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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Janeiro 25, 2022

As causas que sobrevivem às coisas

Miguel Marujo

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O Portugal de A Causa das Coisas e de Os Meus Problemas, publicados nos anos 80, fazem sentido neste século XXI? Miguel Esteves Cardoso ainda nos diz quem e o que somos nós? Haverá coisas que hoje se estranham, nomes fora de tempo, outras que já desapareceram ou caíram em desuso. Já as causas permanecem. Pretexto para uma revisitação a crónicas imperdíveis, agora reeditadas. Um texto originalmente publicado no 7Margens, no passado dia 15 de janeiro.

 

“O chá Noite Suave é o chá de quem abandonou a promiscuidade a favor do carinho” e quem lê o Almanaque Borda d’Água sabe que “por trinta e cinco escudos não é possível pedir mais, ou receber tanto”. Estas são coisas antigas de um Portugal recente, de há 35, 40 anos, nas quais descobrimos prazeres perdidos. “É um prazer anual que quase sempre esquecemos: a nova edição da lista telefónica anual”, aquele que era “o livro mais consultado, utilizado e difundido de todo o panorama editorial português”. Onde já vai isso.

Por outro lado, como não bastava o tédio, a melancolia, o fastio ou o spleen, o português juntou todas estas “mágoas internacionais” a “especialidades caseiras”, como a saudade e o sebastianismo, para criar um “coquetelho implosivo” a que deu o nome de “neura”.

É através de todas estas coisas e causas que Miguel Esteves Cardoso traça um retrato de Portugal, numa coluna semanal do jornal Expresso, nos idos de 1980. O país tinha entrado na União Europeia, Cavaco Silva começava a sua longa governação, que se prolongaria por uma década, Mário Soares chegava a Belém para ser o presidente de todos os portugueses, mas também para fazer oposição aberta ao cavaquismo que se tornou doutrina de um certo modo de vida.

Miguel Esteves Cardoso, lisboeta nascido em 25 de julho de 1955, filho de pai com ascendência judia e mãe inglesa, era um jovem cronista, colunista, crítico, um estrangeirado, licenciado e doutorado em Inglaterra. Nos começos dos 80, fumegavam o punk e a new wave, as suas críticas musicais – no Se7e e O Jornal (que deu origem à Visão) ou na revista Música & Som – despertaram atenção suficiente para assinar na Revista do Expresso uma coluna que muitos classificam de satírica. Nascia assim A Causa das Coisas. MEC seria mais tarde fundador e diretor de O Independente e político ocasional, numa candidatura às eleições europeias de 1987 – e também escritor.

 

O ouriço e a raposa

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No prefácio que acompanha a reedição de A Causa das Coisas (reunidas pela primeira vez em 1986, regressaram agora em 2021 pela mão da Bertrand), José Tolentino Mendonça, hoje cardeal e investido de um forte consenso transversal na sociedade portuguesa, lê nestas crónicas uma fábula da raposa e do ouriço, a partir de um verso do “poeta grego mais antigo de que nos chegou notícia”, Arquíloco: “A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma grande.”

Diz-nos então Tolentino que “Miguel Esteves Cardoso disfarça bem” porque “a aparência de raposa esconde afinal um sólido e obstinado ouriço” e este livro é apenas a investigação da “causa de uma coisa: Portugal”. Afinal, “como que a brincar, como se não quisesse”, este é “um dos ensaios mais sérios, mais originais sobre o que somos”.

E este Portugal de A Causa das Coisas, publicado em 1986, faz sentido lido nos anos 20 deste século XXI? Ainda diz quem e o que somos nós, como define Tolentino Mendonça? Haverá coisas que hoje se estranham, nomes fora de tempo, outras que já desapareceram ou caíram em desuso. Já as causas permanecem, ou são antecipadas por MEC, o anagrama que se tornou cartão-de-visita do autor destas crónicas feitas livro.

