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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Setembro 29, 2022

Sigur Rós. Da ordem do espanto

Miguel Marujo

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Quando o espanto se apresenta à nossa frente, nem sempre estamos preparados. Quando o belo se passeia aos nossos olhos e ouvidos, podemos ficar muito tempo pasmados, sem saber articular o que sentimos, o que acabámos de viver – e ficamos pasmados. Talvez por isso, horas depois de termos visto os Sigur Rós em palco (no sofrível Campo Pequeno, que tanta luta terá dado aos técnicos de som dos islandeses) ainda nos faltem as palavras e sobrem as emoções para descrever o que foram aquelas quase três horas de concerto.

Podíamos enumerar vulcões e geiseres, uma natureza que irrompe por entre a lava, como a voz de Jónsi se eleva para lá de todas as notas e explosões, de todos os tecidos sonoros que tecem planícies e montanhas, que arrepia no som mais grave ou no tom mais agudo, entre o rouco e o sussurrado, entre o dito e o que ficou por dizer.

Cada uma das 21 canções (aos primeiros dez temas, mais intimistas, seguiu-se um hlé, intervalo, para novo set de 11 músicas sob a luz de um solstício de verão) mostrou um público ávido, mesmo que ali não se acompanhe cada um dos versos, e em comunhão com os quatro islandeses. Por trás da exaltação de cada espectador, desconfiamos que todos estavam entre o espanto e o pasmo. E a melhor forma de ir contando a história da noite de 28 de setembro é mergulhar uma e outra vez na discografia mágica destes druidas dos tempos novos.

 

[foto MM]

Setembro 25, 2022

A dança é um lugar estranho

Miguel Marujo

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A dança é uma linguagem que me é estranha — talvez pela inabilidade muito pessoal em dar sentido e ritmo a este corpo. E também por isso a dança fascina-me, mesmo que no dia a dia não a absorva (ou consuma) como com outras artes. Paro por vezes, aos sábados à noite na RTP2, a ver bailados contemporâneos ou clássicos, entre o fascinado e o intrigado: que me dizem aqueles movimentos, os ritmos, os corpos? Sei que, como em todas as artes, o gosto não se impõe, antes discute-se e aprende-se, e estes programas ou alguns (poucos) espetáculos vistos vão ajudando a formar o meu próprio gosto pela dança. Nem sempre incondicional, nem sempre fácil.

Esta noite, Olga Roriz apresentou no CCB um espetáculo que criou com a Companhia Nacional do Bailado (e que repete este domingo), integrado no centenário de Saramago — e o arrebatamento aconteceu(-me). Dos corpos presos na engrenagem, fechados, inquietos e carnais, do amor refletido de Blimunda e Baltazar, dos braços erguidos de punho cerrado, dos risos que soltam os gestos, Deste Mundo e do Outro é um espanto feito espetáculo. E devia ter guia de marcha para todos os palcos do país.

 

[foto CNB]

Setembro 09, 2022

Sete salmos de terra

Miguel Marujo

 

Nick Cave cantou um dia que não acredita num Deus intervencionista, que põe e dispõe do nosso destino e finta-o de uma maneira que deixa sempre um rasto de insatisfação. Em Into My Arms, canção de 1997, os versos iniciais dizem-no assertivamente: I dont believe in an interventionist God.

Depois disso, o tempo pregou-lhe uma partida: em 2015 morreu-lhe um filho, em maio deste ano um segundo. A tudo isto, Nick Cave, músico, cantor, escritor, poeta, nascido na Austrália e a viver em Inglaterra, sobreviveu respirando (just breathe, just breathe, repetia Nick no seu concerto no Porto, em junho). E criando: álbum após álbum, de Skeleton Tree (2016) a Carnage (2021), o seu sopro deu-nos absolutas obras-primas, onde a dor, a morte e Deus respiram em cada verso e em cada estria. (Fica de fora Push the Sky Away, de 2013, outra obra maior, por ser anterior à tragédia de 2015.) “Assumi, por razões de sobrevivência, um compromisso com a natureza incerta do mundo. É aqui que o meu coração está”, dizia-nos em agosto de 2019, sobre a morte de Arthur.

