Fevereiro 15, 2023
Há mais de 50 anos, aquele estudante levantou-se e pediu a palavra. "Um momento libertador"
Miguel Marujo
Há 50 anos, aquele instante em que disse "peço a palavra" mudou a sua vida?
Sim, em alguma medida sim. Terá mudado a vida da gente da minha geração da Universidade de Coimbra porque foi o desencadear de uma grande e grave crise académica em Coimbra. Foi um momento tão forte na universidade. No fundo é uma greve às aulas e greve a exames, num momento de grande pressão política e simultaneamente de grande consciencialização política, numa altura e numa situação, em 1969, em Portugal, em que a Guerra Colonial tinha começado oito anos antes, estávamos num país pobre, subdesenvolvido, desigual, o grau de analfabetismo da ordem dos 33%, com uma Guerra Colonial, com uma ditadura.
Foi um momento muito forte da academia de Coimbra. Obrigou a mudar a vida de todos nós porque as opções que foram feitas - da greve às aulas, a greve a exames... Esta, por exemplo, tem uma coisa única: foi um momento coletivo, mas era um momento que implicava uma opção de natureza individual, e fazer a greve a exames implicava a perda de ano, eventualmente a incorporação militar, a perda de bolsas de estudo nalguns casos, os estudantes das ex-colónias com a perda das bolsas de estudo e eventualmente a impossibilidade de continuar os estudos em Portugal, aos brasileiros também...
E ir contra a vontade dos pais, em muitos casos.
Exatamente isso. O estudante não tem autonomia financeira e económica e dependia da vontade dos pais. Há um traço interessante em Coimbra... Coimbra é uma cidade universitária, 15% dos habitantes na altura eram estudantes universitários, nós éramos nove mil. Tudo o que se passava em Coimbra tinha muita força, mas um dos fatores que contribui para aquilo que foi único na vida da resistência à ditadura na universidade portuguesa - uma greve a exames -, foi o facto de 70% dos estudantes da Universidade de Coimbra serem de fora da região. Havia três universidades na altura, Porto, Lisboa e Coimbra - Lisboa tinha 13 mil na Universidade Clássica, uns dez ou oito mil no Técnico, Porto era mais pequeno, tinha uns oito mil. Contrariamente a Porto e Lisboa, que eram da ordem dos 50%, em Coimbra 70% eram de fora, o que lhes permitia ter uma maior distância em relação às pressões familiares, pressões sociais do meio em que estavam inseridos. E isso foi um fator muito importante, julgo eu, na decisão da greve a exames.
Naquele momento em que pediu a palavra, na altura ao Presidente Américo Tomás, imaginava que pudesse atear o rastilho que provocou?
Não (risos)! Isso foi absolutamente imprevisível. O ato de pedir a palavra foi decidido coletivamente na noite anterior, pelos meus colegas, foi feita a sugestão de pedir a palavra se houvesse condições para isso. Eu fui-me deitar, dormi mal nessa noite (risos), preocupado... Tinha mais ou menos previsto o que era previsto, com alguma angústia, devo dizer: "O que é que me vão fazer? Vão-me prender? Vão-me bater? Vão-me deixar falar? Vão abafar aquilo que vou dizer?"
Eu tinha decidido pedir a palavra, achava que era uma questão de honra. Tinham dito para pedir se tivesse condições, eu para mim iria criar as condições, estava com essa determinação. Mas a determinada altura comecei a pensar para mim: "Vou fazer isto, o que é que vai ficar deste gesto? Isto vai-se perder, porque é um ato de reivindicação dos estudantes de Direito a intervir na vida da sociedade." Mas entretanto começam a entrar os meus colegas, mil, mais de mil, e então a minha alma subiu. É um momento de grande tensão.
Naquela pausa de discursos, pede então a palavra.
Eu estou num momento de grande tensão, por um lado a imaginar que palavras ia usar. Estou de capa e batina que é para se saber que sou um estudante, a minha condição de estudante ser afirmada logo que me levantasse, saberem que era um estudante que estava a levantar-se... A maior parte daquela gente, os ministros, o Chefe do Estado, os chefes militares, as altas autoridades académicas, eclesiásticas, os pides, ninguém me conhecia.
