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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Agosto 09, 2022

Bebê-las louras, com gravata, que é como os homens e as mulheres gostam

Miguel Marujo

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O calor pede que seja servida fresquinha. E peça-a com espuma, aquela gravatinha irresistível. Este é também o roteiro possível de uma escolha difícil - onde beber boas imperiais ou finos. Uma escolha muito parcial. [Esta reportagem é de 25 de julho de 2012. Talvez haja sítios que já não existam, mas o essencial permanece visível ao palato.]

 

Este é o relato de uma tarefa impossível – e injusta. Indicar ao leitor onde se bebem as boas imperiais, os melhores finos. Impossível porque o redator não provou todas, nem nada que se pareça. Valeu-se de inquéritos instantâneos, de memórias mais ou menos recentes, de guias insuficientes. E da ideia de uma página continuamente em construção (mas podem entupir a caixa de correio do redator com sugestões para o verão que aí está).

Faltam os roteiros que ajudem à tarefa, as revistas especializadas, as páginas de entendidos. Em tempos, o atual secretário de Estado da Cultura alimentou uma página na extinta Grande Reportagem sobre cervejas – e daí resultou um livrinho de Francisco José Viegas feito guia para "não morrer de sede no inferno". Podem tragá-lo.

Depois há os afetos e as companhias, que tornam aquele fino memorável ou obrigam a esconder aquela imperial no recanto mais escondido da nossa memória. 

Mais: esta é uma tarefa injusta porque aqui se vão omitir muitas cervejarias, cafés, tascas, bares ou restaurantes onde ela sai da torneira como mandam as regras.

As regras, já se sabe, variam consoante as circunstâncias e os palatos, mas Jorge Sousa – chefe de turno da histórica Cervejaria Trindade, em Lisboa, que guiou o DN num curso intensivo sobre a arte – explica-nos que o copo se quer seco, bem seco (perde-se na história, a história de tasqueiros que não lavavam os copos), e inclinado, qualquer coisa como uns 30º, nem muito próximo do tirador nem muito afastado. Faz diferença o tempo que se leva do tirador à mesa ou ao balcão, por isso se deve ter atenção.

Quando está quase cheio, endireita-se o copo, dois dedos de espuma, uma gravatinha, a bebida ali na marca dos 20 cl se for imperial, ou 40/50 cl, se nos atrevermos à caneca. É tudo um jogo de equilíbrios.

Os homens e as mulheres preferem-nas louras. É a clássica lager que domina o mercado, a Sagres e a Super Bock, num Benfica-Porto das cervejas, onde as outras tentam a bravata de jogar de igual para igual. Mas a variedade já se faz ao balcão de uma qualquer boa cervejaria, com louras, ruivas, escuras, mais ou menos adocicadas, ou de travo amargo.

A porter escura e densa que dá pelo nome de Guinness, por exemplo, vive nos bares irlandeses (o Hennessy's ou O'Gilins) do Cais do Sodré, em Lisboa, mas também já se bebe ao balcão da Trindade.

Dizem, porque o redator não teve a possibilidade de ir testar ao vivo e no paladar, que a melhor imperial do País é tirada no Lebrinha, em Serpa. Ninguém sabe explicar o segredo, que é a alma do negócio, mas na Net encontram-se relatos de nortenhos a dar o copo à palmatória, por se tratar de um fino saído com a chancela da Sagres.

Recanto improvável para ir beber a que será a melhor imperial do País, como são outros que se pôde recolher na preparação deste roteiro: no Álvaro, na aldeia da Urra, às portas de Portalegre; no Horácio, em Linda-a-Velha, ou no Eduardo das Conquilhas, na Parede; no Augusto e no Tico-Tico, em Aveiro, ou no Café do Farol, na praia da Barra, ali próximo; no Chez Maurice, com o mar e a praia da Aguda (Gaia), aos nossos pés; no Bar Amarelo, da Praia do Homem do Leme, do Porto, como cantam Os Azeitonas; nas tascas das arcadas da Praça Velha da Guarda; na Praxis, que na Coimbra dos estudantes produz as suas próprias cervejas; ou no Bar Bonaparte, o pub de tipo irlandês que um alemão mantém no Porto, e que vem a ser (palavra de Viegas) "o lugar português mais apropriado para beber a Erdinger".

