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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Abril 13, 2022

Há algoritmos que não perco por nada

Miguel Marujo

TinyVipers2.jpeg

 

Há algoritmos que contaminam os nossos dias com prazer, já escrevi em tempos. E estes dias com mais tempo permitem-me deixar o algoritmo ir navegando por ele, alinhavando canções e vozes que aqui e ali me surpreendem. Falta tempo é para parar em cada uma das propostas e ir ouvir tudo o mais que ali mora — e o Spotify, no caso, multiplica-se por mil, desvelando um oceano de música que nunca estaria ao nosso alcance de outro modo (sim, não ignoro como pagam mal aos autores que lhes valem todo o tráfego do mundo, mas esta montra já me levou a vários sites de artistas e a lojas para comprar aquele disco em que tropecei).

Estes dias têm-se feito sobretudo no feminino, a partir de uma canção que me era proposta nas “descobertas da semana” — e não há classificação mais enganadora, porque não se trata necessariamente de música recente: por exemplo, a tal canção de que falo é de um álbum de 2020, e depois apanhei-me viciado numa outra cantora, Tiny Vipers, cujos discos disponíveis vêm de 2007 e 2010 (mas já fui à sua conta no Bandcamp, na qual ouvi as coisas mais recentes e mais antigas…). 

 

Dizia: a partir de Monk’s Robes, de Deradoorian, do álbum Find The Sun, vi-me a navegar num mar muitas vezes enganadoramente calmo. Volto a Tiny Vipers (na foto), ou melhor, Jesy Fortino, por exemplo, e descubro na sua biografia disponibilizada no Spotify que colaborou com Grouper (um projeto de Liz Harris), outra favorita recente. Daí já ouvi em loop nomes atrás de nomes, alguns já bem familiares — como Marissa Nadler ou Brendan Perry —, a maioria completas novidades, sem que alguma vez me tenha visto a carregar para a canção seguinte, e várias vezes tenha ido espreitar quem canta, e ouvir discos inteiros. Falta-me vida e tempo para isto. Talvez alguém queira financiar este meu trabalho de prospeção. 

 

Tomem nota, numa amostra breve e apressada: Deradoorian, Tiny Vipers, Emily Jane White, Heather Woods Broderick, Yowler, Gyða Valtýsdóttir, Hilary Woods, Gareth Dickson, Sarah Davachi (e a lista vai crescer certamente). Há algoritmos que não perco por nada. Não têm de quê.

Abril 12, 2022

Jorge Sampaio não se arrepende de nada. Santana fica sem resposta

Miguel Marujo

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Chegou-me esta foto de uma página de um livro muito recente, Os Presidentes, a Política e os Media  — Uma história do 25 de Abril, de Francisco Rui Cádima (ed. Dom Quixote, 2022), no qual se cita um artigo meu no DN, em março de 2017, e resolvi recuperar o texto aí mencionado. A peça é uma notícia, mas com Sampaio nunca saía uma mera notícia. O último parágrafo do artigo é disso exemplo — e, assim, também se ajuda a fazer história.

 

Já estava à espera da pergunta, inevitável por estes dias, em que se conheceu parte do conteúdo do segundo volume da sua biografia que chega hoje às livrarias. Com o título Jorge Sampaio — Uma Biografia. Volume II — O Presidente (ed. Porto Editora), percebe-se logo a pergunta de que o antigo Presidente da República já estava à espera. "Não consigo libertar-me de 2004", atirou entre risos da plateia à jornalista Anabela Mota Ribeiro, perante a questão sobre a crise que levou à dissolução da Assembleia da República e à queda do governo de Santana Lopes.

Admitindo que "houve vários erros na explicação" do que se passou, Jorge Sampaio recordou que dois anos antes já tinha escrito — no prefácio do livro que compilava as suas intervenções como Chefe do Estado, "a que ninguém prestou atenção" — que "as dissoluções podem ser momentos graves em que pode ser preciso consultar a vontade popular". "Não tive hesitação nenhuma", defendeu-se sobre 2004.

Em abono da sua tese, Sampaio recordou que "havia sinais maiores que apontavam para a vontade de uma relegitimação popular". No livro, o ex-Presidente da República disse ao autor, o jornalista José Pedro Castanheira, que estava "farto" de Santana Lopes como primeiro-ministro, que este estava a deixar o país à deriva. "O que é para mim importante hoje, independentemente do estilo, das frases, das palavras, dos desabafos", reconheceu, "é que a uma dada altura me convenci que só a dissolução podia servir" o país.

Para Sampaio, a sua decisão "foi difícil na altura", "mas foi compreendida por uma larga maioria", pelo que, passados estes anos, sente que contribuiu "para outra vez" o país regressar à estabilidade, um esforço seu que tentava desde 1996 (quando da sua eleição para Belém). E recusou qualquer combinação prévia para empossar Santana em julho de 2004 e largar a "bomba atómica" da dissolução em novembro seguinte. "Tem havido uma ideia de que é tudo uma coisa sinistra, combinada, é tudo absolutamente mentira", atirou ontem na conversa no Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa.

