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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Junho 17, 2022

A fraternidade é vermelha

Miguel Marujo

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Jean-Louis Trintignant, 1930-2022: « Etre une page blanche, partir de rien, du silence. Dès lors, on n’a pas besoin de faire beaucoup de bruit pour être écouté. » (in Le Monde

Figure majeure et farouche du cinéma, l’acteur aux 120 films, révélé aux côtés de Bardot dans «Et Dieu... créa la femme», a promené son élégance chez Lelouch, Bertolucci, Chéreau ou Haneke. Obsédé par l’idée du suicide et marqué par les tragédies intimes, il est mort ce 17 juin à 91 ans. (in Libération)
 
[imagem: fotograma de Rouge, da trilogia Trois Couleurs, de Krzysztof Kieślowski]

Junho 12, 2022

Esta Amélia que anda a monte

Miguel Marujo

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Amélia Muge é um dos segredos mais mal guardados da música portuguesa — e à conta desse novo Amélias, absolutamente genial, publicado há um par de meses, recupero uma conversa antiga (de 2002, só publicada em 2003) com esta cantora-autora-compositora. Na altura, o Culto!, site de cultura do portal IOL, apresentou esta entrevista, dispensando-se as perguntas, a propósito de a monte, o disco de 2002 (ver texto a seguir: «O mundo é delas»). Num fim de tarde quente em Lisboa, o tema dessa entrevista foi desvelando os territórios de Amélia, quando o disco percorria já os palcos, e que é por onde começou a conversa (que soa muito atual).

 

Os palcos. Tudo seria mais simples se tivéssemos salas de concertos de produção regular, com equipamentos adequados e espaços de riqueza acústica que ajudassem. Hoje tudo se passa ao ar livre e há um determinado tipo de música que fica sem lugar e sem espaço, fica fragilizada. 

Depois pede-se por parte do público uma certa adrenalina. Vai-se para esses concertos para descarregar, para namorar, as pessoas pedem um determinado tipo de reacções — não é para estar a escutar. Por alguma razão, os cinemas não são projetados numa sala às escuras só para ser projetados. Pede-se uma concentração para o que está a ser exibido. Com a música é a mesma coisa. Há música que é feita a pensar na rua e há outra que é feita pensar noutros espaços. 

 

As cumplicidades. [As colaborações com José Mário Branco, Gaiteiros de Lisboa, Camerata Meiga, e outros] Surgem por acaso. O que sinto é que quando os interesses são comuns, as pessoas também acabam por se encontrar. As coisas têm acontecido muito por encontros que, surpreendentemente, parecem muito por acaso. 

Mas também gosto muito de fazer trabalhos com outras pessoas. E mesmo quando não são trabalhos assumidamente com outras pessoas, gosto muito de mediar junto do público coisas de que gosto. Quando gosto de um autor quero que as pessoas, através do meu trabalho, o conheçam melhor. 

 

Laurie Anderson. É para mim um referente. O que faz com a língua inglesa — e que é importante em aprendizagem que faz com ela — é até onde a gente pode ir naquilo que é a fronteira entre o canto e a fala e naquilo que é a criação de um clima linguístico a partir das tecnologias e a partir dos ambientes que cria, para cantar/contar. Para quem se dispõe a ouvir, com essa atitude de aprender, o que é o canto, as fronteiras de uma coisa e outra, o que é a literatura ligada à música aprende imenso com ela. 

Havia indícios já no Todos os dias (1994) e no Taco a Taco (1998) dessa minha devoção grata à Laurie Anderson. As coisas não estão assim tão afastadas como isso. As pessoas vão perceber que temos um mundo todo em gavetas — e não estou só a falar da música, estou a falar dos conhecimentos, das profissões. As artes dão um sinal muito positivo de que há pelo menos vontade de se encontrarem e de se perceberem que irmandades são estas.

 

As vozes do mundo. [Os textos de José Eduardo Agualusa, Mário Cesariny, José Saramago, os sons de Rui Júnior, Pirin Folk Ensemble] As coisas não nascem por acaso. Nem os projetos não são todos definidos na cabeça e depois passam para a prática, para o terreno. Faço discos como talvez se façam livros. Há uma necessidade diária de informação, de entrar em contacto com coisas que já se conhecem, mas se querem conhecer melhor, com coisas novas... 