Em Lisboa, multiplicam-se as cervejarias clássicas, como a histórica Trindade ou a Portugália, a Ramiro ou a Lusitana. Há ainda, no Mercado de Alvalade, a Sem Palavras, ou a Bota Velha, em Campo de Ourique.

É uma amostra modesta, parcial e parcelar. E seca. Há horas que o redator só sonha em sair da redação e poder gozar a companhia de uma loura. Este sol de verão está a pedi-las.

[artigo originalmente publicado no Diário de Notícias, em 25 de julho de 2012; informações sobre os locais podem estar desatualizadas]

Agosto 07, 2022

As praias que pedem paciência

Miguel Marujo

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As praias da minha infância pedem paciência, pedem que sejamos pacientes, não se consomem facilmente, pedem tempo, que nos demoremos nelas.

A Barra e a Costa Nova, mas também São Jacinto, Torreira, Vagueira, Areão e Mira, vivem-se sem pressas: há nevoeiro pela manhã, mesmo que já não haja a ronca do farol a dizê-lo, mas sabemos que vai abrir mais tarde, e abre; há ondas altas e um mar bravo de bandeira amarela ou vermelha, faz-se o passadiço ao longo das dunas e a Barra promete águas mais calmas (e se não, vai-se até junto da Meia Laranja, na Praia Velha); a água está mais fria, mas os ossos sabem que tudo se suporta — e ser paciente é ir entrando no mar dentro devagarinho. Nem sempre é assim, sim, mas nas outras praias também nem sempre é assim.

As praias da minha infância são pacientes, e é sempre um gosto mergulhar nelas, nas suas areias, no mar que as faz, nas pessoas que as habitam. Já tenho saudades.

 

[a fotografia, captada com uma grande angular, foi tirada na zona da antiga Rua 5, à entrada da Barra, a meio caminho entre a Costa e o Farol, no dia 24 de julho de 2022, pelas 18h10 — © Miguel Marujo]

Agosto 06, 2022

“Enough!”. O fã que se fartou das “tretas” de Nick Cave sobre Deus

Miguel Marujo

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A mensagem é curta e grossa: “For fucks sake, enough of the God and Jesus bullshit!” – a tradução pode ser suavizada, ou carregada nas tintas. Dada a ira do leitor de Nick Cave, o tom será mais o calão forte que a interjeição zangada. “Caramba! Chega desta treta de Deus e Jesus!” (traduzamos assim).

O cantor, músico e compositor australiano, há muito radicado na Grã-Bretanha, não responde logo a Jason, de Londres. À pergunta irada, Nick Cave junta outras questões, feitas por Lorraine, de Berlim, Alemanha: “Quais são os seus pensamentos sobre a liberdade de expressão? Acha que é um direito?” – e é por aí que ele vai na sua resposta, a dissertar sobre a liberdade de expressão…

Já aqui falámos sobre este site de conversa que Nick Cave criou e alimenta: em The Red Hand Files, o australiano responde a questões dos seus fãs e leitores, e estas vão das mais prosaicas sobre a música e os discos, até às que aprofundam questões complexas e filosóficas.

A 9 de junho, Sue, de Paris, França, perguntou-lhe: “Na tua opinião, o que é Deus?” – tema recorrente, já se sabe, na discografia e na correspondência de Nick Cave. A resposta do australiano é assertiva: “Deus é amor”, e explica que é por isso que sente “dificuldade” em relacionar-se “com a posição ateísta”. A explicação é demorada: “Cada um de nós, mesmo os mais resistentes espiritualmente, anseia por amor, quer percebamos ou não. E esse anseio chama-nos para sempre em direção ao seu objetivo — que devemos amarmo-nos uns aos outros. Devemos amarmo-nos uns aos outros. E principalmente acho que o fazemos — ou vivemos muito próximos da ideia, porque quase não há distância entre um sentimento de neutralidade em relação ao mundo e um amor crucial por ele, quase nenhuma distância de todo. Tudo o que é necessário para passar da indiferença ao amor é ter os nossos corações partidos. O coração parte-se e o mundo explode diante de nós como uma revelação.”