Agora há este novo trabalho, Seven Psalms, objeto inclassificável, um disco de spoken word, no qual os versos dos textos são lidos sobre uma camada sonora construída por Nick Cave e Warren Ellis. São sete salmos destes tempos, escritos pelo australiano, numa prosa tão poética quanto reveladora de quem tem pressa em dialogar com Deus. É mais uma peça a juntar à prolixa produção de Cave, nas suas diferentes roupagens, nestes últimos anos: Ghosteen (2019), Idiot Prayer — Nick Cave Alone at Alexandra Palace (2020), Carnage (2021), B-Sides & Rarities Part II (2021), La Panthère Des Neiges (2021) e este Seven Psalms (2022). Sem esquecer Litanies (2021), um conjunto de 12 litanias que Cave escreveu para o compositor belga Nicholas Lens.

Para fãs de longa data, menos atentos às referências bíblicas que sempre compuseram a já longa discografia de Cave, este é um exercício que não pedirá um segundo de escuta (serão “tretas”, senhores). Para os outros, eventualmente os que foram descobrindo Nick Cave e os seus Bad Seeds desde The Boatman’s Call (1997), esta é uma obra a pedir tempo — e tempo para respirar. É um disco que pede disponibilidade, que se demore nele, a ouvir as palavras e a respiração por entre os versos, uma pausa para escutar. E respirar.

Quando anunciou este disco, em novembro de 2021, Cave antecipou a estrutura dos poemas e a dificuldade que seria para muitos dos seus fãs ouvir este trabalho: “Cada salmo é composto de três versículos de quatro linhas e aborda uma preocupação espiritual diferente — alegria, culpa, maldade, adulação, etc. Os sete [poemas] são registados como uma peça longa. Não [será] para todos, com certeza, mas é uma coisa adorável ao mesmo tempo.”

Nick Cave refere a alegria, mas estes sete salmos descem à terra, com o australiano a contar-nos as suas angústias e ansiedades perante a morte. No primeiro salmo, How Long Have I Waited?, é direto: Lord, I cannot wait a single moment more (“Senhor, eu não posso esperar nem mais um momento.”).

Em Have Mercy On Me, o segundo salmo, encontra-se uma súplica: Havе mercy on me, Lord, and bring me home (Tem misericórdia de mim, Senhor, e traz-me para casa). Ou, logo depois, em I Have Trembled My Way Deep, em que nos diz: My heart, my love, my Lord, my one true bride/ Sanctuary where the eternal yearning rest (Meu coração, meu amor, meu Senhor, minha verdadeira noiva/ Santuário onde a saudade eterna descansa).

 

Os textos não facilitam, impregnados de uma forte espiritualidade, não são para todos, como avisou Cave, mas neles encontramos também um pai que perscruta a tragédia que lhe tocou. Em I Have Wandered All My Unending Days, fala de uma mansão no céu, para onde todos irão, um a um, e em I Come Alone And To You revela que não tem para onde ir, a não ser para junto do Senhor (Deep calls to deep, I have nowhere left to go/ But to you, Lord, breathless, but to you). É um salmo de um profeta quase resignado, que só a melodia que acompanha os diferentes salmos procura sacudir.

As palavras de Nick são sempre ilustradas por delicados tecidos sonoros escritos pelo próprio Cave e por Warren Ellis, o bad seed que é cada vez mais o maestro que o acompanha nas suas diferentes roupas. E o lado B do vinil é uma composição instrumental que junta todos os sete salmos.

Na altura em que anunciou este novo trabalho, sem certezas do que faria com ele, Nick Cave foi desafiado a mostrar algo que andasse a escrever e rematou então a carta com um dos salmos, o sexto, de novo com a morte a pesar nas palavras: “Há coisas que nunca deveriam acontecer”, escreve. “Such things should never happen but we die” — mas nós morremos.

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Nick Cave, Seven Psalms
Kobalt – Goliath Records (maxi vinil)


[artigo originalmente publicado no 7Margens, em 2 de setembro de 2022. Foto © Nikolay Nersesov/ .]