Não há criatividade sem informação. A criatividade é juntar coisas que aparentemente ainda não se encontraram. A criatividade é sempre uma homenagem às leis da atracção universal. Nós lidamos com coisas que são anteriores ao próprio homem. 

Depois há um esforço de compor — que não tem nada a ver com discos. É completamente por acaso: leio um poema que gosto e passados cinco minutos estou agarrada a um piano, a uma viola ou a um adufe a tentar perceber o que é aquilo me diz em termos musicais. 

Outra coisa completamente diferente é o disco. Aí há uma ideia de base: por um lado, fazer um disco de homenagens (e no fundo é o que é este a monte) é um disco de homenagens, mas também ao mesmo tempo de descobertas, ir mais fundo no contacto com estas vozes todas. Por outro lado, procurar caminhos, onde os encontros sejam mais irreais, onde as pessoas estejam mais disponíveis. O a monte tem a ver com isso. O disco pode dar uma ideia de uma segunda versão de "Santo António aos peixes" — "a monte", vou cantar para os passarinhos! Não é nada disso. 

Há percursos que são facilitados porque há vozes que nos chamam, que de algum modo nos dão apoio nesses caminhos, que são um contraponto aos caminhos já conhecidos - todo um saber que dá nomes a tudo, classifica os géneros musicais todos direitinhos, em várias categorias. 

 

Música tradicional. Esse tem sido um dos grandes problemas: querem pôr-me um chavão qualquer que está dentro de uma gaveta e depois eu não caibo. Depois dizem: "Não gosto do trabalho porque não faz música tradicional!” Mas quem é que disse que eu queria fazer música tradicional?! 

Todo o ser humano necessita de modelos, sejam musicais, ideológicos ou de educação. Mas, ao mesmo tempo, necessita de os transgredir. 

 

Mestiçagem cultural. O [José Eduardo] Agualusa é imprescindível. Temos uma noção de cultura muito rígida, muito ligada ao modelo que pretende dar uma alma portuguesa muito pura, quando a nossa maior riqueza é a mestiçagem. E o rasto dos encontros e olhares que o português foi tendo do mundo e vice-versa. Este a monte abrange estas coisas todas. 

 

As ideologias. Andámos até há bem pouco tempo há procura da ideologia. Mas não me parece que haja uma ideologia que seja capaz de absorver aquilo que são as várias "nuances" das visões do mundo. Não há uma única maneira de abordar o mundo. Os olhares devem ser de descoberta e de confronto — de um confronto saudável. 

Há, em termos ideológicos, vários pontos de partida. Agora, vamos encontrar ideologias de confronto, mais flexíveis, que não sejam cartilhas, que todos têm de seguir. 

Nós fazemos aquilo que somos. O lado mais interessante é esse, é pôr uma marca pessoal nas coisas. 

 

A edição do disco, quase de "autor". Há processos de produção que sinto que não podem ser todos massificados, os projetos têm de encontrar a maneira de se personalizarem, e isto é muito difícil para uma editora. As próprias editoras estão numa situação de crise, que vem no arrasto da tentativa desesperada de apostar naquilo que vende, que permite lucros fáceis e imediatos. 

 

A monte na música portuguesa. Não há condições. Na televisão, por exemplo, nunca há condições especiais para nada: "Diga lá em três minutos o que pensa". E quando se vai a um programa — "ai, tem de fazer em playback e com os nossos cenários", que são iguais para todos os programas. Há a ideia que tudo é facto, que tudo se consome só porque se ouviu. 

Como tudo está voltado para as coisas muito rápidas, sobra a pergunta: onde é que estão as pessoas? Onde é que estão os autores? Onde é que está o espaço para encontros especiais? Parece realmente que anda tudo a monte. 