Neste livro, MEC, ou seja, o ouriço disfarçado de raposa, distingue causa, “tudo o que determina a existência de uma coisa ou acontecimento”, de coisa, “tudo o que existe ou pode existir real ou abstractamente”. E, para a raposa, “tudo é mesmo tudo”, constata Tolentino Mendonça, com exemplos de coisas de que fala o cronista: “Dom Afonso Henriques e o Totoloto, o mata-bicho nacional e Joyce, a neura e o sebastianismo, a farinha Predilecta e Lévi-Strauss, a maledicência e o mimo, o verbo «haver» e as couves, a Cartilha Escolar de Domingos Cerqueira e Strindberg, o chá e o papel selado, a lista telefónica e o luto.”

 

Um jogo de reconhecimento

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Este livro é também um jogo de reconhecimento, para o leitor mais ou menos velho, que tenha lido ou não estas crónicas, que tenha vivido naqueles anos de 1980. Logo a abrir, o autor discorre sobre alcatifas e fala-nos da pomada Encerite. Como disse? Isso. Mas também nos fala, virada a página, do Borda d’Água, um almanaque antigo, que vem de 1929, mas que ainda hoje se vende (a edição para 2022 custa 2,50 euros; então custava os tais 35 escudos, que seriam hoje 17 cêntimos), e é “uma instituição portuguesa que se autodescreve, legitimamente, como «repertório útil a toda a gente»”. E MEC esclarece que são “páginas cheias de informações sem as quais não se imagina ser possível sobreviver”.

Também as páginas destas suas crónicas estão cheias de informações sem as quais não se imagina ser possível sobreviver — basta seguir o alfabeto: “A” é de alcatifa, em boa hora contestada por MEC, para quem as carpetes são um dos “grandes equívocos” deste país na segunda metade do século XX. Hoje, escreve o cronista, “felizmente, tem-se vindo a esboçar um movimento de reação ao dogma da alcatifa”, e atrevemo-nos a pensar que, tirando hotéis que insistem em atapetar os seus corredores, o dogma foi vencido.

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Miguel Esteves Cardoso bem o sentenciava: “Estamos a sair da longa noite fascista do regime do matte, das fotografias baças, dos filmes com demasiado grão, dos sapatos inengraxáveis e dos móveis de pinho sem verniz.” Que é como quem diz, do Portugal cinzento, sem graça, herdeiro da ditadura que ditou também um gosto conservador, velho e gasto, sem ousadia nem imaginação, o que é próprio das ditaduras. Tudo acompanhado de Encerite, a cera para soalhos cintilantes.

(Sim, também existe ainda, em determinados circuitos. Em 2007 foi criada uma casa que se especializou neste mercado de nostalgia, muito depois destas crónicas, e que assegura no seu site que “desde 1927 que a cera Encerite garante «a beleza e a saúde das madeiras»”, desafiando o eventual comprador, num registo poético-publicitário que MEC não desdenharia: “Escolha entre uma bela paleta de tons, que vai do convencional castanho ao poético alfazema.”)

 

As coisas que se estranham

Já se disse. São as coisas descritas por Esteves Cardoso que mais se estranham. Ainda reconhecemos a Pasta Medicinal Couto (apesar de já não ser “medicinal”, por causa das regras de boa convivência europeia), ou as Pastilhas Valda, que aclaram a voz para “poder desconversar-se com clareza”, ou a Água Castello — que “atingiu a raríssima fama de vir a significar todas as águas minerais gaseificadas que se servem com whisky”. No entanto, já serão muito poucos os que sabem o que é um “anis escarchado”, nomeadamente o Creme de Anis Escarchado da firma Henriques & Henriques, ou a Araruta do Brazil, farinha alimentícia tão antiga quanto o z de Brasil e que, para MEC, é “uma forma aceitável de ingerência cultural brasileira na vida portuguesa”. Foi-se a farinha, chegou o guaraná e o rodízio e outras manifestações culturais, que dividem sempre o paladar e as opiniões.

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A nostalgia percorre as páginas destas coisas, seja a do Chá Li-Cungo, que Miguel já antecipava perder para “a concorrência dos chás comercializados” (e consta que desapareceu de vez das casas da especialidade), seja a do Emplastro Exclavil, que era “claramente futurista”, na sua publicidade exclamativa (“Sem dor e sem derrame de sangue!”, “Penetra até ao osso!”, “Extra Forte!”), mas finou-se algures com o peso da modernidade da CEE, a União Europeia de hoje. Fiquemo-nos por aqui nos exemplos.