Setembro 06, 2022

"Lá em casa ninguém se zanga com a política. A cozinha não é má"

Miguel Marujo

Adriano Moreira Orlando Almeida GI.jpg

Esta entrevista nasceu com um pretexto: um novo livro de crónicas do DN, que ia ser publicado à época, em 2016. Na altura, o mote era só o livro, mas a direção do DN pediu-me, depois da primeira conversa, que alargasse o âmbito e estendesse para um retrato de vida. Assim foi: a dois tempos, a conversa fluiu como se de um só momento se tratasse. E o registo de uma manhã e de uma tarde sairia em junho desse ano, percorrendo o seu percurso político, cívico e académico, recordando quando esteve detido no Aljube (um episódio que o próprio desvalorizou, por saber do que outros tinham sofrido às mãos da ditadura naquela cadeia), onde conheceu Mário Soares e que ia jantar nessa noite a sua casa, de quando foi ministro do Ultramar no início dos anos 1960, do ressentimento que nunca teve pelo exílio no Brasil, ou do caminho democrático do país. Pelo meio, um homem de cultura e com um saber que nunca soa presunçoso, que questiona, que interpela, mesmo que não concordemos. E para lá da conversa publicada, os longos momentos de diálogo que não foram para a entrevista - e que navegaram à volta do ISCSP, dos filhos, da Academia das Ciências e da sua bela bliblioteca... Adriano Moreira faz hoje 100 anos. 

 

No seu gabinete de todas as manhãs, na Academia das Ciências de Lisboa, Adriano Moreira recebeu o DN, numa conversa que se prolongou a dois tempos, para desfiar histórias e nomes, numa memória que raramente se atrapalhou. O professor universitário jubilado tem um livro novo que reúne as crónicas do DN e outro na calha. Da janela do gabinete vê-se o Passos Manuel, onde fez o liceu e para onde ia a pé desde Campolide. Foi por onde começou a entrevista...

Veio "criança de colo para a cidade grande", mas ao mesmo tempo sentia-se um transmontano a viver em Campolide. Esses dois mundos completavam-se, ou havia grandes diferenças?

Nesse tempo, Campolide era uma espécie de aldeia anexa a Lisboa, eu por exemplo andei neste liceu e eu vinha a pé de Campolide até aqui [e aponta pela janela].

Com um grupo de colegas.

Sim, eram dois. Depois voltávamos ao fim das aulas, eram quilómetros de caminho. Era um meio que também tinha alguma coisa de aldeia. Acontece que os transmontanos eram, e são, muito solidários. Todos os amigos do meu pai e da minha mãe eram transmontanos que estavam em Lisboa, e eu sempre fui passar as férias grandes com o meu avô para a aldeia. Eram três meses, três meses de liberdade, isso fez de mim muito mais transmontano do que lisboeta - não só a gente com quem nos dávamos. Aqui tem como é que eu fiquei transmontano. Uma coisa curiosa: quando tive de ter funções públicas, a qualquer um dos sítios onde eu chegava havia logo transmontanos, vinham logo ter comigo.

Ainda vai a Grijó de Vale do Infante, a aldeia onde nasceu?

Vou. Sabe o que significa Grijó? Quer dizer igrejinha, por isso há vários em Portugal. Eu vou lá de vez em quando por várias razões - primeiro porque estão lá enterrados o meu pai e a minha mãe. Eu tenho sempre um afeto permanente pelos meus pais. Um pai que é filho de um empregado de um moinho, vem para Lisboa e faz serviço militar e, como era costume da migração lá de cima, eles tinham oportunidade na polícia, na Guarda Republicana e nos elétricos. O meu pai acabou a vida como subchefe da polícia do Porto de Lisboa. Este homem, com estas dificuldades, resolveu que tinha um filho e uma filha e que os dois tinham de ter um curso superior - imagina o sacrifício? A minha irmã é médica e eu sou esta pessoa, licenciado em Direito e sou doutor em não sei quantas coisas.

Falava da ligação com o seu pai.

