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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Novembro 24, 2021

O amor é cego. Como Berlim salvou os U2 e todos ganhámos

Miguel Marujo

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A 18 de novembro de 1991, quando aquele comboio entrou na estação de Berlin Zoologischer Garten, que todos resumem à Bahnhof Zoo, a história aconteceu. Há 30 anos, o mundo vivia uma estranha euforia, com uma Europa que tinha rasgado de par em par a Cortina de Ferro, a pesada fronteira que partia o continente entre Ocidente e Leste. As velhas utopias perdidas nas burocracias e ditaduras de Leste tinham soçobrado e o capitalismo sonhava cantar amanhãs — outra ilusão. Há 30 anos, já o Muro de Berlim tinha sido desmantelado dois anos antes, numa alegria contagiante, e outros muros invisíveis começavam a ser levantados.

É neste tempo que se ouvem os primeiros acordes de Achtung Baby, a provocação sonora que os U2 lançaram no seu regresso à Europa, com paragens em Berlim e Dublin. Naquele dia, ao sair na Zoo Station, o cartão de visita fez-se de guitarras eletrizantes e percussões pesadas, vozes distorcidas, insuspeitas e viciantes tonalidades eletrónicas, I’m ready, I'm ready for what’s next, e eles diziam-se prontos para o que aí vinha.

A surpresa morava logo a abrir o álbum. Num texto incluído na edição de luxo com que os irlandeses assinalaram os 20 anos de Achtung Baby, o jornalista Andrew Mueller, autor de vários livros “que vendem suficientemente mal para continuar no jornalismo”, reconheceu o preconceito que se esboroa aos primeiros segundos de audição do primeiro single, The Fly: “Um rockabilly claustrofóbico e barulhento, vagamente reconhecível como U2.” E acrescentou à paleta de sons ouvidos: “É difícil exagerar o quão surpreendente foi o contacto inicial com Achtung Baby — especialmente para aqueles que, como este correspondente e a maioria dos seus então colegas da imprensa musical da moda, há muito tempo haviam classificado os U2 como uns chatos pomposos e piedosos.”

Não admira a confissão. Os U2 vinham de um período de excessos, do salto para os estádios em digressões gigantes, depois da obra-prima The Joshua Tree (1987) e de uma viagem pelos Estados Unidos em Rattle and Hum (1988), um disco e filme feito como um épico americano que acabou mal recebido pela crítica. Em From The Sky Down - a documentary (2011) são os próprios que descrevem aquela travessia da América como algo penoso e triste. “Ele gravou quilómetros e quilómetros de takes, e não há alegria nenhuma”, diz Edge, referindo-se a Phil Joanou, o realizador de Rattle and Hum. “Aquilo não nos assentava, aquilo em que nos tínhamos tornado”, admitia, neste documentário.

Este final da década de 1980 acabou por desgastar o grupo de quatro amigos irlandeses — Bono, The Edge, Adam Clayton e Larry Mullen Jr. — ao ponto de quase pôr um fim à banda. A história é conhecida, e repetida como um mantra: “Fazer Achtung Baby é a razão porque ainda aqui estamos”, diria mais tarde Bono.

“Isto soa demasiado a U2”

Aterrar em Berlim não foi fácil. O outono e inverno são muito frios e cinzentos na cidade. No livro que acompanha Achtung Baby Deluxe Edition, o autor americano Bill Flanagan (que escreveu U2 at the End of the World) descreve as tensões vividas nos estúdios Hansa, local que já tinha visto nascer algumas obras míticas de notáveis como David Bowie, Iggy Pop, David Sylvian, Nick Cave and The Bad Seeds, Siouxsie and The Banshees, Depeche Mode, Tangerine Dream ou Pixies. “O Hansa Studios podia estar cheio de história, mas era um estúdio desatualizado e desconfortável para gravar”, sintetiza Flanagan.

Para Larry Mullen e Adam Clayton, o pouco material que Bono e The Edge tinham escrito não era bom suficiente para fazer a banda mudar de direção. O grupo seguia o seu esquema habitual de encontrar novas ideias em conjunto para as canções, numa jam session, “mas eles continuaram a discordar, musical e filosoficamente”, descreve Bill Flanagan. “Se eles vinham com alguma coisa que soasse como uma grande canção dos U2, Bono e Edge protestavam que soava demasiado a U2. Larry e Adam objetavam: ‘Nós somos os U2!’”

