2001), é obra para nos inquietar.

O ChatGPT é uma dessas ferramentas mais reconhecíveis, mas nestas coisas logo se multiplicam que nem cogumelos, e para todos os gostos: os imediatamente comestíveis, aqueles que exigem domínio, nas mais variadas áreas. Filmes, canções, entradas de enciclopédia, até livros ou notícias, eventualmente remissões e orações, são passíveis de criação pela chamada inteligência artificial.

Perante este novo mundo, fica a dúvida se será admirável, como descrevia Aldous Huxley em 1932. Antecipa-se a extinção de profissões, uma artificialização da criação. Será assim? Um dos mais estimulantes criadores modernos na música atual, o islandês Ólafur Arnalds, que faz uso abundante de maquinaria e sons eletrónicos, mesmo nas suas produções mais ambientais ou sinfónicas (só para facilitar a leitura), enfrenta a questão, numa conversa no final de um concerto registado na paisagem seca de Hafursey, um inselbergue na Islândia.

Para um compositor que afasta a vontade de se aborrecer a fazer o que faz e ficar amarrado a uma só coisa, a inteligência artificial “começa a tornar-se um problema”. “Já se está a tornar um problema, mas é mais um problema para a indústria do que para mim, enquanto artista.”

Ólafur Arnalds explica aquilo que é a diferença entre cópia e o criador. “A arte não é apenas a música, tem de ter um sentido, tem de ter um propósito. Claro que a inteligência artificial pode copiar a minha música dentro de cinco anos, mas a inteligência artificial não está a tentar dizer-te nada, não tem nenhuma mensagem para ti, é só uma cópia, não há nenhuma originalidade, não há qualquer substância nem nenhum sentido — e isso é o que procuramos na música, é uma ligação humana, do que sentimos através das mensagens e das expressões, do que vivemos, como eu a tocar o piano aqui, é uma ligação entre mim e ti. A inteligência artificial é apenas uma cópia disto tudo.”

(O islandês fala sempre em “AI”, acrónimo para inteligência artificial, sem necessidade de tradução. Até com este artifício, a inteligência artificial parece querer poupar-nos tempo, simplificando…)

Um fã de Nick Cave — e desculpem-me regressar a ele, mas por estes tempos o músico australiano é também um dos mais interessantes a refletir sobre a arte e a criação — propôs-lhe uma letra “à Nick Cave”, feita com recurso ao ChatGPT. Para o frontman dos Bad Seeds, esta letra é “uma porcaria”. Cave notou, nesse texto de 17 de janeiro, que “o ChatGPT está apenas na sua infância, mas talvez esse seja o horror emergente da IA — o de que estará sempre na sua infância, pois terá que ir sempre mais longe e essa direção é sempre para frente, sempre mais rápida. Nunca pode ser revertida ou desacelerada, pois move-nos em direção a um futuro utópico, talvez, ou à nossa destruição total. Quem pode dizer qual?” À sua questão, Nick antecipa a resposta: “A julgar por essa música ‘ao estilo de Nick Cave’, não parece bom.” assume: “O apocalipse está a caminho. Essa música é uma porcaria.”

Mais tarde, em março, numa entrevista à New Yorker, Nick Cave surpreende-se por “haver pessoas inteligentes que acham o ato criativo tão mundano, que pode ser replicado por uma máquina”. “Sinto-me insultado por isso.” Para este artífice da música, os artifícios da criação são outros: “Não há nenhum motivo para se inventar uma tecnologia que possa imitar o ato criativo mais belo e misterioso. Especialmente no que toca a escrever canções. O que há de bom em compor uma canção, é que te diz algo sobre ti que não sabias antes. Não dá para imitar isso.”

Num futuro próximo, já ao virar da esquina, o caminho da criação e da criatividade poderá tropeçar em muita fake art ou em mais fake news. Mas nenhuma inteligência artificial substituirá a visceralidade das composições de Ólafur Arnalds ou Nick Cave, e de tantos e tantos outros artífices. Nada mais óbvio, nada mais humano.

 

Texto originalmente publicado no Ponto SJ, a 15 de setembro de 2023.

 

Outubro 17, 2023

Virginia Astley convida-nos para um passeio no campo. E deixa-nos uma promessa

Miguel Marujo

Virginia astley Kelmscott Singing Places.jpeg

O convite chegou por email – Virginia Astley anunciava (para o último domingo, dia 15) uma Listening Party do seu novo disco, apresentado na véspera de surpresa, na sua página no Bandcamp. The Singing Places é o título para um conjunto de composições que encontra fortes ecos na sonoridade encantatória de From Gardens Where We Feel Secure, obra-prima absoluta de 1983. 