Tenho sempre uma fotografia do meu pai comigo [puxa da carteira para a mostrar] e no meu escritório. Em casa também, na sala de estar, um retrato que um amigo meu, que é pintor, pintou e fez-me uma surpresa.

A sua mãe?

A minha mãe também era da aldeia, ficava em casa mas fazia trabalhos de costureira. Aquela gente era especial porque o pai da minha mãe já era assim uma pessoa que tinha estado no Brasil, dois anos (teve uma zaragata com a administração pública em Macedo de Cavaleiros e depois teve de emigrar). Depois voltou para a aldeia. Era um homem muito lido, recebia jornais, como O Século, que lia todos os dias num banco de pedra.

É esse avô de quem diz que só por o ter conhecido valeu a pena já ter vivido?

É. Era um homem extraordinário, sensato, muito lúcido e muito inteligente, aliás, a minha mãe ficou com a inteligência dele. A vida na aldeia era terrível, ele teve oito filhos e enterrou cinco com tuberculose, mas nunca o ouvi queixar-se. Era rijo, com carácter, nada de se queixar. É uma coisa simples. Eu tive uma vida muito simples, fiz o curso secundário a ir a pé, depois fiz o curso universitário a ir a pé para o Campo de Santana e a voltar para Campolide sempre.

O seu mundo, na juventude, é também o mundo da Segunda Guerra Mundial. Aquilo que chegava da Europa até cá ajuda-o a moldar-se politicamente?

Eu devo dizer que, na altura, a política não me interessava.

Mas junta-se em 1945 a uma lista do MUD (Movimento de Unidade Democrática, de oposição).

Não. Isso foi porque no escritório onde estava a fazer o estágio toda a gente assinou essa lista - e eu também. Eram eleições livres e eram o que pediam. Eu formei-me com 21 anos e estava naquele escritório e toda a gente assinou.

Não é a Segunda Guerra Mundial que o muda politicamente?

Eu entrei na Faculdade de Direito com 16 anos. A grande inquietação que nós tínhamos eram as notícias sobre o avanço das tropas alemãs que já estavam nos Pirenéus, e a invasão da península era uma coisa possível. O sentimento da população em geral era contra os alemães. Não é que o povo soubesse o que era o nacional-socialismo, mas o homem estava a destruir a Europa, isso era bastante para ter medo e até a nível moral ser contra. Como eu tive toda a minha juventude com necessidade e esforço físico, a política não me interessava realmente. Só muito tardiamente é que comecei a interessar-me, sobretudo quando enveredei pela vida universitária. Houve duas coisas - a que eu chamo as minhas quedas no mundo - que me levaram a interessar a sério pelas coisas: fui convidado para ser professor da Escola Superior Colonial. E [o ministro do Ultramar] Sarmento Rodrigues pediu-me para estudar o problema prisional do Ultramar. Fui a todas as colónias de África e escrevi um livro, que foi a minha tese de concurso, sobre O Problema Prisional do Ultramar. Ganhou um prémio da Academia das Ciências, que nesse tempo era nem mais nem menos do que 80 contos, e dei-o todo à minha mãe para reconstruir a capela da aldeia.

A pedido da sua mãe?

Não, ela não pediu, não foi preciso, eu sabia da capela, foi um gosto muito grande para mim, a minha mãe era muito crente e vi que era uma coisa que poderia fazer, de maneira que, com esse prémio, paguei.

Voltando à tese...

Eu fiz isso e inspirou a "reforma Sarmento Rodrigues" no regime prisional. Ainda hoje acho que a reforma foi boa. A minha inspiração principal veio de um médico que havia no Congo, que era um homem que além de médico era teólogo e músico e resolveu adaptar o hospital à cultura nativa. O que interessava eram as populações nativas, eu disse que só podia haver campos de trabalho para que tivessem uma atividade em que fizessem a sua agricultura e com bom comportamento podia significar juntar a família. Comecei a interessar-me por aquilo e digo que foi a minha primeira queda do mundo porque conhecia o Direito, era o que eu ensinava, mas vi que não era o Direito que estava em vigor. Depois vem o problema de Portugal entrar nas Nações Unidas: o chefe da delegação foi o Dr. Paulo Cunha, que era um grande professor, tocava violino, era alegre, e foi-me buscar à Escola [Superior Colonial]. Fui com ele, era gente muito nova e todos de grande categoria, como Franco Nogueira, ainda jovem conselheiro.

