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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Fevereiro 15, 2023

Há mais de 50 anos, aquele estudante levantou-se e pediu a palavra. "Um momento libertador"

Miguel Marujo

Há 50 anos, aquele instante em que disse "peço a palavra" mudou a sua vida?

Sim, em alguma medida sim. Terá mudado a vida da gente da minha geração da Universidade de Coimbra porque foi o desencadear de uma grande e grave crise académica em Coimbra. Foi um momento tão forte na universidade. No fundo é uma greve às aulas e greve a exames, num momento de grande pressão política e simultaneamente de grande consciencialização política, numa altura e numa situação, em 1969, em Portugal, em que a Guerra Colonial tinha começado oito anos antes, estávamos num país pobre, subdesenvolvido, desigual, o grau de analfabetismo da ordem dos 33%, com uma Guerra Colonial, com uma ditadura.

Foi um momento muito forte da academia de Coimbra. Obrigou a mudar a vida de todos nós porque as opções que foram feitas - da greve às aulas, a greve a exames... Esta, por exemplo, tem uma coisa única: foi um momento coletivo, mas era um momento que implicava uma opção de natureza individual, e fazer a greve a exames implicava a perda de ano, eventualmente a incorporação militar, a perda de bolsas de estudo nalguns casos, os estudantes das ex-colónias com a perda das bolsas de estudo e eventualmente a impossibilidade de continuar os estudos em Portugal, aos brasileiros também...

 

 

E ir contra a vontade dos pais, em muitos casos.

Exatamente isso. O estudante não tem autonomia financeira e económica e dependia da vontade dos pais. Há um traço interessante em Coimbra... Coimbra é uma cidade universitária, 15% dos habitantes na altura eram estudantes universitários, nós éramos nove mil. Tudo o que se passava em Coimbra tinha muita força, mas um dos fatores que contribui para aquilo que foi único na vida da resistência à ditadura na universidade portuguesa - uma greve a exames -, foi o facto de 70% dos estudantes da Universidade de Coimbra serem de fora da região. Havia três universidades na altura, Porto, Lisboa e Coimbra - Lisboa tinha 13 mil na Universidade Clássica, uns dez ou oito mil no Técnico, Porto era mais pequeno, tinha uns oito mil. Contrariamente a Porto e Lisboa, que eram da ordem dos 50%, em Coimbra 70% eram de fora, o que lhes permitia ter uma maior distância em relação às pressões familiares, pressões sociais do meio em que estavam inseridos. E isso foi um fator muito importante, julgo eu, na decisão da greve a exames.

Naquele momento em que pediu a palavra, na altura ao Presidente Américo Tomás, imaginava que pudesse atear o rastilho que provocou?

Não (risos)! Isso foi absolutamente imprevisível. O ato de pedir a palavra foi decidido coletivamente na noite anterior, pelos meus colegas, foi feita a sugestão de pedir a palavra se houvesse condições para isso. Eu fui-me deitar, dormi mal nessa noite (risos), preocupado... Tinha mais ou menos previsto o que era previsto, com alguma angústia, devo dizer: "O que é que me vão fazer? Vão-me prender? Vão-me bater? Vão-me deixar falar? Vão abafar aquilo que vou dizer?"

Eu tinha decidido pedir a palavra, achava que era uma questão de honra. Tinham dito para pedir se tivesse condições, eu para mim iria criar as condições, estava com essa determinação. Mas a determinada altura comecei a pensar para mim: "Vou fazer isto, o que é que vai ficar deste gesto? Isto vai-se perder, porque é um ato de reivindicação dos estudantes de Direito a intervir na vida da sociedade." Mas entretanto começam a entrar os meus colegas, mil, mais de mil, e então a minha alma subiu. É um momento de grande tensão.

Naquela pausa de discursos, pede então a palavra.

Eu estou num momento de grande tensão, por um lado a imaginar que palavras ia usar. Estou de capa e batina que é para se saber que sou um estudante, a minha condição de estudante ser afirmada logo que me levantasse, saberem que era um estudante que estava a levantar-se... A maior parte daquela gente, os ministros, o Chefe do Estado, os chefes militares, as altas autoridades académicas, eclesiásticas, os pides, ninguém me conhecia.