Por responder ficou o desafio do então primeiro-ministro para Sampaio discutir esse episódio com ele na televisão, ou as críticas que o atual provedor da Santa Casa de Lisboa tem feito ao antigo Presidente da República, de que a sua queda se deveu a um pedido de empresários e banqueiros e não do povo.

Sentado num grande cadeirão preto, no meio do palco, com a sala a meia-luz, o registo da conversa quase esquecia a parte de que trata a obra hoje lançada. Da infância em Sintra, da importância do pai e da mãe, da estada em Baltimore, nos EUA, Sampaio foi desfiando um longo livro de memórias. Foi a sua passagem por terras americanas que lhe deixou o gosto por hambúrgueres. Estávamos em 1948. "Vinha da escola, descia o parque e sentava-me na drugstore a comer um hambúrguer e um chocolate sundae, dias a fio, meses a fio", contou.

Com a crise académica de 1962, que se iniciou com a proibição de celebrar o Dia do Estudante, o pai de Jorge, o médico Arnaldo Sampaio, disse-lhe: "Queres ser político, já percebi. Mas primeiro tem uma profissão." A advocacia foi a sua enxada e a política "foi acontecendo" por uma coisa que o Cenoura (alcunha que lhe deram) deve aos seus pais: "Seriedade e dedicação ao serviço público."

Sem arrependimentos, garantiu. "Já me arrependi, já não tenho idade para mais arrependimentos", disse a dada altura. Mais à frente citou uma canção de Edith Piaf, "Non, rien de rien, non, je ne regrette rien." E completou, provocando mais risos na plateia: "Eu não regreto nada." Santana bem pode esperar.

[artigo originalmente publicado no DN, em 20 de março de 2017, ligeiramente revisto]

Abril 05, 2022

Viagens à Lua? Isso é tudo falso, dizem eles

Miguel Marujo

Viagem-à-Lua.jpegO filme de 1902, Viagem à Lua, inspirou muitos na primeira vez que o homem foi à Lua.
Contudo, cerca de 6 por cento dos americanos acreditam que é uma mentira.


Ainda há quem não acredite que "aquele pequeno passo para a humanidade" tenha sido mesmo dado. E nos EUA, o país que pôs um homem na Lua, há mesmo quem se dedique a tentar desmontar a façanha. Há teorias da conspiração para todos os gostos.

Num mundo que elegeu Donald Trump e Jair Bolsonaro, que tantas vezes põem em causa as mais óbvias e sensatas evidências científicas, não admira que, meio século depois, ainda persistam teses conspirativas de que o homem nunca chegou na Lua. É um dos feitos maiores da humanidade, mas para alguns o pequeno passo de Neil Armstrong foi um "gigantesco salto de falsidade".

Nos EUA, de onde partiu a missão, há homens que se empenham em desmontar o que dizem ser o filme mais caro de sempre, montado pela NASA, para enganar todo o mundo. Literalmente: o mundo todo.

Em 1957, a União Soviética colocou no espaço com êxito o primeiro satélite. Num tempo em que se vivia a Guerra Fria, com a ameaça do nuclear bem presente, os russos eram inimigos, e o lançamento do Sputnik 1 abriu porta aos maiores receios. É neste contexto que os EUA se lançam também na corrida espacial. Quem chegará primeiro à Lua passa a ser um desafio não só tecnológico como também político.

É neste caldo que emergem também os céticos, como Bill Kaysing. Este analista e engenheiro de Rocketdyne, a companhia que projetou os foguetes Apollo, surge num programa de televisão de 2001, transmitido pela Fox, assertivamente chamado Teoria da Conspiracão: Nós Pousámos mesmo na Lua?, convencido "de que nunca enviámos homens à Lua".

"Acho que foi uma intuição", "aquilo tudo pareceu-me falso", explicou-se no referido programa. Kaysing "ficou chocado com inconsistências", porque "não havia estrelas no céu lunar", a bandeira americana tremulou, "sabendo que não existe ar na Lua", e "não havia nenhuma cratera debaixo do módulo, que deveria ser provocada pelo forte motor" no momento em que a nave pousou.

Bart Sibrel é outro profeta das mirabolantes teses que garante, com os pés bem assentes na Terra, que o homem não chegou à Lua. Diz que faz "jornalismo de investigação", tem um site no qual pede ao visitante que "apoie a verdade" e dedica-se a apregoar o engodo que terá sido a viagem ao satélite.

Os ingredientes estão todos servidos: num filme de série B, escrito pelos piores argumentistas de Hollywood, Kaysing e Sibrel alinham meia dúzia de dúvidas retóricas com base em "suponhamos", sem qualquer rigor científico. E está lançada a teoria de conspiração.

Como foi então montada a farsa? "O lançamento do foguete Saturno 5 com a Apollo foi real", diz Kaysing no documentário. Mas não levou astronautas para a Lua. Eles ficaram oito dias em órbita "e ao oitavo dia a cápsula separou-se e voltou à Terra".

Os EUA têm o local ideal para alimentar a mais tosca imaginação: a Área 51, uma base supersecreta na extensa região desértica do Nevada, onde tudo pode acontecer.

