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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Janeiro 16, 2023

Sebastião está morto, o sebastianismo nem por isso

Miguel Marujo

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Marrocos celebra vitória contra Portugal, no Mundial: “Usar a memória de uma batalha como metáfora para um jogo de bola só serve para o lado da bola, não para o lado da batalha.” Foto via Twitter da Embaixada de Marrocos em Portugal.

 

Por estes dias, Alcácer Quibir voltou ao imaginário coletivo, por conta de um jogo de futebol, que acabou com (nova) derrota portuguesa às mãos de Marrocos, em terras das arábias. No jargão dos dias, houve quem lembrasse uma suposta vingança da “reconquista cristã” (Marrocos tinha antes eliminado a Espanha), quem aclamasse uma alegada vitória anticolonialista, ignorando o carácter autocrático do regime de Rabat ou a ocupação do território do Sara Ocidental às mãos dos interesses económicos e políticos do reino magrebino. O futebol serve (para) a política, mesmo que a coerência rapidamente tropece nos princípios. 

Resgatou-se Alcácer Quibir e o “rei encoberto”, Sebastião que morreu nas terras do Norte de África, mas que tantos esperavam aparecer numa manhã de nevoeiro (desta vez, vestidos de jogadores da bola). E de novo a História tropeçou nos mitos. 

André Belo serviu-nos nas páginas do jornal Público (ligação exclusiva para assinantes), em 12 de dezembro de 2022, a sua leitura deste Marrocos-Portugal, ao som dos tambores da guerra, num texto sobre Alcácer Quibir, onde aponta que “o problema de usar a memória histórica de uma batalha como metáfora para um jogo de bola entre Portugal e Marrocos é que a metáfora só serve para o lado da bola, não para o lado da batalha”.

Também a Folha de São Paulo, numa prosa notável – antes do jogo de Portugal e já depois do Brasil ter sido também eliminado do Mundial de futebol, no Qatar – dizia-nos que “Marrocos x Portugal já fazia Brasil dançar bem antes de Vinicius Junior existir”. Vinicius é jogador da bola e, nas quatro linhas, parece um dançarino no sambódromo. E tudo isto por causa de Sebastião.

Descrevia a Folha que “a derrota” do rei “teve consequências fundas – até no fundo do mar, pelo que consta – na história do Brasil, então colónia portuguesa. Abatido Sebastião em Quibir, Portugal ficou eventualmente sem rei e acabou sendo dominado pela Espanha. O que fez o próprio Brasil espanhol. (…) Já Portugal ficou órfão, aguardando a volta do rei para recuperar sua soberania.”

“O que é Sebastião no Brasil não cabe neste texto”, acrescenta o articulista do diário brasileiro. “O sebastianismo – ou seja, a espera pelo retorno do rei encantado – percorre a história do país [Brasil] de maneira tão ampla que tem papel verdadeiramente relevante em movimentos como o de Canudos, do sebastianista Antônio Conselheiro. E também ajudou a eleger Jair Bolsonaro.”

Estas citações longas permitem-nos lançar a bola para o campo da literatura e da História, e para terrenos bem mais próximos. Se “Dom Sebastião deixou de ser um mito prioritário para Portugal, novamente independente [e] ganhou novas cores em além-mar, onde até hoje exerce notável e inegável influência cultural”, há todo um manto de ficções criadas deste lado do mar que mantêm viva a influência do sebastianismo.

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Morte e Ficção do Rei Dom Sebastião, de André Belo, ajuda-nos, e o nome diz ao que vem, nesta viagem por esses sebastianismos que se esticam até aos dias de hoje, num final de outono em que a bola rolou no Qatar e Bolsonaro continuava entrincheirado no Planalto a digerir a derrota nas presidenciais brasileiras para Lula da Silva. 