 

Talvez valha a pena recordar, neste ponto, que muito recentemente, em maio, Nick Cave perdeu mais um filho, Jethro, de 31 anos, depois de em 2015 ter morrido, com 15 anos, Arthur — e esta primeira morte marcou de forma indelével os trabalhos do músico nos últimos anos.

Com esta reflexão sobre Deus, Cave disserta sobre o bem e o mal, e no fundo está a revelar as inquietações de um pai que perdeu dois filhos. “Não há um problema do mal. Há apenas um problema do bem. Por que é que um mundo tantas vezes cruel insiste em ser belo, em ser bom? Por que é que é preciso uma devastação para o mundo revelar a sua verdadeira natureza espiritual? Não sei a resposta para isto, mas sei que existe um tipo de potencialidade para além do trauma. Suspeito que o trauma seja o fogo purificador através do qual realmente encontramos o bem do mundo.”

Na resposta aos seus fãs, Nick Cave confessa-se — com uma oração, descobrimos nós. “Todos os dias eu rezo para o silêncio. Eu rezo a todos eles. Todos eles que não estão aqui. Nesse vazio, eu despejo todo o meu desejo, desejo e necessidade, e com o tempo essa ausência torna-se potente, viva e ativada com uma promessa. Essa promessa que fica dentro do silêncio é beleza o suficiente. Esta promessa, neste momento, já é espanto suficiente. Esta promessa, agora mesmo, é Deus suficiente. Esta promessa, agora, é o máximo que podemos suportar.”

A liberdade de criar

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Esta carta a Sue terá levado o londrino Jason a dizer que estava farto das “tretas” sobre Deus e Jesus. (Num jornal português, também por causa disto, um crítico de música desdenhou de um dos discos mais recentes de Nick.) E a resposta serve-se com diplomacia: Cave começa por falar da liberdade de expressão — e sendo ele autor, pode dizer-se que ele nos fala sobre a liberdade de criação.

Assumindo que os seres humanos são “criaturas subtis e caóticas, cheias de ambiguidades e contradições”, “total e necessariamente diferentes uns dos outros”, apesar de reduzidos a categorias “arbitrárias de identidade”, como são a raça, a religião ou o género, Nick Cave defende ainda a “amálgama” de que é feito cada indivíduo. “Cada um de nós é um amálgama de tudo o que amamos, perdemos e aprendemos, os nossos sucessos e fracassos pessoais, os nossos arrependimentos particulares e as nossas alegrias singulares – e parte dessa singularidade é o que pensamos de maneiras diferentes.”

Nick Cave defende que a liberdade de expressão “é uma conquista social ou cultural, algo que nós, como comunidade, podemos usar para animar, encorajar e liberar a alma do nosso mundo, desde que tenhamos a sorte de viver numa sociedade que permita tal coisa”. Trata-se de uma questão que ajuda a aferir da qualidade de uma democracia – das sociedades. “Poder falar livremente não é apenas um benefício para si mesmo, fazendo com que nos sintamos menos sozinhos, é também um barómetro da saúde da nossa sociedade, assim como a intolerância a ideias opostas indica uma fraqueza ou falta de confiança em seus próprios pensamentos e as ideias da nossa sociedade”, argumenta.

Percebe-se porque é que Cave começa por falar sobre a liberdade de expressão, contra “a intolerância a ideias opostas”. Para melhor dizer que falar de Deus e de Jesus, para ele, só é possível numa comunidade na qual se pode falar livremente. E o músico situa Jesus como alguém que viveu num tempo em que falar era arriscado: “Jesus percorria a terra expressando o que eram, na época, ideias consideradas perigosas e heréticas.” Por isso, argumenta, Jesus “foi seguido por um círculo nervoso de escribas e saduceus a resmungarem, cujo objetivo era apanhá-lo – expor não apenas as Suas ideias perigosas, mas desnudar e perseguir a sua singularidade”.

