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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Fevereiro 27, 2022

A quarta morte da geringonça

Miguel Marujo

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Tomo de empréstimo, para título deste texto, uma expressão de Ana Sá Lopes, num post-scriptum a uma opinião sua no Público sobre a guerra na Ucrânia, para melhor interpretar o que tem sido a intervenção do PCP e seus militantes e simpatizantes no espaço público, por causa da sua posição neste conflito.

Escreveu Ana Sá Lopes: “A aliança que levou António Costa ao poder em 2015 morreu várias vezes — em 2019, quando o PCP não quis acordos escritos, no chumbo do Orçamento do Estado, com a maioria absoluta do PS nas legislativas. Estamos a viver a quarta morte: a resistência do PCP em condenar a invasão da Ucrânia é um momento incompreensível para muitos dos antigos apoiantes da solução.”

Concordando com esta leitura, suspeito que — ao contrário do que muitos à direita apontam, de que Costa estendeu a mão a quem nunca acreditou na democracia — o PCP teria tido uma posição bem mais moderada, se estivéssemos entre 2015 e 2019, nas suas críticas à NATO e EUA, e na sua contemporização com as justificações russas para a invasão.

Agora, é mais difícil aos comunistas disfarçarem claramente como estão perdidos, depois de muitos à esquerda — e muito do seu “povo” de sempre — lhes ter virado as costas nas eleições de janeiro deste ano. O povo de esquerda (sim, esse mesmo) zangou-se com o PCP e o BE por terem estendido a mão à extrema-direita e à direita, ao chumbarem todos juntos um orçamento de esquerda, atirando o país para umas eleições em que tudo lhes saiu mal: a extrema-direita e a direita neoliberal subiram muito, o PS alcançou uma maioria parlamentar e os dois partidos perderam qualquer influência no quadro da Assembleia da República. Alguém lhes ouviu um mea culpa? Não. A culpa foi da chantagem do PS, como se tivessem sido os socialistas a chumbarem o Orçamento do Estado de mão dada com a extrema-direita e a direita.

Com a bravata russa das últimas semanas, PCP e BE preferiram navegar a onda de um discurso mais antiamericano e contra a NATO (com chalaças sobre a que horas começava a guerra) do que apontar o dedo à única verdadeira ameaça desta história: Putin e a Rússia. No dia da invasão, os bloquistas corrigiram o erro, os comunistas persistiram numa mensagem que atacava mais a NATO, os EUA e a UE do que o gesto de Putin. Aliás, a condenação a Putin faz-se por palavras em defesa da paz. Um pavio curto.

Já depois do primeiro comunicado do PCP, com os russos no terreno a mostrarem ao que iam, no Twitter João Ferreira escreveu mais uma justificação do ato de guerra de Putin: “Quem quiser olhar a Ucrânia ignorando os efeitos do golpe de estado de 2014, a natureza do regime que tomou o poder e a estratégia de alargamento e de confrontação da NATO/EUA, pois que o faça. Mas só ignorância ou má fé justificam as acusações feitas a quem opta por não o fazer.” 

Respondi-lhe com uma comparação histórica: “‘Quem quiser olhar Portugal ignorando os efeitos do golpe de estado de 1974, a natureza do regime que tomou o poder e a estratégia da NATO/EUA…’ Foi mais ou menos isto que a direitalha pensou do 25 de Abril, mas felizmente não fomos invadidos.” 

O dirigente comunista resolveu criticar-me por “ler, com a lente do preconceito, aquilo que, não por acaso, não foi escrito, nem se pode seriamente deduzir do que foi escrito”. Seriamente, pode deduzir-se tudo dali, menos a condenação de Putin. E quando lhe perguntei diretamente: “Condena a invasão efetiva da Ucrânia? Condena a guerra lançada pela Rússia?”, João Ferreira respondeu com o silêncio.

A generais e propagandistas ligo pouco. A mim, para mim, o que me importa é a invasão de um Estado soberano, independente, por outro, com justificações mal paridas. Acaso o PCP acredita que Putin entrou só para punir os “bombardeadores” do Donbass?! Sabemos que não foi por isso que Putin entrou pela Ucrânia dentro. Lamento: o PCP só podia ter dito uma coisa: somos contra a invasão, condenamos Putin. Só o fez à 25ª hora, e sempre mal, com as referências à NATO e aos EUA a virem antes de Putin. 

