Junto às águas do Tejo, uma voz cristalina, exótica e lânguida, umas vezes sussurrada, outras solta, invocou espíritos em volta, as tágides vizinhas, xamãs e deidades de outros continentes, espíritos da floresta ou os deuses Bochica, Bachue e Furachogua, e a deusa-Lua Chia ou o deus-criador Chiminiguagua, resgatados a terras colombinas.
Lucrecia Dalt — é dela a voz da sacerdotisa — regressou a Lisboa (a 3 de abril) para encher com a sua sonoridade um mistério maior que é Ay!, o seu mais recente e espantoso disco, pretexto para a digressão que começou por cá (primeiro, nos Açores, Coimbra e Braga, e depois no palco lisboeta do B.Leza). Se Ay! foi o pretexto, Lucrecia navegou também pelas águas de discos anteriores, numa tensão crescente que dificilmente se fecha em categorias formatadas, entre a pop e o jazz, o experimentalismo e o ambient.
No concerto, Dalt juntou programações e teclas à voz, e a bateria e percussões de Alex Lázaro. Talvez fosse a proximidade da água, mas naquele palco o que se viu foi um concerto levantado do chão, também literalmente: o baterista e percussionista, praticamente sentado, emergia do palco, por entre uma árvore de instrumentos, enquanto Lucrecia abria socalcos em volta, entre Atemporal ou No tiempo, e criava tremores nos corpos que escutavam a música.
É desta mesma massa que se faz Ay!, o álbum de 2022, que descobri por um acaso de algoritmos — e que aprofunda as linguagens de discos anteriores como Anticlines ou No Era Sólida ou da banda sonora The Seed. Em Ay! há uma marca visceral que percorre estrias e canções, palavras e sons, em que a colombiana nos convoca para um transe encantatório. Foi assim no palco do B.Leza, é assim no seu mais recente disco. Há rituais para os quais gostamos de ser chamados.
Há quem goste de fazer crítica assim: somam-se nomes, uns mais conhecidos que outros, mas de preferência relativamente obscuros, citam-se uns quantos géneros musicais, classificações sempre elaboradas e intrincadas, como shoegaze ou neo-psychedelia, que nos remete para uma textura sónica e atmosférica (não inventei, está na wikipedia) — e já está. Brinco, um pouco a sério, mas não resisto ao exercício.
Comecemos por meter numa qualquer mesa de mistura The Sundays, Cocteau Twins, Mazzy Star, His Name is Alive ou Lana Del Rey e talvez descubramos “um dos mais curiosos nomes da nova vaga de dream pop californiana”, como li numa breve apresentação promocional do novo álbum de Winter, What Kind of Blue Are You?, o seu quarto longa-duração, lançado a 27 de janeiro, e o segundo com o selo da Bar/None. E podemos colar shoegaze ou neo-psychedelia a estas dez canções que não vai mal para a crítica de referências (o Spotify já se antecipou, constato mais tarde, e arruma Winter numa lista de “shoegaze now”).
Winter atira-nos para fins de tarde de verão, ou esta primavera quente, em que os corpos pedem praia mas o mar é de inverno e todos os cuidados são necessários: as correntes puxam mais do que os olhos veem, há agueiros traiçoeiros, e sabemos que é preferível a onda ao mar enganadoramente calmo, e as águas de abril ainda não fecharam o inverno.
A biografia ajuda a perceber esta misturada: Winter é Samira Winter, de Curitiba, filha de mãe brasileira e pai americano, que foi viver para Los Angeles e criou uma banda com nome invernoso em Boston.
Afinal de que tons azuis se fazem os nossos dias? Entre a delicadeza das guitarras de wish i knew (a canção de abertura; os temas do disco vão todos escritos em minúsculas), a alegria contida de atonement (com a colaboração de Hatchie) ou as distorções delicadas de good (a meias com SASAMI), e a voz que se lhes cola, mais ou menos deliciada, como em sunday ou lose you, e temos aquele mar de inverno a fazer-se de verão.
Dream pop? Confere: é a própria Winter que se apresenta no seu site como daydreamingwinter. Fez-se um bonito verão esta Winter.
Na hora da morte, as palavras tornam-se acessórias: duas datas num fundo de tonalidades cinzentas, 17 de janeiro de 1952 – 28 de março de 2023. E uma imagem que sobressai depois, um piano carcomido pelo tempo, deixado ao abandono, as teclas em sobressalto, gastas, velhas, partidas. E sem som algum a acompanhar – o silêncio é música, também na hora da morte.
Ryuichi Sakamoto morreu na terça-feira, dia 28 de março, soube-se no domingo, 2 de abril, e o anúncio foi feito daquele modo simplesnas suas páginas das redes sociais. Já se esperava: em 11 de dezembro, o compositor e músico japonês tinha dado um concerto para 30 países emstreaming, antecipando a sua última prestação “ao vivo” e um disco, anunciado para 17 de janeiro, data do seu aniversário.A doença minava-o.
Nesse dia, foi divulgado12, o nome do que é afinal o seu testamento, um novo disco de 12 canções, uma obra de quem sabia que a sua vida vivia o ocaso mas continuava a espantar-se e a espantar-nos com a beleza das coisas.