Quarenta anos depois, os jardins dão lugar a singing places, um termo que a compositora e música britânica usa “para lugares que têm uma ressonância particular — seja emocional ou acústica, ou ambas!” 

Esta foi uma das breves explicações de Virginia Astley às perguntas que lhe foram sendo colocadas, ao longo da audição do (curto) disco de 26’30”, por fãs visivelmente entusiasmados – com o trabalho atual e, sobretudo, com as memórias de obras antigas. Havia aqueles que diziam estar a preparar-se para dormir, havia quem fizesse o jantar, quem escrevesse de Nápoles, em Itália, ou algures no americano Milwaukee, numa tarde em que a chuva tinha parado momentos antes.

As palavras eram sobretudo de alegria pelo novo trabalho – e a quem perguntou por uma eventual edição física, Virginia Astley prometeu: “Estou a planear lançar The Singing Places em CD e vinil.” A audição conjunta foi uma forma de perceber como reagiam os ouvintes ao novo trabalho, confessou a própria.

Virginia deixou ainda outra promessa, quando questionada por mim sobre se pensa gravar um disco de canções, como o notável Hope In a Darkened Heart (1986), no qual participaram David Sylvian e Ryuichi Sakamoto: “Eu gostaria muito de fazer novamente um álbum de músicas!” 

Na sua serenidade deliciosa, The Singing Places percorre os melancólicos caminhos familiares de From Gardens… Há pássaros que voam, os sinos da abadia de Dorchester, as águas de um rio, a chuva provavelmente gravada em Lechlade – quase se adivinha um outono de folhas caídas, naquelas margens. “As gravações de campo foram feitas em primeiro lugar”, explicou Astley. “A música é então escrita em torno delas.” A primeira gravação no terreno foi realizada em Moulsford, Oxfordshire. O campo impregna-se, por entre a trompa barítono, a harpa da filha Florence ou harmónios. Quando se ouvem pássaros, é Virginia que se entusiasma, explicando aos seus ouvintes: “Os abibes que estão a chegar são de Shifford.”

É também Astley que enquadra a imagem da capa: “A capa do álbum é Kelmscott – foi aqui que [o poeta e romancista inglês] William Morris viveu, o seu paraíso na terra.” Se há um qualquer paraíso na terra, o trabalho de Virginia Astley vai escrevendo parte da sua banda sonora. E o outono mora aqui.

 

Artigo originalmente publicado no Sete Margens, em 16 de outubro de 2023. Foto: “A capa do álbum é Kelmscott – foi aqui que [o poeta e romancista inglês] William Morris viveu, o seu paraíso na terra”, explicou Virginia Astley.

 

Outubro 16, 2023

“Religião & Panque Roque”, entre o palco e o púlpito

Miguel Marujo

FlorCaveira.jpg

 

Os gostos discutem-se, não se impõem, que é coisa diferente. Mas, na hora da verdade, acabamos por querer impor os gostos uns aos outros, “tens de ouvir isto” – e gostar, subentende-se. A música tem esta coisa gregária de nos juntar a estranhos e mais ou menos conhecidos, para celebrar, em conjunto, aquelas palavras e aqueles sons. Mas quando ouço falar em música cristã, a minha tentação é de fugir como o diabo da cruz. Não é por mal, é mesmo por gosto.

Nos dias da Jornada Mundial da Juventude, em agosto, pude ir confirmando aqui e ali a minha tese: no palco, havia púlpito a mais, sem rasgo ou criatividade, num aceno a um pop-folk de guitarras dedilhadas e bateria dengosa (e todos, algures, transformaram Simon & Garfunkel e Bob Dylan em baladinhas com poesia de mastigação fácil) ou um rock-fm daquele que acha que os solos de guitarra se fizeram para se estenderem até ao céu, intermináveis. Tomo o todo pelas partes que ouvi, mas facilita ao que venho.

Ryan Tremblay veio a Lisboa, nos dias da JMJ, e diz de si e da música que faz que “é em parte testemunho e em parte convite para quem quiser ouvir”. Em agosto, à Agência Ecclesia, o cantor americano de Nashville confessava-se: “Uma vez um padre meu amigo disse-me: As tuas canções têm mais poder que as minhas homilias. Porque as pessoas não saem a cantar as minhas homilias, mas cantam as tuas canções”, explicava o músico americano. Fui ouvir. As homilias do padre amigo devem ser mesmo muito fraquinhas. Sem pôr em causa a sua entrega: “Rimo-nos frequentemente, temos grande alegria no que fazemos e esforçamo-nos por criar uma atmosfera onde todos os presentes, incluindo nós, se possam lembrar de deixar um pequeno espaço nas nossas vidas para que a graça de Deus nos inunde mais uma vez. Esse é o objetivo de cada apresentação.”