 

O mundo é delas

Sob o signo da aventura, Filipa Pais abre-nos a porta do seu mundo. Uma viagem acompanhada pela inspiração de outros dois viajantes — Corto Maltese, de Hugo Pratt, e o Principezinho, de Saint-Exupéry — que recupera os sons tradicionais (de Não se me dá que vindimem, Altinho e José embala o menino) ou veste com tonalidades serenas as palavras de Mário Cesariny (Em todas as ruas te encontro) ou Reinaldo Ferreira (Que o mundo é meu).

O som não anda longe de L’Amar (1994, Strauss), o primeiro e — até este À porta do mundo (2003) — único disco a solo de Filipa Pais, também por causa de João Paulo Esteves da Silva, como produtor, compositor, músico e letrista. Mas ainda por causa dos temas assinados pelos irmãos Salomé, companheiros de muitas outras aventuras: Janita, que faz das palavras de Hélia Correia uma entusiasmante viagem pelas "vozes do Sul" (nome de um projeto de Janita que também contou com a voz de Filipa), e Vitorino, com o excelente Meu querido Corto Maltese (um original do álbum Alentejanas e Amorosas, de 2001).

Mas as sonoridades de À porta do mundo transformam-se nas vocalizações mais maduras e seguras de Filipa, que se solta ao longo dos 14 temas e é sublinhada pela produção musical de Ricardo Dias e João Paulo Esteves da Silva.

A edição do disco pela Vachier Associados é cuidada e bonita, pontuada com desenhos inspirados nos originais de Pratt e Saint-Exupéry.

 

Vozes a monte

Com este disco, a Vachier renova uma marca já presente na edição, também ela cuidada e bonita, do álbum de Amélia Muge, a monte, no ano passado. Amélia Muge inaugurou as edições discográficas daquele selo. E depois de Filipa Pais, anunciam-se para breve os Quadrilha. E aos escaparates chegou agora (2003) o novo de Ricardo Rocha, Voluptuária.

Amélia rompeu o silêncio com a monte (2002), depois de Múgica (1992), Todos Os Dias (1994) e Taco a Taco (1998, distinguido com o Prémio José Afonso, em 1999). Atrás das vozes anda então Amélia, que arrisca cruzá-las «sem preocupações de defender este ou aquele género musical, sem preocupações de perceber onde acaba o artístico e começa o tecnológico, sem preocupações de sinalizar heranças culturais ou de carimbar o que é popular ou não é» (ver entrevista acima). 

É verdade: a monte é tudo menos conformista e arrisca sons e palavras que Amélia Muge aprendeu a amar. E que felizmente partilha connosco. Basta ouvir A garra do macaco, que é como quem diz Laurie Anderson vertida (literalmente traduzida) para português. Ou todas as outras vozes que se desvelam neste a monte, como as vozes búlgaras — aquelas que o mundo descobriu nos finais da década de 80 que falavam com Deus — do Pirin Folk Ensemble.

Há poucos discos assim no mercado português. E este foi um dos mais importantes de 2002. Prova disso é a recente nomeação do disco para o Prémio José Afonso (em 2003*). Agora anda a monte pelos palcos portugueses.


[* — O vencedor de 2003 foi Nove Fados E Uma Canção De Amor, de Carlos do Carmo; curiosamente, À porta do mundo, de Filipa Pais, foi o galardoado de 2004; estes artigos foram originalmente publicados no Culto!, em 23 e 24 de julho de 2003, recuperados a partir do Arquivo.pt]

Junho 10, 2022

António, um rapaz de Lisboa. Guia para uma peregrinação popular

Miguel Marujo

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A igreja onde vão celebrar de propósito ou a capela a que ninguém liga, um painel numa estação ou uma escultura num hospital: a capital guarda locais improváveis de memória do rapaz de Lisboa. A reportagem é de 2019, antes da pandemia, e foi republicada no DN tal e qual em 2020, quando a covid parecia dar uma trégua, mas a vida ainda estava longe de retomar o seu ritmo. Depois de dois anos muito atípicos, praticamente sem santos, este texto podia ter sido quase todo escrito agora.


Faltam minutos para as nove da manhã e já o ritmo vai acelerado naquele pedaço de Lisboa, um dos recantos da cidade tomado de assalto por turistas de todo o mundo, que chegam em autocarros, tuk-tuks, táxis e algumas bicicletas e mais uma trotineta, por entre quem anda na vidinha do costume. É o retrato da Lisboa que todos querem ver – e há uns quantos que ali vão de propósito. Querem ir, querem entrar na “casa do santo”.