Para ajudar, os EUA têm o local ideal para alimentar a mais tosca imaginação: a Área 51, uma base supersecreta na extensa região desértica do Nevada, onde tudo pode acontecer. Para os autores do programa, foi nesta zona restrita — com uma superfície quase lunar — que se filmaram os passos dos astronautas que pisaram a Lua e as pegadas de Armstrong. E foi onde cravaram a bandeira dos EUA, a tal que esvoaçou. "Significa que existia vento na Área 51 quando filmaram", descrevem os descrentes. Ou os "crentes em falsidades", como lhes chamam cientistas e astronautas que responderam com minúcia ao programa de TV de 2001.

Nada foi deixado ao acaso nesta "teoria da conspiração": Mitch Pileggi, que conhecemos como o diretor do FBI, Walter Skinner, em Ficheiros Secretos, é o narrador deste documentário. E todos nos lembramos do lema desta série de ficção: "Não confie em ninguém."

"Teorias grotescas"

Tudo é dito e mostrado para instalar a dúvida no mais empedernido fiel da chegada à Lua, decompondo em 50 minutos aquilo que um porta-voz da NASA, Brian Welch, classifica de "teorias grotescas". Às teorias juntam-se dados falsos: "20% dos americanos acreditam que nunca se foi à Lua", diz o narrador. Serão 6%, nas sondagens feitas. E juntam-se vozes supostamente credíveis para dar gás a teses que não têm (elas sim) qualquer evidência. Brian O'Leary é um ex-astronauta e cientista consultor das missões Apollo. Diz ele no programa que "não pode garantir que estes homens tenham andado na Lua".

E ao bom estilo americano não faltam mortes. O astronauta Gus Grissom, da missão Apollo 1, morreu num acidente da nave. A família acredita que não foi acidente porque ele terá dito que alguém iria morrer. "Foram silenciados porque sabiam demasiado?", pergunta o narrador.

Também Thomas Ronald Baron, inspetor de segurança da Apollo 1, testemunhou no Congresso que o programa tinha tantos problemas que os americanos nunca chegariam à Lua. Uma semana depois, Baron morre num acidente quando o carro é colhido por um comboio. "Foi assassinado", sentencia Kaysing. "Entre 1964 e 1967, dez astronautas morreram em acidentes estranhos", diz-nos o narrador. Nunca lhes ocorreu que o treino e as viagens espaciais não eram propriamente um passeio no parque.

O porta-voz da NASA responde com números: o programa Apollo envolveu diretamente 250 mil pessoas e indiretamente outras 500 mil. Era muita gente. Mas os profetas da conspiração não deixam que a verdade lhes estrague uma boa história, como afirma Sibrel: "Era tudo dividido, não sabiam deste engodo." E só acreditarão como São Tomé: "Se a NASA pousou mesmo na Lua, os restos das seis missões estão lá." Trump, o homem que gosta de teorias da conspiração, já pediu à NASA para voltar à Lua.

 

[texto originalmente publicado na revista 1864 do DN, em 13 de julho de 2019 e replicado no site do jornal a 15 de julho de 2019]

Abril 03, 2022

"Revolução de Outubro foi o maior acontecimento libertador da história da humanidade"

Miguel Marujo

Albano Nunes © Leonardo Negrão:Global Imagens.jp

 

O PCP celebrou o centenário da revolução de Outubro (que teve lugar a 8 de novembro, no nosso calendário), em 2017. Numa conversa com o DN, o militante comunista Albano Nunes, durante anos responsável da secção internacional do partido, falou sobre a importância destes 100 anos, não fugindo ao que chamou de "erros" e "deformações", mas também exaltando as conquistas da revolução e do que foi a União Soviética — uma primeira tentativa para chegar ao comunismo.

 

Há 100 anos [em 1917] começou de facto "uma nova era para a humanidade"?

Estamos profundamente convencidos que sim, que começou uma nova era, que nós consideramos ser a época da passagem do capitalismo para o socialismo.

E essa "nova era" como é que se traduziu? Como é que traduziria para as gerações mais novas aquilo que há 100 anos aconteceu?

O que aconteceu há 100 anos foi que na primeira vez na história da humanidade se deu uma revolução, não apenas política mas social profunda em que, ao contrário de revoluções anteriores, incluindo revoluções profundas como a Revolução Francesa de 1879, pela primeira vez uma classe exploradora não é substituída por outra classe exploradora. Pela primeira vez foram os trabalhadores que acederam ao poder com um objetivo que concretizaram de criar uma nova sociedade sem exploradores nem explorados. Foi a primeira vez na história que isto aconteceu.

E acha que essa sociedade foi criada?

É uma pergunta que coloca questões de fundo. A primeira é o tempo histórico que diz-nos que o capitalismo, para chegar onde chegou, precisou de vários séculos e o socialismo iniciou-se apenas há 100 anos numa primeira tentativa que teve êxito em aspetos fundamentais, mas que acabou por fracassar na viragem dos anos 1980 para os anos 90, na União Soviética e noutros países de leste da Europa. A nosso ver não põe em causa nem que tenham sido realizadas profundas transformações, nem o significado histórico universal da revolução de Outubro.