A afirmação da futura líder parlamentar do PCP, Paula Santos, é, por exemplo, a todos os títulos lamentável — e, por isso, não, não posso aceitar que é a outra esquerda que colabora em “atear a fogueira do anti-comunismo”, como se escreveu, porque quem o fez, da forma mais lamentável, foi o PCP. Ninguém ajudou a isso, foi o PCP quem se deixou mais uma vez levar por um discurso antiamericano primário, retirado das piores cartilhas de 1989 — para desespero de quem, desde há muito, e em particular desde 2015, à esquerda, defendeu uma outra forma de fazer política, e que só pôde sentir-se muito desiludido, como foi evidente nestes dias.

[imagem do filme Raiva de Sérgio Tréfaut]

Fevereiro 26, 2022

Na guerra, a escolha é só uma: contra o agressor

Miguel Marujo

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Dizer não à guerra, não significa aceitar uma invasão ou, numa forma mais contida, encontrar uma justificação para essa invasão.

Questionar a (pertença à) NATO, como acho que se deve fazer, não significa colocar no mesmo patamar esta organização e um autocrata-agressor-invasor.

Entender que os EUA têm um comportamento demasiadas vezes questionável e criticável, como foi na guerra do Iraque (e na falácia montada das armas de destruição massiva), não nos pode levar a aceitar que uma democracia — a quem exigimos sempre mais — seja moralmente equiparada a uma autocracia e ditadura. 

Querer a paz, não é a mesma coisa que aceitar que a culpa da invasão não é do agressor. 

 

Encontrei no Twitter uma reflexão extensa (thread) de alguém que assina bonjour tristesse, e com a qual concordo em muitos pontos. É de alguém de esquerda, e que valia a pena ser lido por muitos nessa esquerda, PS, PCP, BE et all. Deixo-a para memória futura:

 

Não tenho nada de interessante a dizer sobre o conflito. De qualquer maneira ninguém quereria ler um hot take sobre geopolítica de uma conta que é 75% shitposting, autocarros e Eurovisão. Mas tenho alguma coisa a dizer sobre o PCP, até para ver se paro de falar no assunto:

Tenho nesta rede alguns mutuals que são apoiantes/militantes do PCP, que gosto sempre de ler, e que não faço ideia se me leem (liam?) ou deixarão de seguir. Para mim, ler posições de alguém da mesma área política com quem não se concorda é fundamental para informar a perspetiva.

As discussões sobre o PCP são sempre, inevitavelmente, contaminadas por anticomunismo, o que é trágico. Temos aliás assistido ao aumento deste problema com o surgimento do partido-religião libertário/neoliberal, de inspiração americana.

Votei várias vezes na CDU, duvido que o volte a fazer no futuro (veremos). Já dei, com orgulho, centenas de euros ao partido. Participei em várias ações do PCP e da CGTP. Não é exatamente uma relação próxima, mas é mais do que simpatia, é identificação.

No ano passado, a propósito do centenário, todo o país decente prestou homenagem ao partido pelo seu papel histórico. E assistimos também a um pico de anticomunismo imbecil, o que até me deu oportunidade para um longo shitpost que muito me divertiu.

E aqui chegados, em 2022, eis-nos perante a irreversível evanescência do partido (OPINIÃO™). O PCP não é nem nunca foi um partido conservador, aliás esse é um dos maiores equívocos ao discutir algumas das suas posições políticas.

E no entanto, é albergue de políticos preconceituosos e desinformados. O partido escolhe regularmente colocar-se de fora de lutas de emancipação de minorias ou de evolução de direitos humanos.

Todos os partidos de esquerda são filhos da análise marxista. Nenhum partido de esquerda, nem sequer o PS, rejeita que as contingências de modelo económico e consequente organização social são a dimensão principal de uma sociedade. E, contudo, não são as únicas.

O PCP, ao não integrar outras dimensões, alheia-se da realidade do século XXI. Não tem nada a oferecer (OPINIÃO™) em política ambiental, como aliás foi claríssimo durante as autárquicas. E depois...a política internacional 🙄.

Em fevereiro de 2022 era fácil, óbvio e obrigatório para qualquer partido decente (principalmente de esquerda) colocar-se ao lado do oprimido. Sem "mas", sem "e o contexto?". Porra, empatia. É apenas o básico de comunicação política (...).

Isto não é negar a complexidade das interações que são produtoras de história. Isso é válido para qualquer conflito seja o agressor a Rússia, Israel ou os EUA. O problema é que para o partido *tudo* é contingente em blocos como era na Guerra Fria. Isto é uma prisão argumentativa.

Por exemplo, até eu sou a favor da dissolução da NATO, mas porque sou eurofederalista e acho que a desamericanização europeia é a única forma de termos futuro. Mas isso é uma conversa para agora? Não -- ainda não.