Eu tinha de pedir a palavra de forma a que não seja uma provocação porque isto tem de ser visto como um exercício de uma legitimidade de pedir a palavra, por parte de um estudante, do presidente da Associação Académica, na circunstância, que é pedir a palavra em nome dos estudantes e quer fazê-lo de uma forma solene, firme, rigorosa, mas respeitando as regras da urbanidade, que era forçoso respeitar, era isso que eu queria.

Eu tinha a consciência de que os setores mais retrógrados, mais ultras, o fascismo mais duro, iam tentar colocar aquilo como uma arruaça, e eu tinha de pôr aquilo como um gesto de legitimidade do uso da palavra. Por isso, estou aqui numa grande indecisão de qual é o momento de pedir a palavra: falou o reitor, falou o decano da faculdade e a seguir ia falar o ministro das Obras Públicas, estava a soerguer-se e eu disse bem, "é aqui o meu momento", porque estou entre a universidade e o governo, era mais uma forma de evitar a leitura da provocação...

Quando me levanto, há uma salva de palmas brutal dos estudantes e eu digo: "Neste momento, em nome dos estudantes de Coimbra, peço a palavra a Vossa Excelência", qualquer coisa assim, e fico de pé. Aquela gente levanta-se toda, há uma salva de palmas dos estudantes, dentro e fora da sala, que é uma coisa impressionante, a minha alma voa, porque tinha cumprido a honra da academia, tinha conseguido vencer todas as resistências, o medo. O ambiente era difícil, estávamos em ditadura e o destino estava traçado para quem fizesse uma coisa dessas. Aos aplausos, há gritos de "fora! fora", dos fascistas, há um burburinho.

O Chefe do Estado Américo Tomás tem uma pausa, acho que fala com um ministro, assim um bocado indeciso, e faz-me um gesto e "mas agora fala o ministro das Obras Públicas". Eu sento-me e fico na dúvida se a palavra me seria dada. Nas declarações da PIDE, os tipos ficaram sempre com a ideia de que eu estava a tentar ludibriá-los, mas não era verdade. E depois constatei que muitos professores, no inquérito que foi instaurado, também ficaram na dúvida. E muitos dos meus colegas...

Aquele "mas agora" abre essa dúvida.

Sim, fiquei tanto na dúvida que fiquei a arquitetar mentalmente o que é que iria dizer. Eu tinha umas notas, ia falar dos 33% de analfabetos em Portugal, de uma universidade elitista, onde o número de pessoas que chegavam à universidade era muito pequeno, da degradação do país, de uma universidade arcaica, da juventude do país, era o que eu ia falar...

Estava a arquitetar mentalmente, acaba a falar o ministro e o Américo Tomás sai com toda a comitiva, abruptamente, e aí é que é um coro brutal, "queremos falar! queremos falar!", e eles saem com os pides à cotovelada. A malta estudante ia deixando-os passar mas sempre a dizer "queremos falar! queremos falar!" Eu estou dentro da sala, só ouço "queremos falar! queremos falar!", e depois começam outros ditos, "palhaços, fantoches".

Fico na sala, entram estudantes que dizem para falar e levanto-me, ponho-me de pé... E depois falei. E falou o Carlos Batista, da junta de delegados de Ciências; o Celso Cruzeiro e o Barros Moura, que nós considerámos a verdadeira inauguração do edifício. As autoridades do regime foram para uma sala, mas os altifalantes estavam ligados para o exterior, eles provavelmente ouviram aquilo que não queriam. (risos)

 

"Quando sou preso, há estudantes que os insultam, 'assassinos', 'fascistas'. E insultos menos adequados à luta política."

 

Acaba por passar essa noite na prisão?

Sim. Nessa noite eu estava na Associação Académica, estávamos todos muito satisfeitos, tinha sido um grande momento. Eu tinha dormido no dia anterior muito mal, e às duas eu disse que me ia deitar e temos a informação de que a PIDE estava a cercar as portas de saída da Associação Académica, havia agentes em todas as portas. Saem alguns estudantes para ver qual é a reação deles e não acontece nada. E às 02.00 eu saio com muitos estudantes, mulheres e homens, e dirigem-se-me uns sete agentes da PIDE, com um crachá e uma pistola, "é o sô fulano de tal, está preso, acompanhe-me à sede da PIDE" e lá fui. Quando sou preso, há estudantes que os insultam, "assassinos", "fascistas". E insultos menos adequados à luta política (risos) e sou interrogado durante a noite, "quem é que estava por trás", queriam saber...