Lenine sempre considerou que a edificação de uma nova sociedade completamente livre da exploração do homem pelo homem e da opressão de uma classe por outra classe exigiria várias tentativas. O que aconteceu ao longo destes anos é que os sucessos em determinados aspetos foram tão grandes, nomeadamente na sequência da II Guerra Mundial, que no movimento comunista e no nosso próprio partido se criou a ideia de que a evolução para o socialismo seria mais fácil, mais rápida do que aquela que efetivamente se veio a verificar. O facto de ter soçobrado a primeira tentativa não põe a nosso ver em causa a dimensão histórica desta primeira revolução, desta primeira conquista do poder pelos trabalhadores.

Que êxitos se verificaram?

Em tudo quanto se tem escrito e dito na comunicação social, sobre a revolução de Outubro e sobre o empreendimento socialista a que deu lugar a União Soviética, omitem-se realizações e conquistas. Esta revolução deu-se num país que era uma ditadura, a mais reacionária da Europa, que era considerada a prisão dos povos, na medida em que era um império que oprimia um conjunto grande de nacionalidades, algumas das quais nem alfabeto tinham e esta revolução o que conseguiu fazer, para além da liberdade, das questões fundamentais, foi resolver os problemas essenciais do desemprego, analfabetismo, num tempo histórico particularmente curto, foi dotar a sociedade soviética de direitos, regalias sociais de nova geração, as oito horas [de trabalho], a segurança social; foi resolver o problema nacional numa escala extraordinariamente profunda; foi transformar um país atrasado numa grande potência industrial dotada de conquistas na ciência e na técnica de primeiro plano que são reconhecidas, como a primeira central atómica para fins pacíficos e o primeiro homem no espaço.

A União Soviética conseguiu êxitos extraordinários. Há um, para terminar, que deve ser sublinhado, foi ter conseguido defender o poder digamos de uma hostilidade imensa desde o primeiro momento em que se realizou a revolução. Churchill dizia que era necessário matar o menino comunista no berço. Houve uma invasão de 14 potências, houve uma guerra civil tremenda e destruidora mas, no meio de isto tudo, a União Soviética conseguiu êxitos extraordinários e deu uma contribuição decisiva para libertar a humanidade do flagelo do nazismo-fascismo. Uma guerra que só foi possível ser vencida porque efetivamente houve uma grande identificação do povo soviético, em tempos extremamente difíceis, com o seu governo e o seu partido dirigente.

Nestes 100 anos podemos falar em mais avanços do que recuos?

Eu só vejo avanços. E vejo caminhos que levaram a recuos, em certa medida insucessos, na sequência de um braço de ferro terrível que foi a guerra fria. Com a corrida aos armamentos, obrigando a União Soviética a despesas colossais, que foram desviadas do seu desenvolvimento, enquanto o capitalismo precisa da guerra para se desenvolver, para alimentar o seu complexo militar e industrial como está a acontecer agora de uma maneira terrível. Acontece que neste contexto a União Soviética acabou por perder este braço de ferro da guerra fria, cometendo atrasos, cometendo erros, havendo deformações estranhas ao ideal comunista. Globalmente nós consideramos e pomos o acento nas potencialidades e nas realizações do socialismo neste período.

Entre esses erros, entre essas deformações, imagino que o PCP também reconheça os desvios autoritários do regime soviético e os muitos mortos que pereceram sob a ação do regime?

A primeira coisa que queria dizer é que isto tem que ser visto no contexto de uma terrível e agudíssima luta de classes. O novo não nasce sem grandes lutas e grandes conflitos: pensemos no que aconteceu aos escravos da velha Roma quando tentaram revoltar-se, foram milhares os crucificados na Via Ápia; lembremos o que aconteceu com a Comuna de Paris, que acabou num dos mais terríveis banhos de sangue; em relação à União Soviética, a hostilidade foi permanente desde o primeiro momento. Este contexto tem de ser levado em consideração.

Acha que o "inimigo externo" justificou esse autoritarismo interno?

Não, o que digo é que o desenvolvimento de fenómenos negativos na União Soviética e noutros países socialistas, o desenvolvimento de fenómenos de desnascença, certos erros muito graves, o afrontamento mesmo da própria legalidade do partido e da própria legalidade socialista, e mesmo crimes que existiram, têm que ser vistos neste contexto, não para os justificar mas para os compreender.

Há muito isto de escrever a história da revolução de Outubro e da União Soviética como uma sucessão de erros de faltas, de fracassos e de crimes. Existiram sem dúvida, nós não discutimos, não nos pomos a discutir se foram dois milhões [de mortos] se foram dez, se foram 20. Não nos pomos a discutir no detalhe o que aconteceu efetivamente: o que foram na Sibéria prisões efetivas de delito comum, o que foram campos de trabalho e o que foram prisões onde sofreram inclusivamente comunistas dedicados. Nós não entramos na discussão desses números, isso é para os nosso adversários.

Não é importante para a História?