De facto a escola de quem se politizou durante a guerra fria era a dos blocos e da escolha de lados, e esta condicionou mentalmente até hoje quem passou pelo PCP, daí a compreensão russófila que até há pouco tempo víamos em pessoas como o @danielolivalx (OPINIÃO™).

Com um mundo multipolar/pulverizado, insistir neste género de comunicação é absurdo porque não diz nada a quem nasceu sem gerra fria. A agenda da empatia devia ser óbvia. Infelizmente o pecado mortal (pun intended) do PCP é a do "inimigo do meu inimigo é meu amigo" - idiota útil.

O Brexit não foi um triunfo contra o neoliberalismo da UE (que existe e é grave). Pelo contrário, é um triunfo do conservadorismo. E no entanto, vimo-lo celebrado por comunistas. A visão de estratégias contingentes é a negação da utopia — ou seja, uma traição ao Comunismo.

Os exercícios de hermenêutica militante que os apoiantes do PCP têm feito nesta rede sobre a posição pouco clara do partido (que oferece uma falsa equivalência do agressor com outros atores) — com algumas exceções interessantes — são de uma desesperança atroz.

Pode ser que isto seja tudo equívoco meu e que o PCP na verdade tenha uma adesão popular que não imagino. Infelizmente os dados que temos não apoiam essa ideia.

Espero que após a ruína do PCP o seu eleitorado adira a quem não faz concessões estratégicas a autocracias. O @LIVREpt parece ser o único partido suficientemente descomplexado para já. Oxalá outros surjam ou evoluam. Mas o fim do PCP, por escolha própria, dói muito.

Aqui fica a análise política low-cost deste sábado. Não há bibliografia anexa. Desculpem a poluição da vossa timeline. Os tuítes sobre grafitos em paredes ou veículos com e sem motor voltam dentro de momentos." [fim.]

 
[imagem do filme Raiva, de Sérgio Tréfaut]

Fevereiro 14, 2022

As bandas sonoras imaginárias. Músicas de filmes que estão por fazer

Miguel Marujo

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Agora que Rodrigo Leão anda em digressão a mostrar o seu novo trabalho e Manuel Paulo regressa com o segundo tomo de um disco de 2004, recuperamos as nossas impressões de 2004 sobre esse disco, outro de Rodrigo, e um terceiro de A Naifa, como pretextos para uma viagem cinematográfica. Fechem-se as portas, baixem-se as persianas e poupe-se nas pipocas. Os cigarros são admitidos – embarque-se numa aventura com banda sonora imaginária.

 

Há um livro de Italo Calvino – Se numa noite de Inverno um viajante – que nos apresenta, nas suas primeiras páginas, conselhos para uma leitura concentrada: “Descontrai-te. Recolhe-te. Afasta de ti todos os outros pensamentos. (…) Arranja a posição mais cómoda: sentado, estendido, enroscado, deitado. Deitado de costas, de lado, de barriga. Na poltrona, no sofá, na cadeira de baloiço, na cadeira de praia, no pufe. Numa cama de rede, se tiveres alguma cama de rede. Em cima da cama, naturalmente, ou dentro da cama. Até podes pôr-te de cabeça para baixo, em posição de yoga.” Depois adequa-se a luz, não se permita que nada ou ninguém nos incomode e acerte-se os últimos detalhes: “Os cigarros ao alcance da mão, se fumares, e o cinzeiro. Que mais é que falta? Tens de ir fazer chichi? Bem, tu é que sabes.”

Falta-nos o saber da escrita de Calvino. Apenas podemos torná-lo companheiro das viagens que aqui se propõem. Ou pelo menos fazê-lo narrador de bandas sonoras imaginárias. Aqui, é de música que se trata e não se pretende alinhavar presumíveis conselhos para uma audição apurada do que se segue. Mas, porque de música para filmes imaginários se fala, convém fechar as portas, baixar as persianas e poupar nas pipocas. Os cigarros são admitidos – porque John Wayne e Rita Hayworth espreitam por entre as frestas dos estores.

Rodrigo Leão reconhece que a sua música é cinematográfica. Liberto dos Madredeus e solto do latim que marcou o arranque da sua aventura a solo, com o seu último trabalho, Cinema (Sony, 2004), o compositor dança por entre o glamour do cabaret em Jeux d´Amour ou as longas planícies de Uma História Simples. Há novidade nesta aventura de Rodrigo Leão, que aprofunda as propostas de Alma Mater (2000). A maior de todas será a explícita universalidade da linguagem musical dos temas de Cinema. Primeiro, pelas línguas em que se canta: inglês, francês ou o português do Brasil. Depois, pelos acompanhantes de viagem – a inglesa Beth Gibbons (vocalista dos Portishead), Sónia Tavares (a voz dos Gift, com álbum novo na calha), o músico japonês Ryuichi Sakamoto e as surpresas das vozes de Rosa Passos e Helena Noguerra. E é possível, a cada audição que se repete com prazer, pensar num filme para cada música: Roberto Begnini ou Jacques Tati, David Lynch ou Woody Allen.