O livro parte de uma certeza – de que muitos desconfiam (ou até desconhecem): os restos mortais do monarca português estão bem arrumados no Mosteiro dos Jerónimos, depois de trasladações e inumações, sempre devidamente testemunhadas e confirmadas por autoridades, que fixaram para o rei D. Sebastião a sua última morada nesta igreja de Lisboa. Mas, e há um “mas” gigante nesta história, na hora de escrever na pedra o epitáfio do rei morto em Alcácer Quibir, alguém resolveu carregar a dúvida, que já vinha sendo alimentada por interesses políticos. “Este túmulo encerra – se é verdadeira a fama – Sebastião/ Que uma morte precoce levou nos areais de África/ Não digas que se engana quem acredita que o rei vive/ Extinto pela lei, foi-lhe a morte quase uma vida.”

Nestas breves linhas, o autor do epitáfio não coloca em causa a morte do rei (“morte precoce levou nos areais”), mas lança a dúvida sobre se o corpo está ali depositado, ao transformar “em rumor” aquilo “que foi oficialmente certificado nas sucessivas inumações do rei, gravando tal inversão na pedra”, com o uso da expressão “se é verdadeira a fama”. Poderemos sempre aceitar a interpretação cristã, na crença da vida para além da morte, mas foram bem terrenas as dúvidas suscitadas.

Em 1582, Filipe I (II de Espanha) mandara colocar em Belém os restos mortais de Sebastião, procurando assim “inculcar na memória a morte do rei, desmentindo os rumores em circulação sobre a sua sobrevivência”. A trasladação filipina tinha um objetivo político, que o epitáfio de 1682, escrito 100 anos depois, e guias turísticos dos dias de hoje ignoram. Num guia italiano, de 2005, citado pelo historiador, lê-se: “O túmulo de Dom Sebastião está vazio até hoje. O jovem rei nunca voltou da batalha de 1578.”

A seu modo, a obra de André Belo é desconcertante: a sua certeza continua a ser uma dúvida alimentada por anos de descuidada historiografia, necessidades políticas, arroubos nacionalistas e muita ficção.

Logo na primeira parte de Morte e Ficção do Rei Dom Sebastião, o historiador conduz-nos pelas suas perplexidades, incluindo um pingue-pongue com a atualidade que contextualiza a forma tantas vezes ignorante como se trata este episódio da nossa História, num tom que surpreende o mais empedernido dos académicos e resgata essa mesma História de um qualquer lugar chato em que a queiram engavetar. A epígrafe desta parte I é o excerto de uma canção de Miguel Araújo, Fizz Limão: “Não ficamos à espera, não sustemos a respiração/ À espera que o D. Sebastião nos traga a redenção/ O povo não desespera, a gente sabe que ainda há solução/ Porque o Fizz Limão, ai o Fizz Limão, há-de voltar/ Num dia de sol o Fizz Limão há-de voltar.” Um rei pop.

Este livro de História, com o rigor da investigação da disciplina, veste as suas páginas e palavras de uma forma desempoeirada e livre de preconceitos, na linguagem e na forma como nos narra os acontecimentos que se seguiram à morte do rei português em terras marroquinas. (Sim, já se sabe, morreu mesmo.)

Rei morto, rumor posto, a solução sucessória do cardeal Dom Henrique foi apenas um breve compasso de espera antes da subida ao trono do rei espanhol, Filipe II, I de Portugal. E é neste quadro político que germinam as teses sebastianistas. “O primeiro sebastianismo constitui expressão de resistência de parte dos seguidores do prior do Crato no exílio”, e assim passa pelo combate ao domínio filipino, aponta André Belo.

O livro é, de forma fundamentada e documentada, uma viagem por um Portugal sebastianista, onde se mata o rei mas se salva o sebastianismo, “uma lenda maravilhosa”, nas palavras de Afonso Lopes Vieira, “poeta nacionalista e sebastianista”. Aponta André Belo que, “tal como é possível ter ‘lapsos’ reveladores de um impensado sebastianista sem se ser forçosamente nacionalista, é possível reconhecer a morte do rei e ao mesmo tempo querer salvar o seu valor ideológico. Trata-se de ‘matar’ o rei salvando ao mesmo tempo uma ideologia extremamente fértil no campo do nacionalismo português”. 