 

Os problemas de MEC

Em Os Meus Problemas – que reuniu, em 1988, as crónicas que se lhe seguiram, também no Expresso, e que foram agora também reeditadas – o labor de olhar os portugueses é idêntico. Num prefácio bem mais comezinho que o de A Causa das Coisas, Maria Filomena Mónica acaba a olhar mais para si do que para a obra que tem em mãos. E estes textos voltam-nos a devolver o que de mais cáustico e revelador tem o espelho quando nos olhamos.

Quando se lê a crónica sobre “As classes automóveis” percebemos como há coisas que pouco mudaram: “Os motoristas de táxi (pelo menos, os de Lisboa) são invariavelmente fanáticos de uma espécie ou de outra. Ao contrário dos barbeiros, que observam o devido respeito e silêncio, os «choferes de praça» utilizam os clientes que transportam como tempo de antena para as opiniões mais estrambólico-radicais que há.”

Só a evolução das coisas pode mudar a perceção. Afinal, quem ainda escreverá cartas? E será que, em 2022, MEC ainda receberá cartas? Os portugueses são “bastante bons” nesta “via epistolográfica”, sentencia o cronista. “Ao contrário dos outros povos latinos, os portugueses, quando a mostarda lhes sobe ao nariz, não explodem in loco. Mordem o lábio, pegam num papel e numa caneta e deitam a raiva toda para a tinta”, aponta. Para mais à frente concluir que, “no silêncio ensimesmado da escrita, usam as linhas do papel como rastilhos curtos para bombas grandes”. Talvez hoje estes rastilhos incendeiem as caixas de comentários dos jornais online ou as redes sociais. Só se terá perdido a qualidade da veia epistolar.

Quem não perde a veia é MEC, que neste seu segundo tomo de crónicas regista dez páginas sobre “Nomes da nossa terra”, uma das mais notáveis prosas que cartografam lugares, aldeias, vilas e cidades portugueses. Vale cada uma das suas linhas, seguir o mapa por Deixa o Resto, Monte da Má Coisa, Margalha, Vergão Fundeiro, Filha Boa, Fonte do Bebe e Vai-te, Ferido de Água, Cima de Pele, Cuide de Vila Verde e… sim, tudo terras portugueses esmiuçadas com saber, sabor e humor.

 
A pandemia desafiada

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Nestes tempos de pandemia em que aprendemos a fechar-nos, confinados, e a abster-nos de quase saudar as pessoas, com distanciamentos físicos, sabe bem voltar à Causa das Coisas com que há quase 40 anos se cosiam as crónicas de Miguel Esteves Cardoso.

Em “Beijinhos”, MEC defende que “há uma latinidade para respeitar, um sangue quente para circular, um património cultural para transmitir”. E desafia: “Olhemos à nossa volta. Há centenas de pessoas por abraçar, mas abraçar a sério, e não à Moçambique”, atira, referindo-se a uma campanha humanitária da época. "Há bochechas por toda a parte, excelentes na sua generalidade, a passear por aí em pessoas vivas. Urge desatar a beijá-las à mínima oportunidade. E há milhões de palmas de mãos, e bons costados, braços e lombos, todos eles de boa estirpe lusitana, ideais para bacalhaus e xi-corações. Que nem um nos possa doravante escapar!” É só deixar passar a ómicron e tal.

Em “Zero”, há “uma pergunta que há muito preocupa quem ainda se preocupa em fazer perguntas sobre Portugal” e “é: porque será que, em Portugal, as nulidades são as maiores sumidades?” MEC não sabia, mas o Big Brother iria ser inventado, influencers e youtubers seriam profissões, e aqui chegados é impossível não pensarmos em aventesmas e venturas.

Portugal deslumbrou-se com um ouriço, prefacia Tolentino Mendonça. “Um caso de amor correspondido que dura até hoje.”