Estamos em 1957.

Por aí. É a minha segunda queda no mundo. Eu sabia muito bem o que era a Carta das Nações Unidas e a Declaração de Direitos Humanos, tudo do Direito, mais uma vez, feitas por ocidentais, mas foi a primeira vez na história da humanidade que ouvimos representantes de áreas culturais diferentes, que tinham sido colonizados, a falar ao mundo em função dos seus valores. O Raul Ventura, que era o ministro que se seguiu a Sarmento, organizou um centro de estudos do Ultramar e eu é que fiquei diretor. Fizemos uma data de missões de investigação e é aí que eu começo a defender as teses de que o estatuto do indigenato tem de acabar.

Teses que vai aplicar quando chega a ministro do Ultramar.

Apliquei tudo. Eu mandava um relatório meu para o Ministério do Ultramar e vim a verificar que eles o liam porque dois anos depois o Dr. Salazar manda-me chamar para falar comigo. Quando lá cheguei o Dr. Salazar disse-me: "O senhor escreveu um relatório para o Ministério do Ultramar e disse que em 1961, mais ou menos, haveria revolta, como é que adivinhou isso?" E eu respondi: "Porque tive uma professora na primária que me ensinou a fazer contas", "então como é isso?", "é simples, Portugal não seria condenado enquanto tivesse um terço dos votos das Nações Unidas e eu fiz as contas à entrada dos países e verifiquei que se perdia o terço nessa data, éramos condenados, eles tinham o apoio internacional de todos os lados e a previsão era essa", e então ele disse-me: "O senhor tem razão para dizer que não ao que eu lhe vou perguntar, mas quer vir pôr essas reformas em vigor?", e eu disse "não posso responder assim porque não pertenço a nenhuma política nem sequer fui da Mocidade Portuguesa e, para me meter numa coisa dessas, quem é que me apoia?", e diz ele "apoio eu", e eu disse "não chega, preciso de gente técnica". Depois ele ainda disse: "Eu sei que o senhor tem razões para me dizer que não por causa da questão do Santos Costa", e eu disse-lhe "senhor presidente, desculpe, mas não é o único português que põe os interesses do país acima das suas discordâncias". E aqui tem como é que eu entrei.

Esse episódio é de 1948, quando defende a família de um general num processo de homicídio voluntário, que faz um pedido de habeas corpus, o primeiro de todos, e acaba preso no Aljube.

Essa história nunca a abordo muito porque já morreram as pessoas, mas sim, fui preso. António Ribeiro, que era advogado da Standard Elétrica - que foi onde eu comecei a trabalhar -, ele é que me encarregou de tratar desse assunto. Um dia chamaram-me à PIDE, o inspetor conhecia-me de miúdo porque o meu pai era subchefe da polícia, quando eu entrei, disse: "Tu é que meteste aquela velhota num sarilho?" e eu disse "qual velhota?", "a viúva do general Mouzinho", e eu disse "não a conheço", "mas ela fez a queixa em nome dela e disse que falou contigo", "não", "então quem é que falou contigo?", e eu disse "isso é segredo profissional, não posso dizer". Ele foi ao telefone e depois voltou e disse: "Olhe, eu falei com o ministro da Justiça, que foi teu professor, não foi?", e eu disse "foi", "ele disse que não podia esperar outra resposta tua mas que te prendesse", "tudo bem, cumpra as ordens".

Esteve ainda dois meses detido?

Quase. Salazar mandou pedir o processo que metia o Santos Costa e arquivou o processo e disse "ponha o rapaz em liberdade, que é o único que se portou com dignidade". Quem interveio logo a seguir foi a Ordem dos Advogados, naquele tempo ser advogado era uma coisa a sério. O ambiente da advocacia era muito diferente de hoje, eu conheci advogados espantosos nesse tempo, ainda fiz tribunal, defesas, e não correram mal. O poder da palavra pode vencer a palavra do poder, era o conceito desse tempo.