Esse tempo fértil é o Estado Novo, em que a oposição também se faz de combate ao sebastianismo, como na poesia de Manuel Alegre, que proclama que “é preciso enterrar D. Sebastião”, ou a peça de teatro de Natália Correia, O Encoberto, proibida pela Censura, exemplifica André Belo. Com o 25 de Abril e o fim da ditadura, o sebastianismo permanece arrumado em círculos tradicionalistas ou “apenas os aspetos anedóticos ou o impensado de um mistério sobre a morte do rei”, com os historiadores portugueses a virarem-lhe as costas, esgotada “a função ideológica do sebastianismo”. “Este afastamento relativamente à pesada memória de um passado mítico permite também explicar o retorno cíclico de uma forma de amnésia relativamente aos acontecimentos que estiveram na origem da lenda”, anota Belo, para melhor nos antecipar o que vem depois.

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Enquadrado pois o desinteresse democrático pelo sebastianismo, saúda-se esta investigação que nos conta também das ficções, que floresceram à volta do rei morto, em particular a impostura de Veneza, que viveria muitos anos depois da “batalha dos Três Reis” (como é conhecida noutras línguas europeias, por terem morrido três reis em Alcácer Quibir). 

Por Veneza, durante cinco anos (1598‑1603), passou um “rei” Sebastião que era na verdade um “calabrês obscuro” e cuja “vida itinerante será suspensa nos calabouços venezianos”. Nesse tempo, como se descreve sobre o livro, “Marco Tullio Catizone alimentou paixões anticastelhanas, gerou facções e complexas manobras diplomáticas. E levou a sacrifícios duríssimos, ou não tivesse culminado com a condenação à morte do impostor.”

Este é um outro aspeto interessante: descobrir que estes impostores sebastianistas andaram pelas italianas Veneza e Nápoles, ou em panfletos em cidades francesas e alemãs. “Terminado o caso, porém, o tempo continuou a alimentar a ficção.” Mas não desvelemos ou antecipemos em demasia o que este livro de André Belo descreve tão bem. “A dificuldade de assimilação de uma derrota catastrófica na cultura nacional” impregnou a memória nacional, aponta-nos o autor. E, como se viu no Qatar, até o futebol insistiu em o demonstrar.

 

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Morte e Ficção do Rei Dom Sebastião, de André Belo 
Edição: Tinta da China
Setembro de 2021, 344 págs.

[Texto originalmente publicado no 7MARGENS, em 8 de janeiro de 2023. Imagens inseridas no texto: Túmulo de D. Sebastião nos Jerónimos, foto © Palickap, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons; Pormenor da ilustração da capa do livro © Vera Tavares/Tinta-da-china.]

Janeiro 12, 2023

Perder, ganhar, viver

Miguel Marujo

Morreu-nos Pelé, e por causa dele também me recordei de Sócrates, o doutor que espalhava magia nos relvados, e da tal tarde quente do verão de 1982, e por entre pesquisas por aqui nesta casa, que chegará aos 20 anos este ano, redescobri um texto espantoso de Drummond de Andrade, que o Ivan Nunes tinha publicado na sua Praia (por recomendação de Pedro Lomba). E resolvi resgatá-lo a um blogue já inativo, para este onde ainda se publicam coisas, daquelas que me interessam. Como aquele jogo de futebol, aqui tão bem contado.

 

