Março 10, 2023
A cidade dos canais e dos doces e da arquitetura e...
Miguel Marujo
Esqueça o cliché da Veneza portuguesa, ainda que haja canais e barcos únicos. Não se queixe da dieta, ainda que haja ovos moles e muitos doces. Lembre-se que isto é património da humanidade, ainda que a UNESCO ande distraída.
Este texto de 2012 propunha um roteiro para 24 horas, ou mais, e está obviamente datado nas recomendações mais práticas - de restaurantes e bares, por exemplo, e até de empreitadas duvidosas que se anunciavam, mesmo que a cidade esteja ainda esburacada no Rossio para um parque de estacionamento ruinoso e a Avenida tenha sido tomada de assalto por obras de Santa Engrácia e dona estragação. Boas novas: a Maria da Apresentação já está posta também ao lado da Costeira. E há mil e uma outras coisas boas a fazer.
Ovos moles, caramujos e cartuchos, castanhas de ovos, lampreia de ovos, tripa de ovos ou com chocolate. Tome nota: 24 horas em Aveiro têm de incluir estes doces. Não se queixe da dieta que as calorias gastam-se a pedalar. O passeio que agora está a começar é de buga, que é como quem diz a bicicleta gratuita que o leva a (quase) todo o lado deste roteiro de um dia só. A cidade dos canais também pode ser vista de barco — mas falta-lhe a dimensão épica de Veneza, onde a água se intromete em todas as vielas e cantos — ou percorrida a pé, tarefa facilitada numa cidade plana.
Para chegar à terra de cagaréus e ceboleiros, o melhor é o comboio que permite ver logo à chegada a Estação da CP, edifício que em 1916 foi decorado com os azulejos que o tornaram um dos cartões de visita de Aveiro. Depois desça a pé "a Avenida", que não precisa de outro nome, até chegar ao antigo Cine-Teatro Avenida, onde a Oposição Democrática à ditadura de Salazar saiu à rua. É hoje um bingo.
Está perto da loja das bugas, onde pode recolher a bicicleta para passear. Para os ouvidos, banda sonora também há: a "Menina da Ria" que "encheu de elegante alegria" o baiano Caetano Veloso.
Depois já sabe, trilhe os seus roteiros. O das pastelarias, com montras de comer e chorar por mais. Na Avenida, que os aveirenses também chamam de Ramos, pare, veja e coma: cartuchos e caramujos. Há quem fique cheio só de olhar. Na Costeira, compre uma barrica de ovos moles, enquanto não chega à fábrica deles — nas ruas da Beira-Mar, antigo bairro de pescadores e marnotos — a de Maria da Apresentação e herdeiros, cujas partilhas se traduzem desde 1882 nas castanhas, nas broas e nos obos móis, também em hóstias com que, diz a lenda, a freira castigada por gula embrulhou os ovos e o açúcar.
Leve a bicicleta pela mão e perca-se até à Praça do Peixe, local a que voltará à noite — é aí a movida noturna aveirense, com bares de todas as bebidas e feitios, que transbordam para a rua. (Atenção ao Bucha e Estica, onde os copos como Laurel e Hardy engordam ou emagrecem.) Não estranhe que por aqui se meta em atalhos e tropece nos canais em que a ria namora a cidade. O Cais dos Botirões, a desaguar na praça, é o mais emblemático — nas cores refletidas na água.
Está próximo do Canal de S. Roque, por onde correm antigos barracões de sal, os salineiros ali encostados pela pouca serventia, que o sal hoje definhou, e os moliceiros que levam turistas sem o moliço que antes alimentava as hortas das populações anfíbias.
Vai acabar por chegar ao Rossio e ao Canal Central, entaipados para uma ponte de duvidosa utilidade e estética. Faça uma pausa para uma tripa (de ovos ou chocolate ou mista, e não pergunte o que são: coma!), na casa delas.
Mora ali também a Casa Major Pessoa, belíssimo objeto de arte nova (e museu), em que Caetano também notou.
A arquitetura da cidade não se reduz a este e mais alguns exemplares vizinhos de arte nova. O campo universitário é uma montra dos nomes maiores da arquitetura. Siza Vieira, Souto Moura, Carrilho da Graça, Gonçalo Byrne, Alcino Soutinho e muitos outros. Um catálogo vivo que se deita junto à ria que foi durante séculos vida e morte de Aveiro.
Esse é mesmo o último roteiro a fazer: explorar as redondezas, a ria de Norte a Sul, ver a obra de engenharia que foi a barra do porto, na Praia da Barra (e o seu Farol, o maior do país), a praia da Costa Nova e os seus palheiros às riscas, e São Jacinto das dunas.
A jornada pede alimento. Recomendações locais indicam O Batel ou O Marujo (declaração de interesses: não é da família), La Mamaroma ou a Pizzarte (ai os crepes de ovos moles!) e o hambúrguer do Ramona (fama local que merece o mundo). A noite pode ainda acabar no Olaria, um bar na antiga Fábrica Campos, de cerâmica. Se não derem 24 horas, use mais tempo. A UNESCO anda distraída, mas Aveiro é património da humanidade.
[artigo originalmente publicado no Diário de Notícias, em 14 de agosto de 2012; fotos de julho de 2022, em Aveiro e na Costa Nova © Miguel Marujo]