Foi um mês e meio complicado para si?

Não, os que estavam presos eram todos comunistas, de maneira que eu era uma pessoa à parte.

Conheceu Mário Soares no Aljube?

Sim, e ficávamos amigos. Ainda hoje [no dia da entrevista] vou jantar a casa dele. Ele é um ano mais novo do que eu, eu tinha lá ao meu lado, na minha camarata, a História da Filosofia do Hegel e tinha O Príncipe [de Maquiavel], que é um livro muito célebre. Ele chega ao pé de mim, diz que se chama Mário Soares e diz "você lê uma literatura toda reacionária" e eu: "Estou a fazer estudos para miguelista" - e ficámos amigos até hoje.

Esteve preso por quase suspeitas?

Sim, "quase suspeitas", e por isso é que Salazar me disse "o senhor tem razões para me dizer que não", que é quando lhe digo "o senhor não é o único português que mete os interesse do país acima das discordâncias".

Acabar com o indigenato significava exatamente o quê?

A relação dos colonizadores, quando começa no século XVI, é de senhores para escravos. Quem acaba primeiro com a escravatura nesta metrópole chama-se Marquês de Pombal, depois no Ultramar é o Sá da Bandeira, mas logo a seguir veio o estatuto do indígena, que era a negação da cidadania, que permitia abusos do ponto de vista selváticos. Além de revogar o indigenato, fiz um código de trabalho rural que foi considerado o mais avançado de África. Depois, é claro, instalei o ensino superior e foi uma luta. Fiz o que pude naquele período todo, mas para isto foi uma fadiga muito grande.

Oliveira Salazar pede-lhe então para mudar de política.

Em determinado momento. Isto, como calcula, atingiu interesses brutais, mudou-se uma estrutura. Eu tenho um filho que é advogado, o João, que esteve em Moçambique, e tinha um colega africano que um dia lhe perguntou se era filho do Adriano Moreira, e ele disse que sim, e ele disse "então vou dizer-te uma coisa: o meu pai africano disse que só teve o primeiro dia de felicidade na vida, já tinha 70 anos, quando lhe deram o bilhete de identidade por causa do decreto do teu pai", portanto veja o que representava para eles. O próprio Salazar começou a sentir reações das bases de apoio dele. Ele chamou-me e disse-me: "Quando o chamei disse-lhe que apoiava as suas reformas, tenho cumprido ou não?", e eu não fazia ideia para que era a conversa, disse "sim, até agora tem cumprido". E disse ainda: "Mas devo dizer-lhe o seguinte, as reações são de tal ordem que eu próprio não estou seguro de poder continuar chefe do governo, temos de mudar de política", e eu com convicção disse assim: "Vossa excelência acaba de mudar de ministro", e ele disse "eu já estava à espera que me respondesse isso", e vim-me embora. Foi sempre atenciosíssimo comigo e, daí por diante, nunca mais tive qualquer atividade política, como não tinha tido antes. Até que veio a Revolução e fui saneado como toda agente.

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Nem essas divergências manifestadas com as estruturas do regime o livraram de saneamentos, na empresa e na universidade.

Na universidade até devo dizer que foi onde tive as reações mais inesperadas, mas eu não estava cá, estava no Brasil em serviço. Quem me disse que não voltasse foi o almirante Pinheiro de Azevedo, que tinha sido meu aluno, e eu disse "então mas como não volto se tenho aí a minha mulher e três filhos?", e ele disse "eu trato disso, eles vão ter consigo". Mas não tratava era da minha vida - passei dois meses difíceis. Conhecia muita gente no Brasil, mas nunca fui de andar a pedir coisas. Um dia veio um professor da Católica, que me encontrou, foi a minha casa, estava numa casa bastante humilde, enfim não chovia lá dentro, e disse-me "ando há dois meses à sua procura para o convidar para catedrático da Universidade Católica do Rio de Janeiro". Quem me mandou reintegrar foi o Eanes, com efeito retroativo, no Instituto Superior Naval de Guerra e na Universidade. Ainda hoje tenho gratidão e respeito pelo general Eanes.