Apesar da transcendência que se sente, a solução não é o regresso ao canto gregoriano, a Bach, Mozart, Monteverdi ou Brahms — ou apenas reutilizar a fórmula de Taizé, que traz uma beleza muito própria. A solução talvez seja mesmo seguir as pisadas de um grupo de gente com raízes em igrejas evangélicas. 

Com a graça de Deus, vários músicos apresentaram-se em pleno século XXI a meio caminho entre o palco e o púlpito: assumidamente cristãos, acolitaram-se na editora FlorCaveira, com o mote “Religião & Panque Roque”, fundada por um pastor batista, Tiago Cavaco, e pelo seu amigo Samuel Úria. A sua carteira de edições é muito respeitável: Tiago Cavaco, que já assinou como Tiago Guillul e integra Os Lacraus e outros projetos, mas também Úria, Jónatas Pires, Manuel Fúria, Diabo na Cruz, B Fachada, João Coração ou Os Pontos Negros, entre outros. Há coletâneas com títulos deliciosos como Cinco Subsídios para o Panque-Roque do Senhor ou Karaoke no Mundo das Trevas, um “novo disco no dia da Reforma”, que se antecipava como “o disco, em forma de cassete, [que] sai no dia 31 de outubro [e] que é tanto Halloween como Reforma Protestante”. 

Há uma certa heresia na ortodoxia destes evangélicos, na música e nas palavras: guitarras em distorção, canções mais gritadas que cantadas, vozes que sussurram amores impossíveis ou recordam as chamas do inferno, temas que dão pelo nome de Toca Xutos ou Salmo 20, Um coração partido é um coração curado ou Sinal da Cruz Invertida, ou versos que nos dizem “Conheci um velho chamado Nicodemos”. Lutero levantou-se de novo para promover uma reforma na música feita por cristãos.

 

 

O “trovador de patilhas”, como a própria editora descreve Samuel Úria, confessava numa entrevista para uma tese académica, em 2017: “Eu, apesar de ser duma religião protestante evangélica, não sou evangélico na minha música, mas a minha música reflete naturalmente aquilo que eu sou. A minha preocupação quando estou a escrever canções é ser fiel.” E ensaiava um credo novo, ao recusar uma possível contradição entre os princípios do punk e a condição de protestante batista: “No final do século XX e início do século XXI, não há nada de mais anti-establishment do que uma pessoa falar abertamente das suas crenças e assumir-se dependente duma entidade superior. Nos nossos dias, possivelmente, este é o ato mais rebelde que se pode ter. E, por isso mesmo, é até olhado de lado, com alguma desconfiança. Embora isso hoje já esteja mais esbatido, a verdade é que eu próprio, durante algum tempo, senti bastante essa desconfiança. Portanto, não há nada mais punk, mais rebelde, do que remontar àquilo que, para muitas pessoas, é uma espécie de atitude e de ideário ultrapassados.”

Com Tiago Cavaco é um pouco diferente, mais prosélito. Tiago desce do púlpito da sua igreja para subir ao palco e converter os ouvidos de incautos e incréus. Apresentado, no seu perfil do Spotify, como um “pregador gospel do punk rock, falso tatuador, escritor português aspirante a americano, [que] começou a ensaiar as suas péssimas primeiras bandas grunge em 1992 [e] nunca mais parou. Em 1999 ele e alguns amigos criaram o selo FlorCaveira e desde então vêm fazendo discos, amigos e inimigos”. Haja fé. Como a que Samuel Úria professa: “As minhas questões de fé não são nem culturais, nem sociais. Eu simplesmente uso-as para fazer uma afirmação que julgo necessária.”

Talvez haja por aí alguma música dita católica que valha a pena, mas neste caso quis mesmo trazer-vos esta música que salta do púlpito para o palco, sem pedir licença, e entre a heresia e a ortodoxia nos põe a dançar e a pensar. E é isto que falta nas celebrações e missas católicas, como também nas iniciativas em que se pretende “passar uma mensagem”. Batam palmas na igreja.

 

Texto originalmente publicado no Ponto SJ, a 6 de outubro de 2023, com o títuloEntre o palco e o púlpito. Será que é recomendável a música (dita) cristã?, e republicado no SeteMargens com este título, a 15 de outubro. Na foto, retirada da página de Facebook da editora, músicos da FlorCaveira em palco (com Tiago Cavaco à direita). A editora define-se pelo mote “Religião & Panque Roque”.