Sem dúvida que é importante para a História mas a História tem que ser escrita em todos os seus aspetos. Estaline — a quem são atribuídos com razão erros, elementos de culto da personalidade e abusos em relação ao poder, infrações à legalidade socialista — não tem só aspetos negativos, tem aspetos positivos: leia-se o que disseram os dirigentes, mesmo dos países capitalistas da altura.

Nós reconhecemos este problema, nós não nos alegramos com isso e reconhecemos particularmente na viragem dos anos 1980 quando fizemos o nosso XIII congresso extraordinário [em maio de 1990] e depois no XIV e no XVIII reconhecemos que efetivamente houve no desenvolvimento da União Soviética o afastamento dos ideais e dos valores do socialismo em aspetos fundamentais, no plano político, económico, ideológico, no próprio funcionamento do Estado. Houve um afastamento das massas populares que pôs em causa todo o processo porque foi essa profunda ligação às massas populares, à classe operária, que permitiu justamente a Lenine e ao partido bolchevique dirigir em condições extremamente difíceis todo o processo revolucionário da velha Rússia e esse é o alfa e ómega da política dos comunistas.

Hoje o mundo parece muito pouco disponível para celebrar a revolução 100 anos depois?

A maneira como a revolução de Outubro está a ser predominantemente retratada... Eu queria abrir um parêntesis para dizer que, mesmo no nosso país, neste centenário, tem havido muitas iniciativas não só do nosso partido, de outras estruturas, da associação Iúri Gagárin, debates em escolas, exposições, etc.

A posição dominante é uma posição de crítica, de hostilidade e de ódio à revolução de Outubro, do que ela efetivamente significou e isso resulta de quê? Resulta de uma situação original que foi como disse, desde o berço da revolução, é o facto de a Rússia ter sido derrotada e a história está a ser escrita em larga medida pela classe dominante, à medida do interesse da classe dominante. Portanto que naturalmente quer apagar da consciência dos trabalhadores a importância desta data histórica para dificultar a sua organização e a sua luta por uma sociedade nova, particularmente derrubando o capitalismo e construindo uma sociedade socialista. O objetivo é esse. Nós lutaremos incansavelmente, com todas as nossas forças para que isso aconteça.

Pode ser-se comunista assumindo os erros do comunismo.

Mas nós assumimos! Houve atrasos, erros, deformações, aspetos em que se entrou mesmo em contradição com características fundamentais de uma sociedade socialista, reconhecemos tudo isso. Reconhecemos que nesta primeira tentativa de edificação desta nova sociedade isto se verificou mas temos de reconhecer toda a outra realidade, que é caracterizada essencialmente por realizações, por êxitos, por conquistas. A União Soviética, e não falo apenas da vitória na II Guerra Mundial, teve um papel determinante em toda a evolução do século XX, não é possível desconhecer isso. Mesmo em relação ao nosso próprio partido que para além da sua criação estar ligada também à revolução de Outubro, é uma criação da classe operária portuguesa à nossa revolução de Abril. 

A nossa revolução de Abril é fruto da luta do nosso povo. Os comunistas têm uma parte que toda gente reconhece como decisiva, é resultado da crise que se criou no próprio regime, é resultado da guerra colonial e da aliança do povo português com os povos coloniais irmãos. Sem essa guerra e sem essa aliança certamente tinha sido mais difícil derrubar o fascismo, mas no enquadramento internacional da nossa revolução é um elemento fundamental explicar o isolamento internacional do fascismo e as razões porque o imperialismo norte-americano e a NATO não tiveram nenhumas condições para intervir em Portugal, para abafar e liquidar na raiz a revolução portuguesa. Intervieram de mil e uma maneiras através da Europa. 

O verão quente é um momento particular mas não tiveram condições para desembarcar forças e liquidar a revolução portuguesa. Porquê? Porque a União Soviética praticava uma linha de paz, de desanuviamento, de coexistência pacífica e nessa altura, é bom recordar, vivia-se o clima da Ata Final de Helsínquia, conferência que teve lugar em 1975, na qual participou o marechal Costa Gomes que dificultava a ação do próprio imperialismo. Nós nunca esqueceremos isto, como nunca esqueceremos a solidariedade da União Soviética e do Partido Comunista da União Soviética com os antifascistas portugueses, connosco em particular, acolhendo doentes, filhos de funcionários do partido, propiciando descanso e tudo aquilo que sabemos, para não falar da contribuição que deu para o reconhecimento da revolução de Abril e com a ajuda que deu nomeadamente na reforma agrária.

Quarenta anos depois, o PCP também olha para trás e fala em perdas daquilo que foram as conquistas de Abril para usar uma expressão vossa.

Sim, naturalmente. Há revoluções e há contrarrevoluções. Isto não significa que a história não avance numa determinada direção, veja-se desde o esclavagismo até hoje os avanços que se deram e esses avanços deram-se com revoluções e contrarrevoluções. Nós podemos falar na chamada primavera dos povos, nas revoluções na Europa de 1948-49, nos massacres que se verificaram por exemplo em Paris, em junho, quando a classe operária e os trabalhadores procuraram reagir às tendências negativas que se verificavam desde fevereiro e conquistar o poder. Já lhe falei dos escravos crucificados na Via Ápia, já lhe falei na Comuna de Paris, mas isso não impediu que a história avançasse e que o marxismo e as teorias de Marx, o socialismo científico, fosse construído na assimilação dessas experiências revolucionárias e contrarrevolucionárias.