Esse tempo viveu-o com ressentimento no Brasil?

Não, eu não sou de ressentimentos.

No fundo, aquilo que lhe estava a acontecer era explicado pelo contexto da história?

Sim. Depois voltei, fui professor da Marinha, ainda outro dia me fizeram uma festa e disseram que eu entrei para a Marinha há 60 anos, todos os chefes do Estado-Maior que estão reformados foram meus alunos, portanto esta coisa do Eanes comoveu-me muito.

Quando regressa, é convidado por Freitas do Amaral, Adelino Amaro da Costa e Narana Coissoró...

Sim, o Narana que tinha sido meu assistente na Universidade.

E é convidado para o CDS?

Sim. Eu achei que esse momento era muito difícil para o país. [Antes do 25 de Abril] é a tropa que vai avisando que a guerra não se ganha. Segunda coisa: o grande suporte do regime eram as Forças Armadas, e houve avisos de que era preciso mudar. Depois aparece um grupo de Margão, que pede uma constituição federal porque não quer ser invadido pela União Indiana, ninguém aceitou, e houve um movimento para Cabo Verde serem ilhas adjacentes... Eu aí não tinha intervenção nenhuma, mas sei que isso era assim e alguma projeção que eu mantive é porque eles sabiam as coisas que eu tinha escrito. Quando vem o 25 de Abril, a primeira fase chama-se golpe de Estado (que, tecnicamente é quando um elemento da estrutura se afasta), a revolução começa depois. Há [então] um debate e devemos muito ao general Eanes nesse aspeto - a constitucionalização do regime - que ou se tem uma via revolucionária de extrema-esquerda ou se tem uma constitucionalização europeia, que é o que o general Eanes consegue orientar, e também o Freitas do Amaral e o Jorge Miranda. Eles vão ter comigo e convidam-me pelas coisas anteriores que eu tinha feito e que tinha dito e eu, mais uma vez, aceito pelo interesse nacional. Agora era interessante que, tendo a Europa sido feita pelas democracias cristãs, o país onde a democracia cristã não vingou era o país mais católico - é interessante.

São tempos de trincheira. Ou acha que, apesar de todas as diferenças ideológicas que eram fortes naquela época, eram tempos em que o diálogo era possível?

Na Universidade, foi sempre possível, e se você foi estudante ali [no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas], encontrou esse espírito, a pessoa fala livremente.

A democracia foi uma aprendizagem para todos?

É evidente que mudar de regime tem de mudar as pessoas, tem de mudar os hábitos. Mas não se teria feito isso se não houvesse homens lúcidos, e o principal, a meu ver, foi o Eanes e o Jorge Miranda e essa gente, que conduziram isto em termos de constitucionalizar o país no modelo europeu. Foi uma grande batalha que eles ganharam.

A ideia de aderir à União Europeia, a CEE de então, por Mário Soares, também ajuda a consolidar a democracia?

Tudo isso. O Partido Socialista teve um papel fundamental nisso: o comício da Fonte Luminosa [a 19 de junho de 1975] é um facto histórico fundamental. A linha constitucionalista europeísta ganhou mas foi uma batalha. Devo dizer que gostei de estar no Parlamento durante todo aquele tempo, e acho que a cerimónia da saída não foi má [e sorri].

Depois da sua liderança no CDS, num tempo difícil em que o partido estava reduzido a uma dimensão mínima...

Até com uma ação de despejo no Caldas [sede do partido].

Depois disso, e depois da sua primeira experiência política ainda no Estado Novo enquanto ministro, refugiou-se na universidade. Esta era um refúgio importante para si?

Não era um refúgio, para mim é uma vocação.

E a política foi uma desilusão?

