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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Dezembro 31, 2022

Bento XVI, 1927-2022

Miguel Marujo

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Foi um homem de contradições, ortodoxo cardeal que abriu caminhos inesperados como papa, tendo um gesto raro ao renunciar ao pontificado, sem forças para enfrentar o mais grave escândalo de uma Igreja que precisa de ser renovada. Foi um homem usado por ultraconservadores, quando já retirado, como papa de arremesso contra o magistério de Francisco, o homem que veio do fim do mundo para abanar os alicerces da Igreja. Ratzinger morre e deixa um legado, que só o tempo ajudará a avaliar na sua totalidade.

[texto originalmente publicado na minha página do Facebook; Bento XVI fotografado no jardim do mosteiro onde viveu retirado no Vaticano © Fondazione Vaticana Joseph Ratzinger-Benedetto XVI]

Dezembro 31, 2022

Os (meus) discos ouvidos em 2022

Miguel Marujo

Esta não é a lista dos melhores do ano de 2022 (ainda me faltou muito e muita música). É (continua a ser) uma lista em atualização, nestas semanas, do que mais tenho ouvido e mais tenho gostado ao longo do ano passado, e que pode até ser de outros anos — como é o caso da nova atualização, sons antigos muito ouvidos em 2022. Discos, canções, que por algum motivo passaram pelo meu radar. Para ler e ouvir.

 

Kate Bush, Running Up That Hill (A Deal With God) e Aerial

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E também eu regressei a Kate Bush, em 2022, não tanto por causa de Stranger Things (falta-me ver esta temporada, sim), mas porque regresso muitas vezes a Kate Bush. Apesar da genialidade de canções como Running Up That Hill (A Deal With God), a canção que se ouviu de novo por conta da série da Netflix, Cloudbusting ou do tema-título de Hounds of Love (1985) – opus maior desta britânica que, de repente, foi descoberta por gerações de ouvidos novos – é o álbum Aerial (2005) que mais me acompanha nestes últimos anos, e a que regressei muitas vezes em 2022.

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A delicadeza de An Architect’s Dream, o divertimento de Pi (sim, o número matemático cantado tal e qual) ou a voluptuosidade de Aerial são três exemplos do prodígio que é a voz de Kate, mas também das palavras e das composições de Bush, que parecem tecer uma complexa filigrana entre poesia e sonoridade.

Foi uma coisa estranha, esta, ver Kate Bush nos tops (uma coisa tão eighties) com uma canção desses anos 1980, mas abençoada Stranger Things: gosto muito, quando os outros descobrem as coisas fantásticas que me acompanham. 

[30/12/2022]

 

 

The Gift, Coral

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Este Coral arrisca muito. As polifonias não são coisa estranha à obra dos Gift — de que gosto desde a primeiríssima hora, com Vinyl (1998). A banda de Sónia Tavares e Nuno Gonçalves já tinha ensaiado algumas belas abordagens corais, como em Open Window de Primavera (2012). É um risco este disco: a pop viciante de um grupo que sempre se manifestou pela linguagem da dança como cartão de visita, apresenta-se aqui com um conjunto de temas orquestrados e corais — e a abertura com Noir - Adagio Doloroso é um breve arroubo, a antecipar o belíssimo Noir, um tema a incluir (aposto) no cânone giftiano. A eletrónica continua lá, e Cancun, por exemplo, parece talhada para as pistas, mas deixa-se envolver, sem qualquer pudor, fazendo respirar estas polifonias contemporâneas e de registo clássico. (E antes que alguém mais desatento ou apenas maledicente se lembre, não, não há sombra dos Enigma dos anos 1990 nesta aventura.)