Em Portugal deu-se uma revolução, não tivemos no nosso povo a força suficiente para consolidar essa revolução e uma das razões, três dessas razões — mas falemos de duas que são muito claras — não se conseguiu construir um estado digamos democrático dirigido por forças revolucionárias, o poder foi sempre repartido com a direita, sempre, e não se conseguiu libertar o nosso país da influencia do imperialismo, influência que se agravou particularmente a partir de 1985 com a entrada de Portugal na CEE [Comunidade Económica Europeia, hoje União Europeia] e mais tarde na moeda única, situação gravíssima que hoje estamos a viver e que está a impedir que o nosso país possa resolver os seus problemas económicos fundamentais.

E essa é a segunda razão? A entrada na União Europeia?

É um elemento fundamental, a entrada na União Europeia foi conseguida, não apenas como a solução para problemas económicos, numa perspetiva da direita e da social-democracia, mas como um instrumento visando influenciar e condicionar o processo de desenvolvimento da revolução portuguesa, que estava ainda numa fase de grande resistência e onde muitas das conquistas ainda não estavam destruídas. Hoje, muitas delas estão destruídas, outras estão feridas, mas nós dizemos que a revolução de Abril sendo uma revolução inacabada não foi uma revolução destruída e derrotada e que os seus valores vivem, as sua experiências e ainda as suas realizações. A liberdade, o fim das guerras coloniais e muitas outras coisas são realizações que já não voltam para trás.

E, apesar de tudo, o desenvolvimento do país.

E apesar de tudo o desenvolvimento do país, naturalmente com a reconstituição dos monopólios, com a reconstituição do latifúndio, com profundas injustiças e desigualdades sociais, mas sim, estamos numa situação que certamente não é pior do que era no tempo negro do fascismo. Mas não se ligue à participação de Portugal na União Europeia, na divisão internacional de trabalho capitalista, não se ligue aquilo que há de positivo a essa integração, pelo contrário, isso tem sido um travão.

É possível imaginar o caminho para uma sociedade socialista no atual quadro português?

Naturalmente — no português, europeu e mundial. Enquanto existir a exploração capitalista, enquanto existirem tão profundas injustiças e desigualdades sociais, tanta opressão, tanta degradação moral, tanto militarismo, tanta guerra, tanta invasão e agressão a estados e a países soberanos será necessário encontrar soluções. Os povos vão necessariamente encontrá-las.

Repare que o capitalismo vive uma crise estrutural profunda, que não há hoje ninguém mesmo na classe dirigente que esteja contente com a situação que se vive no mundo capitalista e que não esteja preocupado. Podemos falar da União Europeia e do quadro em que se encontra e não é apenas do Brexit, não é apenas do avanço da direita e da extrema-direita. Os problemas e as contradições agudizam-se e precisam de uma solução. Ela pode tardar mais ou menos, as forças comunistas e revolucionárias em geral enfraqueceram sem dúvida nos últimos anos. A vida mostra que o avanço se faz de uma maneira muito irregular com avanços, com recuos.

Enquanto existir exploração, a necessidade de acabar com a exploração e de acabar com estas taras e contradições do capitalismo é indispensável também por uma razão fundamental que é salvaguardar a vida na terra, salvaguardar a humanidade: nós estamos à beira, perante o perigo efetivo de guerras de catastróficas dimensões, nem falo sequer já da questão ambiental, estou a falar da questão militar que está em desenvolvimento de uma maneira terrivelmente acelerada com ameaças reais de uso da própria arma nuclear.

Nós temos de olhar para isto como qualquer coisa que cria grandes responsabilidades aos comunistas e a todas as forças do progresso social e amantes da paz, não tenhamos duvidas que as grandes alianças e as grandes coligações para defender a paz, para conseguir o desarmamento, para salvar a vida humana sobre a terra vão aparecer e se vão realizar, nós não desistimos, nunca desistimos.

Há aquela canção que diz que mesmo nas noites mais tristes, em tempos de escuridão, de solidão há sempre uma voz que resiste, há sempre alguém que diz não. Nós dizemos não ao capitalismo e dizemo-lo não apenas em termos de uma resistência, em termos de confiança da possibilidade de avanço reais que a classe dirigente teme e é por isso que está a reforçar as medidas de segurança e está a limitar liberdades e direitos fundamentais, incluindo na França das liberdades... É por isso que está a generalizar a coordenação das polícias, que está a erguer barreiras de todo tipo quando digamos gritavam pela liberdade de viagem, quando se tratou de derrotar os países da Europa de Leste, e é por isso que o imperialismo se está a armar até aos dentes com as decisões dos Estados Unidos, o maior orçamento militar da sua história, com o aumento de 2% assumido pela União Europeia no quadro da NATO, com as decisões do Japão a pretexto dos acontecimentos na Coreia de acabar com a sua constituição democrática e pacifista, para poder intervir militarmente fora do seu próprio território — é este o quadro que temos, não nos enganemos sobre isso.