Sabemo-lo, “eles tiveram sucesso, e Cristo foi cancelado na Cruz”, descreve Nick, usando uma curiosa formulação adequada a estes tempos ditos de “cancelamentos”. As ideias de Jesus eram “impossíveis e perigosas – amar o inimigo, amar os pobres, perdoar os outros – [e] eram aterrorizantes, inconcebíveis e proibidas na Sua época, mas tornaram-se, com o tempo, as melhores ideias que sustentam a sociedade em que muitos de nós temos a sorte suficiente para viver hoje. Vale a pena lembrar isto.”

Este discurso, também político, é aquilo que permite a Cave voltar à questão da tolerância necessária para viver em comunidade. “Acho que devemos ter cuidado com as nossas suposições sobre quais as ideias que achamos certas e quais as ideias que achamos erradas, e o que fazemos com essas ideias, porque é a ideia aterrorizante – a ideia chocante, ofensiva e única – que exatamente pode salvar o mundo.”

 

[artigo originalmente no 7Margens, em 26 de junho de 2002; a primeira imagem é Der Gaukler (c. 1502), de Hieronymus Bosch, reproduzida a partir do site de Nick Cave; a segunda imagem é The Love of God, detalhe (c.1861–1869), de Georgiana Houghton, também reproduzida do mesmo site.]

Agosto 03, 2022

Uma lápide em gaélico foi proibida num cemitério inglês — e nós ganhámos uma bela canção

Miguel Marujo

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A Igreja de Inglaterra proibiu uma inscrição em irlandês numa lápide fúnebre, em Coventry, argumentando que a frase teria de ser traduzida para inglês para que as pessoas não a confundissem com uma declaração política. A família de Margaret Keane foi para tribunal e ganhou – e os irlandeses Fontaines D.C. fizeram desta história uma (belíssima) canção do seu mais recente disco, que apresentaram em Lisboa no festival Alive, a 6 de julho.

Em julho de 2018, quando da morte de Margaret aos 73 anos, os seus familiares quiseram inscrever, na pedra do túmulo no cemitério da Igreja de St Giles, em Exhall (Coventry, centro de Inglaterra, perto de Birmingham), a saudade que tinham: “In ár gcroíthe go deo”, que se traduz por “Para sempre nos nossos corações”. Não puderam.

Dois anos depois, em 2020, o juiz Stephen Eyre QC, de um tribunal eclesiástico – o Tribunal Consistório da diocese de Coventry, da Igreja da Inglaterra (Comunhão Anglicana) – argumentou que aquelas palavras tinham de ter tradução simultânea. “Dadas as paixões e os sentimentos ligados ao uso do gaélico irlandês, existe um triste risco de que a frase seja considerada uma forma de slogan ou que a sua inclusão sem tradução seja vista como uma declaração política”, começou por apontar o juiz, citado pelo jornal The Irish Times. “Isso não é adequado, pelo que a frase ‘In ár gcroíthe go deo’ deve ser acompanhada de tradução.”

A Igreja da Inglaterra disse na época, num comentário solicitado pela BBC, que a decisão “não reflete” a sua política nacional, acrescentando em comunicado que “a língua irlandesa é uma parte importante do património” da organização.

O pedido para não haver qualquer tradução tinha partido da filha de Margaret, Caroline Newey. Segundo a decisão do juiz, a filha argumentou que não havia necessidade dessa tradução, uma vez que “a língua irlandesa é considerada não apenas um meio de comunicação, mas [também] um veículo de valor simbólico”. Para Caroline Newey, “o uso dessa língua sem tradução não é uma declaração política, mas [antes] o reconhecimento da identidade da sra. Keane e é para honrar… [a sua] língua nativa”. O juiz não acolheria a argumentação da família: a inscrição seria “incompreensível” para a maioria dos que a leriam e decidiu-se pela necessidade de traduzir a frase.

Esta decisão acabou posteriormente por ser anulada, por discriminação racial, em fevereiro de 2021, culminando uma batalha de quase três anos para que o local de repouso final de Margaret Keane pudesse ficar assinalado com palavras da sua terra natal, como desejava a família. 


Dos jornais para o disco

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Neste tempo, Grian Chatten, vocalista e letrista dos Fontaines D.C., leu a história nos jornais e escreveu aquela que é a canção de abertura do mais recente trabalho destes irlandeses, Skinty Fia, lançado a 22 de abril. O título do tema é bebido na inscrição gaélica desejada pela família: In ár gcroíthe go deo.