Com ou sem violência?

Sem violência. A conversa era sobre quem estava por trás disto, que organização tínhamos. Nós não tínhamos organização nenhuma.

Eram os estudantes...

Eram, eram os estudantes.

Cinco dias depois, há estudantes que são suspensos.

São estudantes que eles consideravam os responsáveis. Na PIDE, inicia-se um processo-crime contra mim, um crime de segurança interna contra a honra e a consideração devida ao Chefe do Estado, que de acordo com o Código Penal, se fosse provado - e naturalmente era provado, eu tinha-me levantado em público contra o Chefe do Estado - dava prisão efetiva de um a três anos. Iniciaram logo o processo-crime, por ordem do diretor nacional da PIDE, Silva Pais. A 22 de abril, todos os estudantes da Direção-Geral, o Osvaldo de Castro, o Celso [Cruzeiro], a Fernanda Bernarda, o José Gil [Ferreira], o Matos Pereira, mais o delegado de Ciências, o Carlos Baptista, e o Barros Moura, que tinham falado na sessão - é uma sequência direta dos acontecimentos de 17 de abril.

 

 

Isso faz precipitar uma maior contestação?

Na noite em que sou preso, cerca de duas, três centenas de estudantes são barbaramente espancados na sede da PIDE. Coimbra era uma cidade muito noctívaga e, quando sou preso, a notícia correu muito célere, pelas repúblicas, pelas casas de estudantes. Passado um quarto de hora, meia hora, estavam duas, três centenas de estudantes à sede da PIDE e os tipos fazem uma carga violentíssima, com cães-polícias, sem qualquer aviso prévio. Foi muito chocante e revoltou muito a academia e durante a noite foram distribuídos comunicados por Coimbra a dar conta desses factos.

Entretanto, a 22, há essa suspensão desses oito estudantes que dá origem a uma assembleia magna, onde há grande participação de professores. A suspensão tinha sido decidida pelo ministro da Educação: suspensão de frequência das aulas e de todos os atos da universidade até apuramento das responsabilidades. Isto na prática significava a expulsão da universidade.

A assembleia magna decide-se por uma greve às aulas, transformando-as em debates e discussão sobre a situação da universidade. Nós defendíamos uma universidade nova e a greve é estrategicamente radical e taticamente moderada nos meios que utilizamos. A diferença de Coimbra. E daí ter sido a maior greve na universidade portuguesa, é porque foi uma greve de massas, a greve a exames com 85% de adesão dos estudantes da Universidade de Coimbra.

Note-se que se vive um período de transição, estamos em 1969, cai o Salazar e está Caetano e é talvez o primeiro momento em que Caetano acaba por revelar a identidade repressiva do regime [depois da sua posse]. A suspensão que nos é feita é contra mesmo as regras da ditadura, sem contraditório, não ouviram a outra parte, sem processo disciplinar.

Há uma inabilidade do ministro José Hermano Saraiva em lidar com tudo isto ou é apenas a faceta repressiva do regime?

É uma faceta, é a identidade repressiva do regime: ele é um homem autoritário, é um ultra, ele é o "quer, posso e mando". José Hermano Saraiva prestou um grande serviço à luta de Coimbra no dia 30 de abril, quando ao fim de dias, desde 17 de abril, ele vem fazer uma comunicação ao país, num período de ditadura, com censura...

... sem saber do que se passava.

Sem saber do que se passava e ele vem anunciar que a Universidade de Coimbra está desde o dia 17 de abril sujeita a grandes perturbações, agitadores, os estudantes não estudam, as famílias e tal... Vem fazer um apelo demagógico e termina com um ato impositivo, garante aos portugueses que a ordem será restabelecida.

Foi uma declaração de guerra forte. Que teve uma resposta brutal: no dia seguinte, numa assembleia magna, recrudesceu a movimentação estudantil, de tal forma que a greve às aulas continuou e o Saraiva vê-se na necessidade de, em 6 de maio, encerrar a Universidade de Coimbra, um gesto repressivo muito forte. E diz que só quando houver exames é que a universidade será reaberta e isso colocou-se a nós, o que quero fazer.

E decidiram-se pela greve aos exames?