 

 

A Causa das Coisas, de Miguel Esteves Cardoso
Ed. Bertrand Editora
432 pág., 18,80 €

Os Meus Problemas, de Miguel Esteves Cardoso
Ed. Bertrand Editora
216 pág., 16,60 €

 

Janeiro 19, 2022

Da extrema-esquerda de 1976 já só resta o PCTP/MRPP

Miguel Marujo

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Era válido em 2019, data deste artigo, continua válido em 2022 para estas eleições legislativas. Neste artigo, só não se contava como Paisana e Cidália (que ontem participou no debate dos partidos sem assento parlamentar para estas eleições) receberam o jornalista à porta com a exclamação "é preciso ter lata!", entre vernáculo que se evita publicar. Aquela sede foi também abandonada. O fim da subvenção pública, de partido com mais de 50 mil votos, a isso obrigou.

 

O PCTP/MRPP é o último partido da extrema-esquerda dos anos 1970 que sobrevive no boletim de voto, depois de o POUS ter desaparecido nas eleições legislativas de 2015 e nas europeias deste ano [de 2019]. Em 2014, para o Parlamento Europeu, foi o partido menos votado.

A 6 de outubro, o Partido Comunista dos Trabalhadores Portugueses (PCTP/MRPP), apresenta listas em todos os círculos eleitorais, com Maria Cidália Guerreiro em Lisboa e João Morais no Porto. Agora órfão do seu fundador Arnaldo Matos, que morreu em 22 de fevereiro, e sem aquele que foi o seu rosto nas últimas duas décadas até 2015, Garcia Pereira, o discurso é o de desconfiar das "eleições burguesas".

Como "partido comunista", o PCTP "nunca alimentou nem alimenta quaisquer ilusões nas eleições burguesas como forma de resolver os problemas essenciais do povo trabalhador português e, quando concorre, fá-lo para aproveitar este período para fazer propaganda do programa dos comunistas e com vista a reforçar a sua organização", lê-se no jornal oficial do partido Luta Popular.

Ao Pote de Água, em Lisboa, as montras da sede são o espelho do partido que se prepara para as eleições legislativas: livros de Lenine, como O Que É o Marxismo, ou o Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels, e as Teses da Urgeiriça, que Arnaldo Matos escreveu em 2016, e cópias de textos do jornal que hoje é exclusivamente online.


Nos vidros há um poema de homenagem ao fundador e um tweet seu em que se lê: "A classe operária portuguesa deve organizar-se sob a teoria do marxismo, a ideologia do comunismo internacionalista, para conduzir a revolução portuguesa à vitória contra o capitalismo e o imperialismo." Em frente, do outro lado da Avenida do Brasil, um mural pede o "FMI fora de Portugal", com o desafio "Não pagamos! Por um governo democrático e patriótico".

Ao toque da campainha, identificado o jornal e o jornalista, o dirigente do partido Carlos Paisana recusou-se a prestar declarações, no que foi acompanhado por Cidália Guerreiro. Na montra, num dos textos fotocopiados, queixam-se dos jornalistas que terão "ignorado" a sua presença no tribunal onde foi entregue a lista de Lisboa.


O partido conta desde 2009 com a subvenção pública para os partidos que, não elegendo deputados, consigam mais de 50 mil votos. Foram 14 800 euros mensais entre 2011 e 2015, e um pouco menos desde 2015 (14 300 euros). Este financiamento está em risco
: depois da saída de Garcia Pereira, que se demitiu em 18 de novembro de 2015, depois de críticas violentas de Arnaldo Matos à prestação eleitoral do PCTP, o partido viu a sua votação dar um trambolhão nas europeias de maio, com menos de metade dos votos de cinco anos antes: 27 222 (0,82%). Em 2014, o PCTP chegou a 54 622 votos (1,66%) para o Parlamento Europeu e, no ano seguinte, nas legislativas teve 59 955 votos (1,11%).

Nas europeias de 2014 participou o outro partido da extrema-esquerda que resistia desde os anos 1970: o POUS de Carmelinda Pereira e Aires Rodrigues, expulsos do PS em 1977, formaram este "partido da 4.ª Internacional". Hoje, à porta da sede não há nada que identifique o partido. Só espreitando pelo vidro se vê "POUS" na caixa de correio. Resiste na net, publicando um blogue. Não foi possível qualquer contacto com o POUS: o telefone já não existe e ninguém respondeu ao e-mail enviado.