Na BBC, Bernadette Martin, outra das filhas de Margaret, descreveu a canção como “um final adequado para a jornada que vivemos em família”. “Era a última coisa que esperávamos”, contou. “Quando ouvimos, a primeira coisa que fizemos, eu e as minhas irmãs, foi ficar no túmulo da minha mãe, tocá-la para ela e ouvi-la pela primeira vez naquele lugar especial.”

A família acabou por entrar em contacto com a banda, depois de terem visto a lista das canções do álbum, contou a BBC. O vocalista e letrista, Grian Chatten, diz que, nesse contacto, a família de Keane manifestou a sua aprovação e isso foi “uma das coisas mais incríveis que já aconteceram”. “Isso significa muito mais para mim do que qualquer nomeação para os Grammy”, atirou Chatten à BBC. E acrescentou o seu contentamento por terem sido capazes de dizer algo sobre uma história assim”, sem desrespeitar ou ofender ou de qualquer forma apropriar-se “do que era essencialmente uma história de família.”


O problema do irlandês

Inspirada na história de Keane, esta canção vive também da história pessoal de Chatten. Este novo disco dos Fontaines D.C. é um retrato sobre ser-se irlandês não vivendo na Irlanda, e sentir-se por vezes indesejado. Como o gaélico da lápide de Margaret. Foi isto que inspirou Chatten, que agora mora com a namorada em Londres. “Esta história saiu muito antes de eu me mudar definitivamente para Londres”, disse na conversa com a BBC. “Para ser honesto, deixou-me nervoso com a mudança”, confessou. “A ideia de que uma língua em si é inerentemente política é profundamente crítica, errada e retrógrada. Porque essa língua é a mesma que é usada para dizer: ‘Aproveita o teu primeiro dia na escola, filho’”, argumentou. Para concluir: “Há mais para desinspirar as pessoas do que um conflito.” 

Numa outra declaração, o tom de Grian Chatten é ainda mais mordaz, sobretudo em relação à posição da Igreja anglicana. Com a recusa daquela frase, “a Igreja de Inglaterra decretou que [o gaélico] seria potencialmente visto como um slogan político”. A língua irlandesa – que se tornou minoritária durante o domínio britânico da ilha e é uma arma na disputa entre os dois países – acaba por ser vista como algo que incendeia as emoções, “o que é um nível muito básico de xenofobia”.

A revolta está nas palavras, mais do que na canção. “Considerar o irlandês e perceber o irlandês como algo inerentemente ligado ao IRA ou ao terrorismo ou qualquer coisa assim, é profundamente perturbador. Eu senti-me como se estivesse a olhar para o cano da arma, ao ir viver para este país, que realmente não recebe bem as pessoas irlandesas. Ainda considera as pessoas da Irlanda como algo não confiável e ameaçador.”

Chatten revelou que tudo isto o fez pensar na sua “própria família no oeste da Irlanda”, tocando os seus instrumentos tradicionais (e ele próprio toca acordeão no novo álbum, recorda a BBC) e cantando músicas na véspera de Ano Novo. “Penso que eles fazem parte deste [corpo] que estava a ser julgado desta maneira, e isso deixa-me muito chateado pessoalmente.” Ao ouvir In ár gcroíthe go deo, há aborrecimentos que se podem aplaudir.

Já o baixista do grupo, Conor Deegan III, disse a Chatten que houve uma coisa positiva, que foi a de não terem conhecido o desfecho do caso a favor da família, antes de concluírem a música. Só assim, argumentou Conor, o refrão da canção pode ser repetido com “o mesmo sentimento de lamento”, como se ouve nos coros quase fúnebres de In ár gcroíthe go deo, num registo que remete também para a tradição musical irlandesa dos laments (goltraí, em gaélico), canções tristes muitas vezes cantadas em velórios ou que lembram tragédias locais. 

Não há tristeza neste epílogo: Margaret pôde ser homenageada como a família desejava e os Fontaines D.C. deram-nos mais uma bela canção neste seu terceiro disco, que merece ser escutado de fio a pavio.

 

[artigo originalmente publicado no 7Margens, a 30 de junho de 2022]