A voz de Sónia e as composições dos Gift encontram conforto e amparo num diálogo que é tudo menos cómodo e instalado. Ouça-se Única, um espanto de quase cinco minutos e meio: às vozes masculinas que se impõem no final (já vos falei de Primavera, não já?), por entre os Pauliteiros de Miranda, há sempre o coro de 48 vozes que nos ajuda a construir imagens de uma cinefilia imaginária (e eles também gravaram um disco chamado Film, em 2001). Ouça-se Adagio (outra para o cânone), 7 Vezes ou Passa-se o Tempo, e estamos perante um disco com lugar cativo nos álbuns do ano de 2022. 

Para lá dos seus sons de sempre, os The Gift arriscaram muito, mas ouvindo bem há uma beleza sempre presente — e isso é muito deles, de sempre.

* *

Tal como fiz nos álbuns de que já falei, aqui em baixo, sem qualquer obrigação jornalística de contar quase tudo sobre um disco, só depois de escrito este texto, vertido em página quase de rajada depois de audições intensas, fui saber um pouco mais: 

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fichas técnicas, para descobrir a presença de três vozes dos Gaiteiros de Lisboa (provavelmente o mais revolucionário projeto folk da música atual portuguesa), José Manuel David, Carlos Guerreiro e Rui Vaz; um coro clássico de 48 vozes; os Pauliteiros de Miranda; e o compositor Bernat Vivancos e o produtor Bogdan Raczynski, colaborador de Björk; 

declarações dos membros do grupo: “O disco saiu sem aviso. Saiu-nos de dentro. Não estávamos à espera. O músico de hoje tem de seguir instintos, mas sobretudo respeitar os impulsos. Nada se organiza com tempo. As coisas saem. Ou se aproveitam, ou não.” E falam de uma folha em branco, e da busca do som. Tudo isso… já se ouviu.
[22/11/2022]

 

 

Lambchop, The Bible

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Há discos assim: na aparência, muito certinhos e arrumadinhos, a prometerem uma música de câmara com uma voz grave, bem postos ao pôr-do-sol enquanto se beberica um gin tónico, mas logo tudo se desarruma, um instrumento a puxar para ali, outro a dizer-nos um novo caminho, com sopros e piano e eletrónicas e coros (quase gospel, muito soul) a comporem uma belíssima salada pop, sem concessões. 

Há discos assim: os Lambchop, de Kurt Wagner, trazem-nos com este The Bible o seu livro dos livros, um cântico dos cânticos — e a morte a beber nas palavras (Wagner está nos 64 anos), e os sons a desconstruírem ideias preconcebidas. 

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E apesar da solenidade que se ouve nos 50 minutos do disco (em A Major Minor Drag, por exemplo), há tudo menos aprumo na forma como se arrumam as sonoridades deste XX álbum de originais dos rapazes (e basta nomear Little Black Boxes e Police Dog Blues para romper com essa solenidade).

Na Pitchfork invoca-se Grouper ou Angelo Badalamenti, na procura de referências para um disco como este, mas quando ouço Wagner a cantar-nos “We are clumsy and may trample too much/ Turn my face to the words/ Were always better, not so sad as foolish”, a fechar a belíssima Every Child Begins the World Again, não preciso de mais nada. O inverno já pode vir: esta Bíblia vai confortar-nos nas noites longas deste hemisfério.
[12/11/2022]

 

 

The Unthanks, Sorrows Away (2022)

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As irmãs Unthanks são uma pedra preciosa que, há quase 20 anos, vêm polindo alguma da melhor música vinda das ilhas de sua majestade. Navegando nas águas da tradição, frequentemente coladas à folk britânica, The Unthanks é antes um projeto em que a palavra ganha uma especial expressão numa musicalidade que, bebendo muito no dito som tradicional, é resgatada para uma modernidade tão cativante como arrebatadora. 

Sorrows Away — publicado já neste mês de outubro — volta a ser uma gema rara, de vozes que nos contam histórias mágicas, sopros que enchem os espaços entre a inspiração e a expiração, uma sonoridade tão delicada quanto cuidada, mãos que tecem as redes para lançar ao mar, um amor que é tão apaixonante como à primeira audição. 