[artigo originalmente publicado no Diário de Notícias, a 13 de setembro de 2019; foram mantidos os links originais do artigo, foto: Arnaldo Matos, de pé, e Garcia Pereira, ao lado, com a cara tapada pelo microfone, numa ação de campanha em 1983. © Rui Homem/Arquivo DN]

Janeiro 10, 2022

Patti Smith. "Não sou música. Sou uma cantora e uma performer"

Miguel Marujo

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Em 2015, a cantora americana voltou a Portugal para um concerto que, como no Porto em maio desse ano, celebrava os 40 anos do lançamento do seu primeiro álbum, Horses. É uma digressão que já estava na reta final e que foi o mote para uma conversa ao telefone, a partir de Nova Iorque, onde regressou nos anos 90, depois da morte do marido, para se dedicar de novo à música, à escrita e à fotografia. Uma mulher de múltiplos talentos. A começar pela voz

 

Quinze minutos, não mais, a meio da tarde em Lisboa, manhã em Nova Iorque. As indicações eram claras: depois da breve saudação, a entrevista devia começar logo depois. Não era preciso de facto mais nada. Patti Smith tem uma disponibilidade na voz e no ritmo pausado com que fala, longe das guitarras com que ilustra a poesia de Gloria, que por momentos o mundo se suspende nas suas palavras.

Quando veio ao Porto, em maio, disse que estava a acabar um livro. Já está finalizado?

Sim, está acabado.

É sobre o quê?

O livro chama-se M Train. Quis escrever um livro muito diferente do meu último (Just Kids) porque nesse livro tinha uma coisa específica que tinha de escrever. O Robert [Mapplethorpe] pediu-me, antes de morrer, que escrevesse o livro sobre a nossa vida em comum e a nossa juventude, sobre a sua morte e arte, era muito específico. Decidi que este livro não teria guião, desenho ou agenda, apenas me sentava e escrevia. Sentava-me num café, bebia o meu café, e escrevia. E assim fiz, escrevi. M Train é como mind train, o comboio da mente, como um comboio de pensamentos, e escrevi sobre café, viajar, o meu último marido, a pessoa que eu amava.

Uma espécie de ensaio ou mais autobiográfico?

É mais autobiográfico. Ao mesmo tempo partilho com o leitor a vida como ela é para mim, o que faço, como eu a guio. Os livros que ando a ler, as coisas que me preocupam, os meus pensamentos, a minha meditação. É um pouco divertido – e tem muito café dentro. É difícil explicar o livro, foi-se desdobrando em tempo real, mas regressa ao reino da memória. À memória de quando o meu marido [Fred "Sonic" Smith] estava vivo e um pouco de como era a nossa vida.

Foi uma tragédia a sua perda.

Sim, eu amava-o. Era o pai dos meus filhos. Eu tive uma sucessão de mortes, o Robert Mapplethorpe morreu em 1989 e depois o meu pianista, que só tinha 37 anos, morreu dois anos depois, depois o meu marido e um mês depois o meu irmão. Foi forte... (pausa) Mas o livro foca-se mais na minha vida atual, com memórias do Fred.

Essas perdas levaram-na de novo à música, nessa altura.

Eu gravei e toquei os meus primeiros discos nos anos 70, gravei o meu primeiro álbum em 1975, Horses, esse foi o meu primeiro álbum, mas eu deixei a vida pública em 1979 para me casar e ter filhos. Quando o meu marido morreu, em 1994, regressei à vida pública em 1996. Foi a sua morte que obrigou a fazer-me à vida, para tomar conta dos meus filhos. Trouxe-os para Nova Iorque e voltei a tocar e a gravar de novo. Mas não tínhamos um horário escolar. Hoje, os meus filhos cresceram, estou a fazer o meu trabalho, estou a escrever, a fotografar – e estamos a fazer uma digressão para comemorar Horses.