É uma decisão lenta, muito maturada porque havia os que defendiam que se devia fazer um ato de repúdio, de relevo público. Mas tínhamos de garantir uma assembleia magna com muita gente, e tivemos seis mil. E no dia 2 de junho a universidade está cercada pela Guarda Republicana, com jipes com arame farpado, polícia a pé, a cavalo, estudantes a começarem a ser presos e a serem absolvidos no tribunal da comarca, acusados de um crime que era o de perturbarem exercícios fundamentais previstos na Constituição.

 

 

No fundo eram os piquetes de greve para evitar as idas aos exames, mas nunca condenaram ninguém porque isso implicava ser preso em flagrante delito. Mas isso nunca se verificou dada a velocidade dos piquetes, quando a polícia chegava (risos). Prenderam uma centena de estudantes. A Direção-Geral acabou por ser presa em agosto... E depois há a incorporação militar de 49 estudantes em outubro.

Pelo meio, há acontecimentos que têm muita importância na cidade de Coimbra: fazemos a operação Flor e a operação Balão, para conquistar a população; não se faz a Queima das Fitas, e explica-se à população porquê. A Queima das Fitas tinha uma importância brutal na vida comercial, nos serviços de Coimbra e nas contratações de artistas.

E temos também a felicidade da final da Taça de Portugal, Académica-Benfica, que é uma vitrina fantástica. Distribuímos 35 mil comunicados, passamos as tarjas no intervalo do jogo, a equipa da Académica, que era constituída esmagadoramente por estudantes universitários, estava de luto, e entraram com as capas em sinal de luto. O Tomás, o governo, os ministros, os secretários de Estado, ninguém apareceu e a TV também não transmitiu.

Depois há um regresso à normalidade?

Há uma delegação de Coimbra que é recebida pelo Chefe do Estado, cai o reitor, que é do regime, ultra, cai o ministro da Educação e vem o Veiga Simão e há um novo reitor, que aliás é um democrata, o professor Gouveia Monteiro. E a Associação Académica é reaberta... E a vida académica continua. Há um recuo brutal do governo, nessa altura.

Cinquenta anos depois há alguma mensagem daqueles dias que permanece?

Sim, acho que há muitas coisas: o fim da ditadura, o fim da Guerra Colonial, o fim de um país subdesenvolvido, isso foi alcançado. Agora, uma sociedade desenvolvida, economicamente sustentável, uma dimensão de realização da universidade, dos jovens, do sonho que vivia em cada um de nós, continua por cumprir. Mas isso é a ideia de que o essencial de 1969 foi o que o movimento gerou e esse movimento continua sempre: é o movimento da juventude, do sonho, de uma sociedade mais justa, menos desigual, mais solidária, que de alguma medida nós vivemos naqueles momentos. Que se projetam numa dimensão muito mais ampla, a nível local, nacional, planetário.

E 50 anos depois esta memória é tão presente que só pode ter sido muito marcante para si.

É um momento muito marcante. Tenho a noção de que cada um de nós, que estivemos em Coimbra nessa altura, e que estivemos do lado certo da história, viveu como um momento libertador e um momento galvanizante. E cada um de nós viveu numa dimensão própria. Sendo um movimento coletivo, foi também um movimento interior que nos interpelou muito, que nos obrigou a grandes decisões. Foram momentos duros, difíceis, mas foram também momentos de grande exaltação e de festa.

 

[Entrevista originalmente publicada no DN, em 17 de abril de 2019; fotos do artigo original]

Fevereiro 13, 2023

Pôr a mola da roupa nas narinas: MEC, o garimpeiro da música boa

Miguel Marujo

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Quando Miguel Esteves Cardoso ainda não era “o” MEC, que mais tarde faria sucesso nas páginas da Revista do Expresso, o jovem escrevia crítica musical, ali entre a música de intervenção e o “ar de rock” – e o culto começou aí, apesar de muitos poderem achar o género menor. Quando Esteves Cardoso ainda não nos trazia caracteres sobre azeites e pão, o rock e a pop eram o seu território e a pena cáustica e acutilante já fazia escola. 