Estamos junto à Sé Patriarcal, o tal recanto antigo da capital, na Igreja de Santo António, em Lisboa, o primeiro ponto de paragem obrigatória de um roteiro de António por Lisboa, e há um intenso formigueiro de gente que sobe as escadas do templo. Ouve-se italiano, sussurra-se francês, há um casal americano e outros alemães.

No altar-mor há uma mulher que cuida da limpeza, um balde de água verde e a vassoura, e num dos altares laterais é um homem que trata de pequenos arranjos, empoleirado num escadote. “Ai, a ferrugem”, ouve-se a meia voz, mas não há quem lhe preste atenção. Ou à mulher lá em cima.

É aqui que vêm muitos devotos do franciscano, que terá nascido neste local em 1195, no dia 15 de agosto – as contradições sobre o seu nascimento são muitas e apesar de comummente ser esta a data apontada, há quem defenda que Fernando de Bulhões, assim se chamava, nasceu em 1191 ou mesmo em 1188, na Rua das Pedras Negras, que hoje tem o nome de Santo António da Sé. Na igreja, que é propriedade da Câmara Municipal de Lisboa, a informação é assertiva: “Aqui nasceu Santo António” – e as setas indicam-nos o caminho para a cripta em dez línguas. À cripta, há quem chegue bem cedo, logo pela hora da abertura, para rezar, “conversar com o santo”, conta Pedro Ferreira, que zela pela igreja. “Pedem para estar uns cinco minutos.” Outros apressam-se mais, perante o pequeno altar separado dos fiéis por uma grade. Em cima, uma placa diz que “nesta Casa, segundo a tradição, nasceu e viveu António, que foi roubado pela gloriosa morada do Céu”.

Um italiano ensaia-se a ler esta frase em português. “Ah, é a sua casa”, diz para uma mulher. Benze-se apressadamente e sai. Ali vai “por devoção”, confirma Tommaso, sem muita vontade de se explicar mais, dizendo que não fala português. Outro homem também fez questão de ir ali abaixo, a 12 de maio de 1982, para rezar: “O santo padre João Paulo II por sua iniciativa e devoção visitou e orou neste lugar onde nasceu Santo António.”

Num livro de visitas da igreja, alguém do grupo deste homem alto, com mais de 60 anos, auricular nos ouvidos para escutar o guia, deixa uma prece: “Reza por todos nós e sobretudo os doentes.” Outro casal assinala a sua presença. “Angelo e Teresina estiveram aqui. Santo António protege toda a nossa família.” “Por devoção e para rezar”, explicam-se tão apressados quanto o seu outro compatriota. António de Lisboa e de Pádua, a quem invocam, “é um homem bom”.

Isto da fé é coisa que nem sempre se explica ou se confessa a um jornalista. Quando questionado, o alemão prefere repetir-se "schönschön", às perguntas do porquê de estar ali. É bonito, para ele, e nada mais se consegue perceber. Italianos, polacos, brasileiros, são os que mais peregrinam ali. “Há um encanto” para com este templo, defende o funcionário da igreja. “Pedem para celebrar ou concelebrar”, conta Pedro Ferreira, que acrescenta que há missais em “muitas línguas” que permitem essas celebrações. “Os libaneses gostam muito de vir celebrar” na Igreja de Santo António. Há celebrações de rito caldeu ou maronita, do Oriente, e também os patriarcas de Constantinopla e da Síria fizeram “questão de vir aqui”.

O Museu de Lisboa – Santo António, reaberto em 2014, paredes-meias com a igreja, coleciona peças sobre o homem que nasceu Fernando. A peregrinação aqui é artística, numa viagem que passa pela relação entre o jovem e a cidade onde viveu até aos 20 anos, com peças de coleções públicas e privadas e diferentes museus nacionais.