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Nascidas para a música como Rachel Unthank and the Winterset, uma banda exclusivamente feminina ao início, e que teve com Cruel Sister (2005) uma estreia de ouro (melhor Folk Album do ano, para a Mojo), foi com a terceira (excelente) obra, Here's the Tender Coming, de 2009, que as irmãs e companhia (agora não apenas feminina) passaram a publicar como The Unthanks. Atuando ao vivo como uma banda de cinco ou 11 elementos, The Unthanks já nos trouxeram discos dedicados a composições de Molly Drake, a mãe de Nick Drake, ou a canções de Robert Wyatt e Antony & The Johnsons (dois dos cinco álbuns que compõem a série Diversions, com interpretações de diferentes cancioneiros, em estúdio e ao vivo); uma trilogia com canções inspiradas em três perspetivas femininas ao longo do tempo: a escritora Emily Brontë, poetas da Primeira Guerra Mundial e uma pescadora de Hull, Lillian Bilocca. 

E este 2022 ficou bem mais bonito com Sorrows Away.
[24/10/2022]

Dezembro 30, 2022

O Rei. Num parágrafo e cinco capas

Miguel Marujo

Morreu Pelé.

"Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: dezassete anos! Há certas idades que são aberrantes, inverosímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter dezassete anos, jamais. Pois bem: verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: ponham-no em qualquer rancho e a sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor. O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se sentir rei, da cabeça aos pés."  (Nélson Rodrigues, citado por Rui Frias, no DN)

 

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Dezembro 28, 2022

Linda de Suza. E, entretanto, crescemos

Miguel Marujo

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Linda de Suza, 1948-2022

 

Em 1995, numa viagem pela Costa do Marfim, fiquei alojado numa instituição que acolhia crianças e jovens deficientes abandonados pelas famílias. Estávamos em Bouaké, bem no interior do país. Ao pequeno-almoço, no primeiro contacto com os que lá moravam, aquela mulher cega, que nunca tinha saído dali (era a única "deficiente" adulta, deixada na rua quando bebé, por ter nascido cega), de riso expressivo e conversa desenvolta, soltou uma gargalhada quando ouviu de onde eu vinha. "Ah, Portugal! Lindá de Suzá! Ouço muito na rádio" — e começou a cantarolar uma canção da portuguesa da "valise en carton". Há malas de cartão que nos deixam marcas, mesmo que na nossa adolescência fossem apenas um nome para piadas fáceis. Entretanto, crescemos.

[texto originalmente publicado na minha página do Facebook]

Dezembro 08, 2022

45 anos

Miguel Marujo

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O Avô Albertino deixou-nos a sua nogueira e, mais do que nozes, a árvore traz-nos memórias — e estas são difusas, ténues: não me lembro da voz, mas dos olhos azuis água, do cabelo branco e de um bigode tão clássico como fora de uso, dos rebuçados que pareciam brotar dos bolsos para os seis netos, do chapéu sempre impecável sobre o cabelo branco. Nasceu na monarquia, morreu na democracia, viveu sobretudo sob a ditadura. O Avô Albertino era homem com ar sério, mas também seria um homem triste, que a esta distância não lhe sei decifrar os olhos azuis água nem os sentimentos, um pai que perdeu dois filhos, num tempo em que essas notícias eram comuns, e ficou viúvo cedo — e os dois tão soturnos no retrato. Aguentou-se no ofício de mestre-de-obras e carpinteiro, e aquela oficina cheia de ferramentas eram uma delícia para olhos miúdos. Há 45 anos, feriado da Imaculada, ouviam-se os sinos da capela da Senhora da Conceição, talvez três badaladas, há sempre um código para o número de badaladas que os da terra sabem, e a Teresa exclamou “morreu alguém”, era o Avô, e na confusão desse dia só me lembro do choro da minha Mãe. E nunca mais tivemos rebuçados vindos daqueles bolsos.