Escrítica Pop, agora de novo em livro (ed. Bertrand, 2022), é, pois, um acontecimento: recupera a edição original de 1982, publicada pela Editorial Querco, que já só se descobria em alfarrabistas (mais tarde reeditado pela Assírio e Alvim), e junta-lhe um quase ignorado e há muito esgotado O Ovo e o Novo, de 1981, guia exaustivo sobre os anos 1970. A fechar o conjunto de mais de 630 páginas, o posfácio do crítico Esteves Cardoso, que confessa, 40 anos depois desses dois livros, que perdeu muito tempo “a catrapiscar” músicas más para poder descobrir a boa. “Também deve haver alguma ternura pelo lodo por parte de quem passa a cidade de peneira na mão, à procura de pepitas de ouro.” 

Segundo MEC, e socorremo-nos das últimas páginas do seu livro, sem que se estrague a leitura, “para encontrar música nova e boa – esses dois requisitos com tão poucas letras, tão raramente encontrados juntos –, continua a ser preciso uma pá e uma mola de roupa para apertar as narinas”. Exageros de crítico.

É o próprio que o admite numa espécie de prefácio ao livro original (esta nova reedição reproduz ipsis verbis a primeira). Em “À maneira de um prefácio à maneira”, MEC baralha e dá de novo: “É claro que já me arrependi de tudo aquilo que escrevi. É claro que já não gosto de nenhuma das bandas das quais disse gostar muito, e que vim a apreciar todas as outras que jurei odiar até à morte. E é claro que deve juntar-se este exagero a todos os outros que cometi; às contradições, às precipitações, às inverdades, às precipitações, aos erros e excessos, às omissões e rotulagens que para toda a vida me hão-de afligir e fazer ruborizar.”

Já percebemos que este statement de 1982 é, ele próprio, um exercício de estilo – e o posfácio demonstra-o. No miolo do livro, entre estas duas prosas, Esteves Cardoso indica o caminho para que todos possam aprender como exercitar a arte da crítica. Sejamos justos, sem spoilers, este é outro exercício do humor cáustico que o país reconheceria em MEC, anos mais tarde, sobretudo com A Causa das Coisas e Os Meus Problemas. Mas entre as primeiras funções do crítico não está ouvir o disco (“Nada podia estar mais longe da verdade”); é preciso, aliás, saber fazer a “crítica de Rock sem audição” (e “com audição”), ter “instrumentos críticos do bota-abaixo” e do “bota-acima”, “métodos de agigantamento sucessivo”, dominar “a fase da redação”, “arranjar um jornal qualquer” ou “um jornal legítimo”, “ter boas relações com as editoras” ou “auferir um bom vencimento”. Um caminho para a glória, que é ser “editor discográfico”, mas sem revelarmos mais pistas.


Os discos hediondos e os que resistem ao tempo

Nesta escrítica, Miguel atira-se sem dó nem piedade à música dos anos 70, em O Ovo e o Novo — (Uma) Discografia duma Década de Rock: 1970-1980. Afinal, 89,6 por cento de todos os discos editados no mundo, argumenta o autor, “são inteiramente hediondos”, socorrendo-se de um alegado e “apurado estudo”, pelo que depois de 50 páginas de uma fantástica viagem pela música do “antes” dos 70 e da década propriamente dita, MEC apresenta-nos curtas leituras de discos com três, quatro e cinco estrelas. Não há lugar para hediondas ou medianas escolhas.

Fixe-se para a posteridade a tradução dessas estrelas, uma classificação “simples, inteiramente subjectiva e [que] não é estática”: “ *** – Bom. Contém boas canções, mas uma ou outra canção indiferente ou medíocre. **** – Muito bom. Contém sobretudo boas canções, com um ou outro deslize de pouca importância. ***** – Excelente, sem reservas.” Sabe-se que o gosto se discute, não se impõe, mas MEC faz notar que os álbuns que têm cinco estrelas devem resistir “ao tempo e ao gosto – mas nem esta reserva está acima de discussão”. E não está (mas é o meu gosto a falar). 

Na era do streaming, na qual o novo é ainda mais efémero, o exercício deste livro é lembrar-nos obras já esquecidas e ignoradas (em 1970, há o disco homónimo dos Fotheringay, com a voz de Sandy Denny, dos Fairport Convention, que pede para ser ouvido) ou arrumadas em estantes que ganharam pó (e resgate-se do mesmo ano, Moondance, de Van Morrison). 