A tradição popular tomou António como um santo de especial devoção. E o roteiro que aqui se propõe tropeça numa exposição temporária – disponível até 30 de junho [de 2019], junto ao museu – de uma procissão de Santo António, 300 peças dos irmãos Baraça, representantes da típica cerâmica de Barcelos, que fotografaram uma das procissões (que acontece todos os 13 de junho e a ela se juntam os santos das igrejas por onde passa). A partir das fotos, os ceramistas reproduziram todos os seus participantes, escuteiros, bombeiros, polícias, padres e populares e o andor no carro.

Do lado de fora da igreja, também há quem entregue a sua devoção junto da pequena estátua de Santo António, inaugurada “pelo Papa João Paulo II”, no dia em que o Papa foi ali rezar. Na base, junto a esta inscrição, repousa o brasão do papa polaco.

As velas estão apagadas e a estátua quase fica escondida por entre a parafernália de uma estação televisiva que ali faz um programa dedicado aos santos populares. Tudo em volta é feérico e mesmo um outro Santo António, de cerâmica, pintado de cor-de-rosa, colocado junto à entrada do museu, submerge na confusão em volta. É um ícone pop.

Pelas ruas de Alfama, sobejam gift shops souvenirs, por entre balcões e barraquinhas improvisadas que abastecem as noites dos santos, onde se inscrevem versos magoados, como os de que “Alfama não cheira a fado/ Cheira a povo, a solidão/ Cheira a silêncio magoado/ Porque querem matar a tradição”. E resiste um pequeno azulejo com a imagem clássica do santo, de criança ao colo e ar contristado. Estamos na Rua de São Miguel, multiplicam-se os templos fechados, o desta rua, mas também o de Santo Estêvão. Só num pátio escondido da Rua das Escolas Gerais, o elétrico 28 a serpentear a colina cheio de turistas ali acima, encontramos um outro painel, gasto e tosco, uma auréola no santo e outra na criança de colo, entalado entre duas janelas num prédio pintado de amarelo. E dois americanos, enormes, a fumar a vapor e a ouvir música no telemóvel a olhar para o casario, sem ligar peva.

Embrenhando-se pelo bairro, não há sinais dos tronos de Santo António, antiga memória dos peditórios que ajudaram à reconstrução do templo depois do terramoto de 1755. Esta arte efémera começava a ser armada de forma espontânea pelos moradores do bairro, em finais de maio, nos pátios e às portas das casas, e eram os tronos o primeiro sinal das festas de junho. E com eles vinham os miúdos a pedirem uma moedinha para o santo. Num café, às Escolas Gerais, ali abaixo de São Vicente de Fora, pergunta-se pelos tronos. “Ah, eram tradição, agora só há alojamentos locais”, responde-nos o homem com uma bica. Nem tudo se perdeu, agora promove-se um concurso de tronos e figuras, que começaram a ser expostos no fim de semana (e ficarão durante o tempo que apetecer aos seus autores).

Nem só de arte temporária e efémera se faz um roteiro de António por Lisboa: no Museu Nacional de Arte Antiga pode espreitar-se um Santo António pregando aos peixes, de Vieira Lusitano, do século XVIII, um São Francisco e Santo António, uma pintura a óleo do mestre da Lourinhã, do primeiro quartel do século XVI, e o Livro de Horas de D. Manuel, também do século XVI. Mais à mão, para viajantes apressados, na Estação do Rossio, há um painel de azulejos com Santo António junto à Sé, de Lima de Freitas, deslocado no tempo, com um elétrico e namorados e candeeiros.

Regressa-se a Alfama, seguindo por Santa Clara e chegando à colina que sobe para Sapadores, Santa Apolónia dos comboios ali abaixo. Vamos a caminho da Capela do Vale de Santo António, na rua com o mesmo nome. Estamos numa zona que é uma amálgama arquitetónica e, encravada no casario incaracterístico, a capela branca, de linhas simples e uma curta torre sineira.

Também conhecida por Ermida de Santo António do Vale e Nossa Senhora da Assunção, esta capela foi edificada em 1780 (e há uma pequena placa que assinala o “II Centenário da edificação”). O santo casamenteiro está embutido num pequeno nicho, por cima do n.º 84, numa porta lateral da capela. Mais acima, na fachada principal, um vitral revela António.