O disco pede recato, paciência e silêncio (como nesta hora do ocaso), numa “impressionante tapeçaria de teclados, elétricos e acústicos, misturando [música] ambiental e clássica”, “um soberbo ensaio introspetivo”, no qual Ryuichi “examina a morte”,como definiu o crítico daQobuz Magazine. O silêncio sempre a cair sobre este disco.
Este é um registo que mora bem mais próximo do que se espera da sua obra para cinema ou dos registos pop – da Yellow Magic Orchestra a discos comoNeo GeoouBeauty.Sakamoto é, para muitos, o piano e a composição deFeliz Natal, Mr. Lawrence, com David Sylvian a cantarForbidden Colours, uma das mais belas pérolas da pop, mas também o compositor de parte da banda sonora deO Último Imperadore das composições deUm Chá no Deserto/The Sheltering Sky, dois filmes de Bernardo Bertolucci.
Entre discos em nome próprio e bandas sonoras, o japonês também colaborou com muitos outros músicos, instrumentistas e compositores, como o músico alemão Alva Noto, com quem partilhou vários discos (notáveis), David Sylvian, com quem gravou um conjunto de canções extraordinárias (e já falámos deForbidden Colours), Virginia Astley, que reuniria Sylvian e Sakamoto no belo discoHope in a Darkened Heart, ou Jaques e Paula Morelenbaum, com quem partilhouCasa, um projeto com música de Tom Jobim (e Jaques também se junta a Sakamoto em1996eThree).
Muitos outros passaram pelo radar e pelos discos do japonês, como Robert Wyatt, Youssou N’Dour ou os Talking Heads – e todas estas referências são curtas.AoPúblico, em 2006, admitia: “Às vezes as colaborações são mais inspiradoras. Trabalhar com outros coloca-nos em confronto com aspetos de nós próprios que muitas vezes estão ocultos. É mais surpreendente.” Afinal, “compor para filmes, encetar colaborações ou criar álbuns a solo é o mesmo”.
O francês Claude Debussy era a sua influência, o seu “herói”, e disse-o até ao fim. “A música asiática influenciou fortemente Debussy, e Debussy influenciou-me fortemente. Assim, a música dá a volta ao mundo e fecha o círculo”,explicou-se em 2010. E com esta ideia o próprio foi definindo a sua música. Ao ouvir-se Ryuichi, nota-se que há uma forte curiosidade no seu percurso, há muita música do mundo, de vários mundos, há muitas vozes de tantas partes do globo, e o que se ouve é, na sua longa discografia, uma música que soube escutar e absorver sonoridades e foi ganhando um corpo próprio e uma voz única, fosse a solo, em orquestras,ensemblesou colaborações a dois.
Namesma entrevista aoPúblico, questionado sobre se o excesso de música no espaço público se tinha tornado no seu principal inimigo, dizia que era “possível”. E acrescentava: “No nosso estilo de vida, a música é mais um produto de consumo. O excesso de música faz com que estabeleçamos com ela uma relação de quase indiferença. Pelo excesso, nivelamo-la de igual forma – a boa e a medíocre. Precisamos de silêncio, como na peça [4’33”] que John Cage compôs nos anos 50. Não sei se estamos próximos desse espírito, mas há sombras de Cage a atravessar a nossa música. Temos que reaprender a ouvir. Saber estar no silêncio, é o princípio.”
Talvez tenha sido esta ideia, de reaprender a ouvir, que levou Sakamoto a abordar ochefde um restaurante japonês em Nova Iorque, onde ia com muita frequência quando vivia na cidade americana, para lhe sugerir que ele próprio faria aplaylist(sem cobrar por isso) do restaurante em Murray Hill, por não suportar o que ouvia durante as refeições.Ben Ratliff contou a história nas páginas doNew York Times, em 2018, e escrevia que não era tanto o facto de a música estar alta que incomodava Ryuichi, mas que a mesma “era irrefletida”.
Na descrição do jornalista, não havia temas de Sakamoto. Havia solistas de piano, “de várias tradições indistintas; algumas melodias que poderiam ter sido composições de bandas sonoras de filmes; um pouco de improvisação”. E acrescentava: “Onde havia voz, geralmente não era em inglês. Reconheci uma faixa do discoNative Dancerde Wayne Shorter, com Milton Nascimento, e uma pianista que soava como Mary Lou Williams, embora não tivesse a certeza. Não era uma música que estabelecesse uma marca, ou do tipo que dá vontade de gastar dinheiro; representava o profundo conhecimento, a sensibilidade e as idiossincrasias de um cliente dedicado. Eu senti-me espantado e acolhido com sensibilidade. Senti-me em êxtase.”
Sakamoto preferia o silêncio, ou fugir dos sítios onde não gostava da música que ouvia. No seu caso, dois cancros na última década – um primeiro, na garganta, de que recuperou, e um segundo no intestino – foram prolongando os seus tempos de silêncio. O disco que ouvimos em janeiro (e terá edição física nas próximas semanas) nasceu de quase um acaso, um esforço mais do compositor e músico, com os 12 temas a receberem o nome dos dias em que foram gravados.
“Depois de finalmente ‘voltar para casa’, para o meu novo alojamento temporário após uma grande operação, dei por mim a pegar no sintetizador. Não tinha intenção de compor algo, só queria ser inundado de som”,confessou. E inundou-nos de vida.Arigatō, Ryuichi.Sayōnara.