Escreveu poesia, publica livros, escreve música, anda em digressão. Passados estes anos, o que é que é mais relevante para si. Há anos falou sobre o seu trabalho como um processo muito orgânico. Continua a ser assim?

Sim, o meu trabalho é orgânico e a forma como flui de uma para outra é orgânica, mas a coisa mais consistente que fiz, desde que era uma jovem rapariga, foi escrever. A escrita é o coração das coisas que fiz, e até como performer comecei como poeta, a misturar a poesia com o rock’n’roll, comecei como escritora, não como música. Eu não sou uma música. Eu sou uma cantora e uma performer, mas nunca estudei música nem toco música. Sou mais uma intérprete, mas penso que escrever é mais essencial para mim.

Horses apareceu nesse processo?

Horses apareceu como poesia. “Jesus died for somebody’s sins but not mine” ["Jesus morreu pelos pecados de alguém, mas não pelos meus", no início de Gloria] começa como um poema que escrevi em 1970 e que costumava interpretar em sessões de leitura de poesia. Muita da improvisação que fiz como poeta filtraram-se deste modo para as canções de Horses. Eu comecei simplesmente, primeiro com Lenny Kaye, a ler poesia, enquanto ele me dava um ritmo sonoro, depois o meu pianista Richard Sohl que trouxe a estrutura de Horses. De 1971 a 1974, nós evoluímos, e quando fizemos Horses já tinha evoluído de fazer leituras de poesia para ter uma banda de rock’n’roll. Mas continuávamos a basearmo-nos na poesia.

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Jesus died for somebody’s sins but not mine.” Esta afirmação continua a fazer sentido para si?

Faz sentido no contexto em que a escrevi, como uma jovem rapariga, não contra Jesus, porque sempre admirei Jesus, mas contra a religião organizada. A minha visão de Jesus é de alguém que foi revolucionário, que espalhou a ideia de amor, cujo ensinamento era amarmo-nos uns aos outros, mas senti que a religião organizada confina as minhas ideias e liberdade. A canção opõe-se mais à religião organizada, mas era a afirmação de uma jovem rapariga. Escrevi isto há 48 anos, quase meio século atrás, como uma declaração de independência e de existência. Sim, faz sentido para mim em termos de “onde é que eu estava” e no que é que eu acreditava. Mas, como lhe disse, admiro os ensinamentos de Cristo. Por isso, estou capaz de negociar esse cisma muito facilmente [risos].

Porque é que acha que é importante celebrar agora os 40 anos de Horses?

40 anos! Estou orgulhosa de que o álbum continue a ser relevante 40 anos depois. Estou orgulhosa. E ainda estou fisicamente forte, saudável o suficiente para apresentar com sucesso o álbum às pessoas. É um marco e como senti que no 50.º aniversário terei 78 anos, pensei que o 40.º aniversário era a melhor altura para mim para apresentar uma forte interpretação do álbum. E estou muito confiante em fazê-lo. Não me sinto diminuída, se estou ou não estou a replicar o álbum. Nós vivemo-lo todas as noites, o que interpretamos é importante no momento, não é teatro. Tocamo-lo com o mesmo fervor com que o fizemos há 40 anos. E por isso sinto que temos algo a oferecer às pessoas.

Por isso ainda sente que o álbum bombeia sangue para o coração do rock’n’roll, como disse em tempos?

[risos] Eu não sinto medo, isso de certeza. Não tenho medo. O álbum continua a ser um marco para muitos na música. Michael Stipe, dos R.E.M., está sempre a dizer isso, foi Horses que o trouxe para a música. Sinto-me lisonjeada. Michael Stipe é meu amigo e sinto-me muito orgulhosa de que ele se tenha inspirado. O Michael também é uma inspiração para mim, é verdadeiramente um dos grandes letristas na música popular, por isso fico muito feliz de que tenha sido capaz de o inspirar.

Numa entrevista afirmou que o rock era a voz política da sua geração. Nestes tempos com alguém como Donald Trump a ocupar o palco, o rock continua a ser uma forma de passar uma mensagem?