Foi aqui que, diz a tradição, o franciscano descansou quando se dirigia ao rio Tejo, vindo do Convento de São Vicente, para embarcar em direção às costas do Norte de África. Agora não há quem pare, as portas estão fechadas. Há uma ranhura onde se lê “pão de Santo António”, para esmolas, que remete para a tradição antoniana de colocar nas igrejas uma caixa para o “pão dos pobres”.

No antigo Convento dos Capuchos instala-se hoje o Hospital de Santo António dos Capuchos, onde no pátio de entrada está uma referência escultórica ao monge. O nome do estabelecimento, ao Campo de Santana, vem do século XVI quando ali se ergueu um convento com o nome do doutor da Igreja, que foi entregue aos padres recoletos da Custódia de Santo António. É o Patriarcado Latino de Jerusalém que nos conta que o homem de Lisboa e Pádua “é venerado de forma especial pela comunidade dos franciscanos da Terra Santa”.

Este roteiro da Lisboa de António termina já longe do centro, em plena Praça de Alvalade, onde uma enorme estátua do escultor António Duarte ali foi erigida e inaugurada em outubro de 1972. De cada um dos lados, faz-se o percurso de António, “padroeiro de Portugal 1195-1231”, que viveu em “Lisboa 1195-1213”, esteve a estudar em “Coimbra 1213-1221” e, por fim, morreu em “Pádua 1231”. Por entre carros apressados, e sem passadeira para a placa central, há quem ali vá venerar o santo: lá estão vasos de flores e, estamos em junho, um grande manjerico.

[artigo originalmente publicado no Diário de Notícias em 11 de junho de 2019, republicado em 2020]

Junho 03, 2022

a voz que fala com os deuses

Miguel Marujo

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É impossível sair do Coliseu dos Recreios, como saí esta noite, sem que a voz, aquela voz, continue a ecoar na cabeça, uma memória encantatória que nos percorre e permanece — Lisa Gerrard é a alma dos Dead Can Dance (e o público manifestou-o vezes sem fim), o corpo e os sentidos do cerebral Brendan Perry.

Esta voz, aquela voz, fala com os deuses, ou o que se queira chamar a alguém cujo nome não se diz, e na amálgama de sensações os corpos respondem hipnotizados ao chamamento: seja num menear que se insinua, como se ouve logo a abrir em Yulunga (Spirit Dance), seja na convocação de uma oração, como em Bylar — ou também, no momento em que Lisa fica sozinha em palco, imperturbável atrás do microfone, a cantar (e este verbo confunde-se com encantar) Persian Love Song (The Silver Gun). 

No jogo entre a antiguidade e a modernidade, que sempre marcou a sua música, Brendan e Lisa — acompanhados de um quinteto (de múltiplas percussões, várias guitarras, teclas e coros) tão cativante como competente — tecem uma sonoridade dionisíaca, sensual, arrebatadora, contemplativa, com os ritmos a sucederem-se por entre hipnóticas percussões, inesperados sons resgatados da Natureza, numa tensão permanente que ora remete para danças libertinas (e Dance of the Bacchantes foi uma festa em palco), ora nos embala em sonhos de serafins (e The Host of Seraphim foi o remate sublime, antes do encore previsto).

Com o álbum mais recente, Dionysus, publicado já em 2018 (e que deu o mote à anterior passagem dos Dead Can Dance por Lisboa, em maio de 2019), esta digressão europeia, que terminou esta quinta-feira à noite, dia 2, em Lisboa, foi sobretudo uma fantástica viagem pela obra do grupo de origem australiana — Into the Labyrinth, com quatro temas, e Anastasis, com três, são os discos que mais canções forneceram ao espetáculo, o que retrata bem como este concerto foi beber a todos os discos dos Dead Can Dance para compor as 18 canções que se ouviram em palco. 

No Coliseu, o público respondeu à celebração da música como pedem as canções de Brendan e Lisa: com júbilo, que é assim que se recebem os deuses na terra. Ámen.


[foto da conta oficial de Instagram dos Dead Can Dance, do concerto da véspera, 1 de junho, também em Lisboa]