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Perder, ganhar, viver

por Carlos Drummond de Andrade

Vi gente chorando na rua, quando o juiz apitou o final do jogo perdido; vi homens e mulheres pisando com ódio os plásticos verde-amarelos que até minutos antes eram sagrados; vi bêbados inconsoláveis que já não sabiam por que não achavam consolo na bebida; vi rapazes e moças festejando a derrota para não deixarem de festejar qualquer coisa, pois seus corações estavam programados para a alegria; vi o técnico incansável e teimoso da Seleção xingado de bandido e queimado vivo sob a aparência de um boneco, enquanto o jogador que errara muitas vezes ao chutar em gol era declarado o último dos traidores da Pátria; vi a notícia do suicida do Ceará e dos mortos do coração por motivo do fracasso esportivo; vi a dor dissolvida em uísque escocês da classe média alta e o surdo clamor de desespero dos pequeninos, pela mesma causa; vi o garotão mudar o gênero das palavras, acusando a mina de pé-fria; vi a decepção controlada do Presidente, que se preparava, como torcedor número um do país, para viver o seu grande momento de euforia pessoal e nacional, depois de curtir tantas desilusões de governo; vi os candidatos do partido da situação aturdidos por um malogro que lhes roubava um trunfo poderoso para a campanha eleitoral; vi as oposições divididas, unificadas na mesma perplexidade diante da catástrofe que levará talvez o povo a se desencantar de tudo, inclusive das eleições; vi a aflição dos produtores e vendedores de bandeirinhas, flâmulas e símbolos diversos do esperado e exigido título de campeões do mundo pela quarta vez, e já agora destinados à ironia do lixo; vi a tristeza dos varredores da limpeza pública e dos faxineiros de edifícios, removendo os destroços da esperança; vi tanta coisa, senti tanta coisa nas almas...
Chego à conclusão de que a derrota, para a qual nunca estamos preparados, de tanto não a desejarmos nem a admitirmos previamente, é afinal instrumento de renovação da vida. Tanto quanto a vitória, estabelece o jogo dialético que constitui o próprio modo de estar no mundo. Se uma sucessão de derrotas é arrasadora, também a sucessão constante de vitórias traz consigo o germe de apodrecimento das vontades, a languidez dos estados pós-voluptuosos, que inutiliza o indivíduo e a comunidade atuantes. Perder implica remoção de detritos: começar de novo.
Certamente, fizemos tudo para ganhar esta caprichosa Copa do Mundo. Mas será suficiente fazer tudo, e exigir da sorte um resultado infalível? Não é mais sensato atribuir ao acaso, ao imponderável, até mesmo ao absurdo, um poder de transformação das coisas, capaz de anular os cálculos mais científicos? Se a Seleção fosse à Espanha, terra de castelos míticos, apenas para pegar o caneco e trazê-lo na mala, como propriedade exclusiva e inalienável do Brasil, que mérito haveria nisso? Na realidade, nós fomos lá pelo gosto do incerto, do difícil, da fantasia e do risco, e não para recolher um objeto roubado. A verdade é que não voltamos de mãos vazias porque não trouxemos a taça. Trouxemos alguma coisa boa e palpável, conquista do espírito de competição. Suplantamos quatro seleções igualmente ambiciosas e perdemos para a quinta. A Itália não tinha obrigação de perder para o nosso gênio futebolístico. Em peleja de igual para igual, a sorte não nos contemplou. Paciência, não vamos transformar em desastre nacional o que foi apenas uma experiência, como tantas outras, da volubilidade das coisas.
Perdendo, após o emocionalismo das lágrimas, readquirimos (ou adquirimos, na maioria das cabeças) o senso da moderação, do real contraditório, mas rico de possibilidades, a verdadeira dimensão da vida. Não somos invencíveis. Também não somos uns pobres diabos que jamais atingirão a grandeza, este valor tão relativo, com tendência a evaporar-se.
Eu gostaria de passar a mão na cabeça de Telê Santana e de seus jogadores, reservas e reservas de reservas, como Roberto Dinamite, o viajante não utilizado, e dizer-lhes, com esse gesto, o que em palavras seria enfático e meio bobo. Mas o gesto vale por tudo, e bem o compreendemos em sua doçura solidária. Ora, o Telê! Ora, os atletas! Ora, a sorte! A Copa do Mundo de 82 acabou para nós, mas o mundo não acabou. Nem o Brasil, com suas dores e bens. E há um lindo sol lá fora, o sol de nós todos.
E agora, amigos torcedores, que tal a gente começar a trabalhar, que o ano já está na segunda metade?



[Crónica publicada no Jornal do Brasil na sequência da derrota futebolística mais dolorosa da vida de milhões de pessoas, incluindo a minha. Esse fatídico Brasil-Itália de 5 de Julho de 1982, em Barcelona, pode ser hoje integralmente visto aquiPublico este texto por sugestão do Pedro Lomba, que mo mostrou.]

— foto: Menino chorando retratou o sentimento dos brasileiros naquele instante, de Reginaldo Manente.