Na Europa temos partidos comunistas que perderam a expressão relevante que tinham, como em Itália, Espanha e França. Como é que olha, como é que interpreta essa perda?

Com tristeza.

Acha que é uma incapacidade de os partidos comunistas nesses países de fazerem passar a mensagem ou foi a tentativa de refundarem a sua linguagem e a sua forma de estar? O que é que falhou?

Ao contrário da generalidade dos partidos comunistas, compreendemos que o que estava em causa na viragem dos anos 1980 era de uma gravidade tal que exigia que se efetuasse uma discussão profunda sobre as causas dessa situação, sobre as suas consequências e definir com rigor a posição do próprio partido. Nós não atirámos às malvas a nossa história, não renegámos a história do movimento comunista internacional, com os seus imensos méritos e também com as suas sombras e os seus erros. Fomos dos poucos partidos que o fizeram. Outros partidos embrulharam-se em grandes discussões, abandonaram a sua ideologia e uma posição solidária internacionalista, social-democratizaram-se. Naturalmente que há partidos com influência, há partidos que estão no governo em vários países, que governam estados inteiros na Índia, na África do Sul e outros países. Há partidos comunistas no poder, processos que têm uma grande importância, mas pensemos na China, no papel que tem na vida internacional. Podem dizer que o desenvolvimento e o papel que tem está ligado a certas medidas de carácter mais capitalista do que socialista mas a reflexão tem que ir muito mais longe. Vejam-se as afirmações e as definições ideológicas do último congresso do Partido Comunista da China, mas eu não quero antecipar análises que o meu partido ainda não fez.

É possível olhar para esses países como olha o PCP nas suas Teses, dizendo que, ao seu modo, são "resistentes" daquilo que é a "ordem dominante"?

Sim, essa é a maior convicção que temos. Podemos ter dúvidas sobre tais ou tais medidas que tomam no seu processo interno, podemos ter dúvidas e interrogações e há países então que temos discordâncias profundas. Se há coisa em que não hesitamos é do papel que efetivamente desempenham no plano internacional, um papel positivo.

De contrabalanço com aquilo que é o Ocidente.

Sim, não estará ao nível da política internacionalista da União Soviética e do campo socialista, poderá não estar, mas joga um papel positivo no quadro de uma arrumação de forças que está a impedir os Estados Unidos e os seus principais aliados de impor a ordem mundial que quiseram impor a partir da guerra do Golfo, em 1990, essa nova ordem mundial.

A partir da queda do Muro?

Sim, por essa altura porque a guerra do Golfo vem na sequência da queda do Muro, tal como [o tratado de] Maastricht [em 1992], em relação à União Europeia e o salto em frente federalista, vem na sequência da queda do Muro, é aquilo que nós chamamos a contra-ofensiva do imperialismo para reganhar as posições perdidas ao longo do século — e essa ofensiva continua em marcha, portanto nós lutamos para a combater.

O PCP entende que há algum estado que estará mais próximo daquilo que seria o regime socialista?

Não há regimes socialistas — Cuba é um país socialista. Claro que nós temos uma tese: é que o socialismo não é qualquer coisa que sai de um manual, não é um arquétipo, não há um modelo único de socialismo. O socialismo é uma fase transitória do caminho para o comunismo e que demora, pelos vistos, muito mais tempo do que pensávamos.

O socialismo é construído na base da situação concreta de cada país, de acordo com as suas tradições, da sua cultura, do peso relativo do partido, com tudo isso. A situação de Portugal não é a de Cuba, a de Cuba não é a do Vietname, a do Vietname não é a da China e o que nós vemos nestes países é o esforço para resolver os problemas dos povos respetivos. É um esforço num contexto internacional extremamente difícil. Olhemos para Cuba e pensemos no bloqueio, pensemos na base de Guantánamo, pensemos num dos seus aliados da região que é a Venezuela, que o imperialismo decidiu que tem que ser destruído para alterar a proporção de forças na América Latina e cercar ainda mais Cuba. Pensemos na China que está a ser rodeada pelo imperialismo de bases militares por todos lados e mais um e ameaçado pelo sistema antimíssil que está a ser instalado na Coreia do Sul.

Mas a Coreia do Norte preocupa...

Naturalmente que há aqui assim uma escalada que dificulta a própria compreensão do que de essencial está em jogo na Coreia do Sul, na Coreia e o que de essencial está em jogo na Coreia é o imperialismo a alimentar um foco de tensão para justificar a corrida aos armamentos, para justificar o cerco à China, para justificar o que agora se viu no Japão, que apesar de ter uma opinião pública que defende a constituição, que está contra a política reacionária do atual governo do Abe, acabou por dar uma maioria a este governo com o pretexto de que há uma ameaça terrível de um determinado país. São questões que nós temos que ter em conta, não há modelos, há tentativas, há processos.