Eu tinha de pedir a palavra de forma a que não seja uma provocação porque isto tem de ser visto como um exercício de uma legitimidade de pedir a palavra, por parte de um estudante, do presidente da Associação Académica, na circunstância, que é pedir a palavra em nome dos estudantes e quer fazê-lo de uma forma solene, firme, rigorosa, mas respeitando as regras da urbanidade, que era forçoso respeitar, era isso que eu queria.
Eu tinha a consciência de que os setores mais retrógrados, mais ultras, o fascismo mais duro, iam tentar colocar aquilo como uma arruaça, e eu tinha de pôr aquilo como um gesto de legitimidade do uso da palavra. Por isso, estou aqui numa grande indecisão de qual é o momento de pedir a palavra: falou o reitor, falou o decano da faculdade e a seguir ia falar o ministro das Obras Públicas, estava a soerguer-se e eu disse bem, "é aqui o meu momento", porque estou entre a universidade e o governo, era mais uma forma de evitar a leitura da provocação...
Quando me levanto, há uma salva de palmas brutal dos estudantes e eu digo: "Neste momento, em nome dos estudantes de Coimbra, peço a palavra a Vossa Excelência", qualquer coisa assim, e fico de pé. Aquela gente levanta-se toda, há uma salva de palmas dos estudantes, dentro e fora da sala, que é uma coisa impressionante, a minha alma voa, porque tinha cumprido a honra da academia, tinha conseguido vencer todas as resistências, o medo. O ambiente era difícil, estávamos em ditadura e o destino estava traçado para quem fizesse uma coisa dessas. Aos aplausos, há gritos de "fora! fora", dos fascistas, há um burburinho.
O Chefe do Estado Américo Tomás tem uma pausa, acho que fala com um ministro, assim um bocado indeciso, e faz-me um gesto e "mas agora fala o ministro das Obras Públicas". Eu sento-me e fico na dúvida se a palavra me seria dada. Nas declarações da PIDE, os tipos ficaram sempre com a ideia de que eu estava a tentar ludibriá-los, mas não era verdade. E depois constatei que muitos professores, no inquérito que foi instaurado, também ficaram na dúvida. E muitos dos meus colegas...
Aquele "mas agora" abre essa dúvida.
Sim, fiquei tanto na dúvida que fiquei a arquitetar mentalmente o que é que iria dizer. Eu tinha umas notas, ia falar dos 33% de analfabetos em Portugal, de uma universidade elitista, onde o número de pessoas que chegavam à universidade era muito pequeno, da degradação do país, de uma universidade arcaica, da juventude do país, era o que eu ia falar...
Estava a arquitetar mentalmente, acaba a falar o ministro e o Américo Tomás sai com toda a comitiva, abruptamente, e aí é que é um coro brutal, "queremos falar! queremos falar!", e eles saem com os pides à cotovelada. A malta estudante ia deixando-os passar mas sempre a dizer "queremos falar! queremos falar!" Eu estou dentro da sala, só ouço "queremos falar! queremos falar!", e depois começam outros ditos, "palhaços, fantoches".
Fico na sala, entram estudantes que dizem para falar e levanto-me, ponho-me de pé... E depois falei. E falou o Carlos Batista, da junta de delegados de Ciências; o Celso Cruzeiro e o Barros Moura, que nós considerámos a verdadeira inauguração do edifício. As autoridades do regime foram para uma sala, mas os altifalantes estavam ligados para o exterior, eles provavelmente ouviram aquilo que não queriam. (risos)
"Quando sou preso, há estudantes que os insultam, 'assassinos', 'fascistas'. E insultos menos adequados à luta política."
Acaba por passar essa noite na prisão?