Penso que na nossa cultura, onde podemos comunicar com as pessoas através da tecnologia, há muitas maneiras de comunicar e muitas maneiras importantes de inspirar as pessoas. Penso que o rock, como todas as artes, são importantes catalisadores. No fim são as pessoas que têm de fazer a mudança. Nos anos 60, havia Bob Dylan, Neil Young, qualquer cantor de protesto ajudou a criar a nossa voz cultural, foram uma grande inspiração, mas foram as pessoas que tiveram de fazer as mudanças, que tiveram de ir para as ruas e protestar contra [a Guerra do] Vietname, para engrandecer o movimento dos direitos civis. Sim, acredito que a música pode ser inspiradora e ser um guia ou dar força às pessoas... Mas são elas que têm de fazer a mudança.

People still have the power?

Sim, têm, mas têm de o usar. [risos]

O que podemos esperar do concerto de Lisboa? Será diferente dos concertos do Porto?

É sempre diferente. Para começar estaremos em Lisboa, e seremos arrastados pela energia da cidade. Gosto muito de Lisboa e não toco aí há muito tempo, por isso estou muito ansiosa por chegar. Todas as noites são diferentes. Há coisas que acontecerão em Lisboa que não acontecem em mais nenhum lado. É como trabalhamos: gosto de me ligar às pessoas no momento, falar com elas, discutir com elas. Horses é o principal tema, apresentaremos o álbum e depois logo veremos como segue a noite. Trazemos o que trazemos, mas a nossa porta está aberta, por isso as pessoas vão ajudar-nos a engrandecer a noite. Estamos a fechar a celebração de Horses e estou mesmo feliz por irmos atuar em Lisboa. É um sítio onde gosto de perder tempo e fotografar. Ver que tipo de energia mútua podemos tirar da nossa noite.

Gosta da luz de Lisboa?

É linda. Sempre gostei de escrever em Lisboa. Mas também é uma linda cidade para fotografar. Ou apenas caminhar à noite. A atmosfera é especial, tem uma energia especial. Estou muito entusiasmada por regressar.

Um livro no outono e disco na primavera

M Train é o novo livro de Patti Smith, a lançar em outubro nos Estados Unidos, depois do sucesso – de crítica e público – que acolheu Just Kids. É um livro com muito “café dentro”, como confessou a própria na entrevista destas páginas, escrito ao ritmo de uma esplanada. Em inglês, dito em inglês, soa diferente: Patti sentava-se no cafe a beber o seu coffee, enquanto observava quem passava e tomava notas. Depois do livro, chegará um novo álbum. “Sim, vou fazer um novo álbum, não sei ainda bem quando, provavelmente na primavera”, disse ao DN. E não vai parar, admitiu. “Vou ajudar a escrever o argumento para uma minissérie de televisão baseada em Just Kids”, o livro de 2010. “Tenho muitos projetos. Para já vou fazer uma mão-cheia mais de concertos: uns dez mais.” E fica fechada a celebração de Horses.

[artigo originalmente publicado no Diário de Notícias, em 19 de setembro de 2015; fotos: sem autoria, Patti Smith Group in New York 1975Robert Mapplethorpe (1946-1989) - Patti Smith, Horses 1975]

Janeiro 07, 2022

Peter Bogdanovich, a última sessão

Miguel Marujo

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Peter Bogdanovich morreu aos 82 anos. É dele The Last Picture Show (A Última Sessão, em Portugal)filme magnético — com Cybill Shepherd — e que escolhi entre os dez que mais impacto tiveram em mim, naqueles exercícios sem explicações e de mera vaidade no Facebook. Ou como recordou Francis Ford CoppolaI’ll never forgot attending a premiere for The Last Picture Show. I remember at its end, the audience leaped up all around me bursting into applause lasting easily 15 minutes. I’ll never forget although I felt I had never myself experienced a reaction like that, that Peter and his film deserved it. May he sleep in bliss for eternity, enjoying the thrill of our applause forever.”
De Texasville para a históriawith the touch of restless young genius, he seemed to reinvent pulp crime, the western, the road movie and the screwball comedy – in short order.


Na foto: Cybill Shepherd and Peter Bogdanovich photographed outside the Plaza Hotel in New York City, circa 1974 Photograph: Images Press/Getty Images, publicada no The Guardian.