No posfácio do livro Dez dias que abalaram o mundo, de John Reed (ed. Avante), refere-se que o PCP deseja uma sociedade socialista em Portugal que tenha em atenção as características portuguesas. Como é que isso se pode antecipar?

É a nossa política desde sempre: nós nunca tivemos outra política que não fosse a de levar em conta aquilo que damos por adquirido na ciência marxista-leninista, que damos por adquirido com a experiência da revolução de Outubro. Pensamos que esta revolução não é para lançar no caixote do lixo como dizem certos articulistas publicados, mas nem sequer é para colocar no museu da história. Nós pensamos que na revolução de Outubro há lições e ensinamentos de uma grande atualidade.

Nós temos exemplos disso, nós somos internacionalistas, não somos nacionalistas estreitos, somos patriotas internacionalistas e ao dizer isto estamos a dizer que a revolução portuguesa, levando tudo isto em consideração, tem de levar em primeiro lugar em consideração a concreta realidade sócio económica e política portuguesa e a cultura e a vontade política das massas populares em Portugal. É isso que dizemos e é isso que, a nosso ver, vai permitir que venha a ser confirmado o nosso programa atual redigido em consequência do avanço do processo contrarrevolucionário em Portugal e dos constrangimentos colocados pela União Europeia e do imperialismo em geral.

O nosso programa de uma democracia avançada nos valores de Abril no futuro de Portugal será concretizado e deste programa fazem parte direitos, liberdades, garantias fundamentais, existência de partidos políticos que não existiam na União Soviética e que não existem atualmente em Cuba porque são processos históricos particulares que se desenvolveram desta maneira, sem obedecer a esquemas rígidos que o capitalismo pretende impor a estes países: o seu sistema liberal burguês representativo que depois de representação real não tem nada como se vê com tudo que se está a passar, é outra coisa. Cada país tem a suas tradições e as suas características e o nosso programa responde do nosso ponto de vista aos interesses do povo português.

Recusa a ideia de que o comunismo morreu com a queda do Muro?

Recuso. Apetece-me sorrir. Nós temos uma tese muita clara sobre isso: o comunismo não morreu, vê-se que existe em partidos enfraquecidos sem dúvida, existe na ideologia, existe na própria necessidade de transformar esta sociedade. Uma coisa que não existe de facto é o fim da História. O socialismo foi posto no banco do réus em 1989, 90, 91, houve uma imensa campanha sobre a morte do comunismo, o declínio irreversível do PCP. Toda gente se admira ainda porque é que o PCP existe, toda gente se vai continuar a admirar porque mesmo em sítios onde há partidos fracos ou diminuídos momentaneamente existem lutas, existem potencialidades de transformação real.

Falta ainda sentar o capitalismo no banco dos réus?

Nós acreditamos no comunismo científico, temos este defeito - não morreu. O partido comunista não está condenado à derrota e ao declínio irreversível, cá está agindo, trabalhando, uns considerando que estamos a impor ao governo políticas, outros considerando que estamos a seguir na penumbra a política do governo, mas todos incomodados com este partido.

Mas falta colocar o capitalismo no banco dos réus?

Não, o capitalismo já está no banco dos réus, no banco dos réus da História, para nós está muito claro. Não vemos hoje quem defenda a situação tal qual existe, não há, leia o que ler. A apologia de [Francis] Fukuyama desapareceu.

Como é que perante um jovem o chamaria para o comunismo?

Vamos ver: eu tenho de ir a uma escola nestes dias na Marinha Grande e estou a pensar o que é que vou dizer. Creio que vou dizer muito pouco, sobretudo vou pôr os catraios a falar, perceber o que é que vai naquelas cabeças porque, sabe, nós temos uma posição muito crítica em relação ao sistema de ensino nestas matérias e então sobre a revolução de Outubro nem imagino o que seja dito nos manuais. Estou muito interessado.

Se calhar não há tempo para ensinar no ano letivo.

Não há tempo. Tenho que pensar mas estou convencido que encontrarei exemplos, argumentos, sem pintar a história do comunismo e do socialismo, da revolução de Outubro de cor de rosa, não o podemos fazer. Mas estou convencido que dizendo a verdade, mostrando as contradições que há no desenvolvimento da história do movimento social conseguirei se não encantar, convencer muita gente. A nossa experiência é essa, quando vamos a uma escola e falamos da revolução de Abril parece que se abre um horizonte novo, como quando temos ido falar da revolução de Outubro. Despertar o espírito crítico, combater a irracionalidade que se procura inculcar nas massas em geral, defender a verdade histórica, portanto é isto que eu pretendo fazer, não pretendo fazer nada mais.

Numa única palavra, como é que define a revolução de Outubro?

É impossível explicar com uma palavra só. É o maior acontecimento da história da humanidade, o maior acontecimento libertador da história da humanidade. É isto: o maior acontecimento libertador da história da humanidade — escreva isso, sem falta.

Está gravado. E ficou escrito.

 

[entrevista originalmente publicada no DN, em 5 de novembro de 2017, revista e editada; foto de Albano Nunes, defronte da sede do PCP, em Lisboa, por Leonardo Negrão/Global Media]