Sim. Nessa noite eu estava na Associação Académica, estávamos todos muito satisfeitos, tinha sido um grande momento. Eu tinha dormido no dia anterior muito mal, e às duas eu disse que me ia deitar e temos a informação de que a PIDE estava a cercar as portas de saída da Associação Académica, havia agentes em todas as portas. Saem alguns estudantes para ver qual é a reação deles e não acontece nada. E às 02.00 eu saio com muitos estudantes, mulheres e homens, e dirigem-se-me uns sete agentes da PIDE, com um crachá e uma pistola, "é o sô fulano de tal, está preso, acompanhe-me à sede da PIDE" e lá fui. Quando sou preso, há estudantes que os insultam, "assassinos", "fascistas". E insultos menos adequados à luta política (risos) e sou interrogado durante a noite, "quem é que estava por trás", queriam saber...
Com ou sem violência?
Sem violência. A conversa era sobre quem estava por trás disto, que organização tínhamos. Nós não tínhamos organização nenhuma.
Eram os estudantes...
Eram, eram os estudantes.
Cinco dias depois, há estudantes que são suspensos.
São estudantes que eles consideravam os responsáveis. Na PIDE, inicia-se um processo-crime contra mim, um crime de segurança interna contra a honra e a consideração devida ao Chefe do Estado, que de acordo com o Código Penal, se fosse provado - e naturalmente era provado, eu tinha-me levantado em público contra o Chefe do Estado - dava prisão efetiva de um a três anos. Iniciaram logo o processo-crime, por ordem do diretor nacional da PIDE, Silva Pais. A 22 de abril, todos os estudantes da Direção-Geral, o Osvaldo de Castro, o Celso [Cruzeiro], a Fernanda Bernarda, o José Gil [Ferreira], o Matos Pereira, mais o delegado de Ciências, o Carlos Baptista, e o Barros Moura, que tinham falado na sessão - é uma sequência direta dos acontecimentos de 17 de abril.
Isso faz precipitar uma maior contestação?
Na noite em que sou preso, cerca de duas, três centenas de estudantes são barbaramente espancados na sede da PIDE. Coimbra era uma cidade muito noctívaga e, quando sou preso, a notícia correu muito célere, pelas repúblicas, pelas casas de estudantes. Passado um quarto de hora, meia hora, estavam duas, três centenas de estudantes à sede da PIDE e os tipos fazem uma carga violentíssima, com cães-polícias, sem qualquer aviso prévio. Foi muito chocante e revoltou muito a academia e durante a noite foram distribuídos comunicados por Coimbra a dar conta desses factos.
Entretanto, a 22, há essa suspensão desses oito estudantes que dá origem a uma assembleia magna, onde há grande participação de professores. A suspensão tinha sido decidida pelo ministro da Educação: suspensão de frequência das aulas e de todos os atos da universidade até apuramento das responsabilidades. Isto na prática significava a expulsão da universidade.
A assembleia magna decide-se por uma greve às aulas, transformando-as em debates e discussão sobre a situação da universidade. Nós defendíamos uma universidade nova e a greve é estrategicamente radical e taticamente moderada nos meios que utilizamos. A diferença de Coimbra. E daí ter sido a maior greve na universidade portuguesa, é porque foi uma greve de massas, a greve a exames com 85% de adesão dos estudantes da Universidade de Coimbra.
Note-se que se vive um período de transição, estamos em 1969, cai o Salazar e está Caetano e é talvez o primeiro momento em que Caetano acaba por revelar a identidade repressiva do regime [depois da sua posse]. A suspensão que nos é feita é contra mesmo as regras da ditadura, sem contraditório, não ouviram a outra parte, sem processo disciplinar.
Há uma inabilidade do ministro José Hermano Saraiva em lidar com tudo isto ou é apenas a faceta repressiva do regime?
É uma faceta, é a identidade repressiva do regime: ele é um homem autoritário, é um ultra, ele é o "quer, posso e mando". José Hermano Saraiva prestou um grande serviço à luta de Coimbra no dia 30 de abril, quando ao fim de dias, desde 17 de abril, ele vem fazer uma comunicação ao país, num período de ditadura, com censura...
... sem saber do que se passava.
Sem saber do que se passava e ele vem anunciar que a Universidade de Coimbra está desde o dia 17 de abril sujeita a grandes perturbações, agitadores, os estudantes não estudam, as famílias e tal... Vem fazer um apelo demagógico e termina com um ato impositivo, garante aos portugueses que a ordem será restabelecida.