 

 

De 1970 a 1980, MEC regista os que sobreviveram a essa década de rock, definindo três constelações de estrelas, nomeando 12 nomes que, a esta distância, ainda são algumas das referências maiores da música popular destes últimos 60 anos: Joni Mitchell, Leonard Cohen, David Bowie, Bob Marley (na constelação dos irredutíveis de “qualidade constante e ininterrupta ao longo da década”), Neil Young, Lou Reed, Ry Cooder, Van Morrison (na segunda constelação de “qualidade inconstante, com poucas interrupções de má qualidade”), Robert Fripp, Robert Wyatt, Stevie Wonder e John Cale (na terceira constelação da “qualidade inconstante, com interrupções frequentes de atividade ou de qualidade”).

Aos sobreviventes juntam-se os náufragos, ou seja, aqueles que soçobraram ao longo da década de 1970, na sua opinião, decaindo na qualidade, numa “incapacidade manifesta de lutar contra o conforto”. Elton John, os beatles a solo, Paul McCartney, John Lennon e George Harrison (Ringo Starr é reduzido de uma penada a “divertimento simpático”), Crosby, Stills, Nash & Young, James Taylor, Genesis, Pink Floyd, Yes, Emerson, Lake and Palmer e King Crimson são os “náufragos célebres” para MEC – uma lista que pode ferir suscetibilidades. 


Limpar os esgotos da década antes

Entrar nos anos 1980, ou seja, em Escrítica Pop, obriga a um exercício prévio: “Antes de mergulhar numa década nova, convém sempre uma lavagem ao depósito onde se acumularam os esgotos da década anterior”, escreve Esteves Cardoso, como se fosse uma epígrafe ao texto “O livro negro da música pop: os piores de ’70”. O texto é uma ode humorada à “música popular verdadeiramente vil e execrável”, dividida em quatro classificações: “uma bosta”, “duas bostas”, “três bostas” e “um balde”, sendo estes “os verdadeiros clássicos” do género “abjeto”.

Ler este capítulo é uma delícia de nomes desconhecidos ou velhas glórias do mau gosto que (pasme-se) também têm merecido serem recuperados por uma certa nostalgia do século XXI, que os impinge a todo o gosto e custo. Os Bee Gees, por exemplo, mas também Cliff Richard, Demis Roussos, Boney M, Kenny Rogers ou… John Travolta. É uma lista e tanto, que é fechada com a entrega do “balde de plástico” a Sylvia com a canção “Y Viva España” que, “como todas as canções verdadeiramente horríveis e debilitantes, nunca se esquece”.

A música má, argumenta MEC, ajuda-nos a ouvir a boa, a valorizar o que é bom depois dos ouvidos sofrerem com verdadeiros baldes. Há exemplares de “Pop-lixo”, um género bem representado, como Kim Wilde, que “é lixo muito bem vestido” (e os adolescentes dos ’80 suspiram), que tem o requinte que falta aos Abba ou a Sandy Shaw – palavra de crítico. Miguel Esteves Cardoso atira-se ainda à “atroz Kirsty MacColl”, a voz feminina que todos aprendemos a amar na mais bela canção de Natal, “Fairytale of New York”, pelos Pogues, por causa do seu álbum de estreia “tão abaixo de cão que está quase no centro da Terra” (e hoje Kirsty MacColl deve rir-se do MEC de 1981). Ou Yoko Ono, a namorada de Lennon, que “não tem” queda para a música. E o próprio John Lennon que morreu em 1980, mas a sua obra tinha morrido antes.

Há amores desmesurados (e certeiros) nestas seis centenas de páginas, como David Bowie, a Factory, os Durutti Column de Vini Reilly, Blondie, que é sinónimo de Debbie Harry, ou a Joy Division e os New Order. Mas nem tudo o que é bom sobreviveu à História para contar – e cantar. Usando a terminologia de MEC, são náufragos, hoje afundados nas profundezas da memória, como as Delta 5, por exemplo, que lançaram o “fabuloso LP” de nome See the Whirl. Pode ser que este livro, resgatado a 1982, nos ajude a descobrir música que, ainda hoje, salvará.

 

 

 

Escrítica Pop — Edição Completa
de Miguel Esteves Cardoso
Edição: Bertrand
julho de 2022, 638 págs., 24,40 €

[artigo originalmente publicado no 7Margens, a 4 de fevereiro de 2023; foto: MM]