Não neste sentido. Eu achei que fazia aquilo que em consciência devia ao país. Agora, foi um esforço que não resultou. Mas eu tenho algumas provas, depois disto tudo. Por exemplo, há uma universidade em São Vicente [Cabo Verde] e eu devo ser o primeiro doutor honoris causa depois da independência. Aqui há tempos ajudei a fazer aquele tratado de Cabo Verde com a União Europeia porque o embaixador que estava cá veio pedir-me, a mim e ao Mário Soares. Fizemos isso, passado algum tempo foi a minha casa a ministra dos Negócios Estrangeiros de São Tomé e disse-me: "Olhe, eu vinha pedir a sua ajuda porque o senhor ajudou a fazer uma coisa para Cabo Verde que nós também precisávamos." Eu disse-lhe: "Ajudo, mas primeiro tem de tomar um compromisso comigo, não mudam o nome da rua que lá têm." Sabe qual é o nome da rua? Rua Ex-Adriano Moreira" [risos]. Ela, coitada, é que depois mudou, passado pouco tempo deixou de ser ministra.

Esperava ver uma das suas filhas, Isabel, chegar à política? Foi uma coisa que cultivou em casa?

Não, isso é uma decisão dela. Eu procurei educar os meus filhos com um certo sentido de liberdade e responsabilidade - e a mim também ninguém me encaminhou. Segui muito o meu pai e os exemplos dele. Esta filha tem comigo uns cuidados e um afeto que é uma coisa... Uma vez um jornalista perguntou-lhe "faz estas coisas e então e o seu pai?", "o meu pai é o homem da minha vida" [sorriso largo].

Conversam muito sobre política lá em casa?

Então não?! À vontade. Ninguém se zanga com a política. A cozinha não é má [risos]. Sabe quantos netos tenho? Tenho 14. De vez em quando, quando se juntam todos, é uma festa.

 



[Entrevista originalmente publicada no Diário de Notícias, em 18 de junho de 2016. Fotos © Orlando Almeida/Global Imagens]

Setembro 04, 2022

Fucking, Nick

Miguel Marujo

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O gajo insiste em semear as melhores bad seeds deste mundo — de fato negro, camisa branca, fucking obrigado e uma noite visceral, apocalíptica e cheia de raiva e amor, há contradições maiores, e sobe ao palco à hora certa e logo nos pede que nos preparemos, get ready for love, e nem o alinhamento igual ao da véspera em Málaga, que vamos antecipando no pequeno ecrã, retira uma linha à surpresa de uma interpretação emotiva, que se sente na voz, no humor, nos parabéns à Paula, nos olhos que se emocionam, I need you, 'Cause nothing really matters, I need you, Just breathe, just breathe, no coração que bate, motherfucker, bum-bum-bum, é um tiro e outro e outro, e é sangue que bombeia o coração, sentes o coração bater, pergunta-nos, e há a história que ele nos conta de uma rapariga, como se fosse a primeira vez, e uma e outra vez que ele respira, ao piano, Come sail your ships around me, And burn your bridges down, sempre esta proximidade, abraços e regressos, That she will keep returning, Always and evermore, Into my arms, olhares e ficar a seu lado, I am beside you, I am beside you, Look for me, look for me, esperando sempre o regresso, talvez de um filho pródigo, And it's bringing my baby right back to me, Well there are some things too hard to explain, e depois os olhos marejados, e o obrigado, Lisboa, para sacudir o piano, a tristeza, para logo abrir os braços como o profeta bem acolhido nesta casa, o pastor que exorciza demónios e vergonhas, Tupelo's shame, O God help Tupelo!, um culto em que se sabe ao que se vai e mesmo assim se surpreende, e a banda que é um bando de amigos acólitos e o coro saído daquela igreja que dança, bate palmas, grita aleluia, faz a festa, é uma festa, e é uma fé enorme esta, entre as descargas das sementes ruins e a voz que vocifera just breathe, just breathe, e todos respiramos, bebemos deste sangue e deste cálice. 

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Não me peçam que saiba descrever com palavras precisas a emoção maior que foi (que é) este concerto de Nick Cave & The Bad Seeds — no seu regresso a Lisboa. Foi o último desta fucking digressão de três meses pela Europa. Nunca sairá da nossa memória. Fucking, Nick, bem nos divertimos.

 

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[Fotos de João Amaro Correia]