Foi uma declaração de guerra forte. Que teve uma resposta brutal: no dia seguinte, numa assembleia magna, recrudesceu a movimentação estudantil, de tal forma que a greve às aulas continuou e o Saraiva vê-se na necessidade de, em 6 de maio, encerrar a Universidade de Coimbra, um gesto repressivo muito forte. E diz que só quando houver exames é que a universidade será reaberta e isso colocou-se a nós, o que quero fazer.
E decidiram-se pela greve aos exames?
É uma decisão lenta, muito maturada porque havia os que defendiam que se devia fazer um ato de repúdio, de relevo público. Mas tínhamos de garantir uma assembleia magna com muita gente, e tivemos seis mil. E no dia 2 de junho a universidade está cercada pela Guarda Republicana, com jipes com arame farpado, polícia a pé, a cavalo, estudantes a começarem a ser presos e a serem absolvidos no tribunal da comarca, acusados de um crime que era o de perturbarem exercícios fundamentais previstos na Constituição.
No fundo eram os piquetes de greve para evitar as idas aos exames, mas nunca condenaram ninguém porque isso implicava ser preso em flagrante delito. Mas isso nunca se verificou dada a velocidade dos piquetes, quando a polícia chegava (risos). Prenderam uma centena de estudantes. A Direção-Geral acabou por ser presa em agosto... E depois há a incorporação militar de 49 estudantes em outubro.
Pelo meio, há acontecimentos que têm muita importância na cidade de Coimbra: fazemos a operação Flor e a operação Balão, para conquistar a população; não se faz a Queima das Fitas, e explica-se à população porquê. A Queima das Fitas tinha uma importância brutal na vida comercial, nos serviços de Coimbra e nas contratações de artistas.
E temos também a felicidade da final da Taça de Portugal, Académica-Benfica, que é uma vitrina fantástica. Distribuímos 35 mil comunicados, passamos as tarjas no intervalo do jogo, a equipa da Académica, que era constituída esmagadoramente por estudantes universitários, estava de luto, e entraram com as capas em sinal de luto. O Tomás, o governo, os ministros, os secretários de Estado, ninguém apareceu e a TV também não transmitiu.
Depois há um regresso à normalidade?
Há uma delegação de Coimbra que é recebida pelo Chefe do Estado, cai o reitor, que é do regime, ultra, cai o ministro da Educação e vem o Veiga Simão e há um novo reitor, que aliás é um democrata, o professor Gouveia Monteiro. E a Associação Académica é reaberta... E a vida académica continua. Há um recuo brutal do governo, nessa altura.
Cinquenta anos depois há alguma mensagem daqueles dias que permanece?
Sim, acho que há muitas coisas: o fim da ditadura, o fim da Guerra Colonial, o fim de um país subdesenvolvido, isso foi alcançado. Agora, uma sociedade desenvolvida, economicamente sustentável, uma dimensão de realização da universidade, dos jovens, do sonho que vivia em cada um de nós, continua por cumprir. Mas isso é a ideia de que o essencial de 1969 foi o que o movimento gerou e esse movimento continua sempre: é o movimento da juventude, do sonho, de uma sociedade mais justa, menos desigual, mais solidária, que de alguma medida nós vivemos naqueles momentos. Que se projetam numa dimensão muito mais ampla, a nível local, nacional, planetário.
E 50 anos depois esta memória é tão presente que só pode ter sido muito marcante para si.
É um momento muito marcante. Tenho a noção de que cada um de nós, que estivemos em Coimbra nessa altura, e que estivemos do lado certo da história, viveu como um momento libertador e um momento galvanizante. E cada um de nós viveu numa dimensão própria. Sendo um movimento coletivo, foi também um movimento interior que nos interpelou muito, que nos obrigou a grandes decisões. Foram momentos duros, difíceis, mas foram também momentos de grande exaltação e de festa.
[Entrevista originalmente publicada no DN, em 17 de abril de 2019; fotos do artigo original]