Absoluta surpresa é O Assobio da Cobra (EMI, 2004), o álbum de Manuel Paulo, que tem por subtítulo «a banda sonora de um filme por fazer». Calha bem. Com letras de João Monge, este disco junta amigos do membro da Ala dos Namorados na realização de um filme quase caseiro, com inesperados encontros: Arto Lindsay e Rui Veloso (no tema-título), Vitorino e Tim (Letra de Mulher) ou Filipa Pais e Zeca Baleiro (Variações de Humor). E ainda há Manel Cruz (dos Ornatos Violeta/Pluto), Camané, Sérgio Godinho, Arnaldo Antunes, Jorge Palma, Manuela Azevedo, entre outros. O registo é de cumplicidades que se projectam num ecrã, com inevitável final feliz. E o álbum é feliz - porque fala de amor, onde se volta sempre. Como nos filmes.

Nas Canções Subterrâneas (Sony, 2004) de A Naifa entra-se no submundo do cinema negro, por entre nuvens de fumo, tilintar de copos de whisky e uma banda no palco – mas, neste filme, o jazz dá lugar ao fado. Sentido e pecador. Verte-se poesia de intervenção vestida de música que rompe géneros e (pre)conceitos. A Naifa ameaça ouvidos instalados e conformados. João Aguardela, outrora conhecido como vocalista dos Sitiados, e Luís Varatojo, que já foi dos Peste & Sida e Despe & Siga, associam-se a Vasco Vaz, na bateria, e apresentam a público a voz poderosa de Maria Antónia Mendes. O resultado é um feliz encontro da palavra e da música. Ouça-se Música, por exemplo, que pega nas palavras de José Luís Peixoto, para dar a volta ao texto – e ao fado. O pano cai sobre o ecrã. E sobre a noite: “É melhor fechares os olhos, meu amor, antes que o mundo inteiro seja um incêndio.”

[artigo originalmente publicado no PortugalDiário de 15 de novembro de 2004; imagem da capa da edição da Dom Quixote do livro de Italo Calvino, Se numa noite de Inverno um viajante]

Fevereiro 01, 2022

O meu voto de esquerda

Miguel Marujo

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A esquerda que no domingo perdeu votos e deputados continua a acusar os outros votos da esquerda de não serem de esquerda, ou puros, como serão os deles. Para eles, o meu voto, o voto de 2.246.483 portugueses, carrega dois pecados: não são votos de "esquerda a sério" ou são, apenas, votos úteis. É de uma grande arrogância quererem definir assim o que são as minhas convicções e o significado que dou ao meu voto.

É de uma cegueira pequena desdenhar de um partido fundador e definidor da nossa democracia – que criou o Serviço Nacional de Saúde, que construiu os alicerces da escola pública, que montou a medida mais estrutural e radicalmente de esquerda que é o rendimento mínimo garantido, que avançou nas energias renováveis, que soube derrubar o muro do chamado “arco da governabilidade” e que enfrentou uma inédita pandemia – como sendo “de direita”.

Nem tudo é perfeito na governação, que é tantas vezes a arte do possível, como também sabem o PCP e o BE, quando experimentam a governação nas autarquias. Sabemos como o PCP teve de mandar abaixo um bairro ilegal em Loures ou como a autarquia comunista de Grândola se deixa enlevar nos cantos de sereia imobiliários na costa alentejana. Sabemos como o BE teve os seus pecadilhos imobiliários de um vereador acidental em Lisboa ou uma presidência banal em Salvaterra de Magos, que perdeu nas eleições seguintes.

Faltou autocrítica na noite de domingo (por causa de outubro, claro). O Livre cresceu, sem hostilizar o PS. E, lamento, António Costa não é Sócrates. Os dados eleitorais mostram que Sócrates cresceu até à maioria à custa do eleitorado do PSD, enquanto Costa segurou o voto da esquerda. Porque o PS é de esquerda. E o meu voto útil é de uma convicção profunda na esquerda.

[ilustração de Marta Nunes, na sua conta de Instagram]
texto escrito na manhã de 31 de janeiro de 2022, ligeiramente editado nesta publicação