Os quatro miúdos que se fizeram amigos e músicos na banda, não conseguiam agora falar a mesma linguagem. Enquanto Larry ouvia Led Zeppelin e Jimi Hendrix, The Edge explorava música como Einsturzende Neubauten, KMFDM ou os Young Gods. “É música industrial. Tem a ver com a utilização de repetição e com retirar a humanidade das coisas, até um certo nível, para que a humanidade que pomos tenha mais significado”, explicava-se Edge em From The Sky Down.

A ponte surgiu com One, que se tornou também uma das canções mais universais dos U2, como recordou Flanagan. Enquanto Edge, Adam e Larry tentavam acertar as notas de uma canção, Bono começou a improvisar no microfone sobre a tensão na sala, as discussões entre os membros do grupo: “We’re one but we’re not the same, we get to carry each other.” De todos aqueles momentos de tensão em Berlim, nasceu One, quando “os quatro baixaram os braços e começaram a colaborar”.

“Uma dádiva”, chamou-lhe Edge. “No instante em que estávamos a gravar, tive uma sensação muito forte do seu poder. Estávamos todos a tocar juntos na grande sala de gravação, um enorme e misterioso salão de baile cheio de fantasmas da guerra, e tudo se encaixou. Foi um momento reconfortante, quando todos finalmente disseram, ‘oh ótimo, este álbum começou’. É a razão pela qual estás numa banda — quando o espírito desce sobre ti e crias algo realmente comovente. One é uma peça incrivelmente comovente. Ela atinge o coração", confessou o guitarrista a Neil McCormick, em U2 by U2 (2006, ed. HarperCollins).

No seu U2 Songs + Experience (2018, ed. Carlton Books), Niall Stokes acrescenta Sonic Youth e My Bloody Valentine à lista de influências "mais pesadas" que se ouvia nas sessões de Achtung Baby. Mas este jornalista irlandês refere que, em simultâneo, os seus conterrâneos de Dublin desenvolveram um interesse por Roy Orbinson, Scott Walker e Jacques Brel, compositores de “torch songs”, canções de amores não correspondidos. Nas letras era este o caminho a seguir, defendia Edge, tornando-as mais pessoais. One é, de novo, um exemplo.

 

Brian Eno, que produziu o disco com Daniel Lanois, sintetizaria (na revista Rolling Stone, de 28 de novembro de 1991) o som que ali se começou a forjar. “Os termos da moda neste álbum eram trashy, descartável, dark, sexy e industrial (todos bons) e sérios, educados, doces, justos, rockistas e lineares (todos maus). Era bom se uma música te levasse numa viagem ou te fizesse achar que a tua aparelhagem estava avariada, seria mau se lembrasse estúdios de gravação ou os U2. Sly Stone, T. Rex, Scott Walker, My Bloody Valentine, KMFDM, The Young Gods, Alan Vega, Al Green e Insekt eram todos a favor. E Berlim... tornou-se um pano de fundo conceptual para o registo. A Berlim dos anos 30 — decadente, sexual e sombria — ressoando contra a Berlim dos anos 90 — renascida, caótica e otimista…”

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“Foi o momento em que a rock culture se encontrou com a club culture. Berlim significava textura, Manchester significava ritmo, ritmo que só podia ser criado usando computadores e máquinas”, argumentava Edge, enquanto Bono recordava a influência da música alemã, citando os Kraftwerk. “Aos 16, um dos primeiros álbuns que comprei para a [namorada] Ali foi o Man Machine. Isto é a música soul para a Europa. É a invenção da música eletrónica.”

É este choque que marca a diferença do disco, com pitadas de ironia.“A abertura de Zoo Station faz uma declaração poderosa: no seu uso deliberado de sons ‘industriais’, que não nos lembram de forma alguma os instrumentos convencionais; no primeiro plano da tecnologia, no início da música — na verdade, em tornar isso a afirmação de abertura do álbum — não há dúvidas de que os U2 adotaram recursos sonoros novos para eles. Mas o facto de ser um gesto deliberadamente hesitante coloca-o claramente no reino da sátira. Talvez satirize a própria tecnologia ou a novidade dos U2 abraçarem a tecnologia”, interpreta Susan Fast num ensaio intitulado “Music, Contexts, and Meaning in U2”, incluído na coletânea de textos Expression in Pop-Rock Music: A Collection of Critical and Analytical Essays (Studies in Contemporary Music and Culture), de 2000 (ed. Garland Publishing).

As pistas para a dança
A dance music, que Bono e Edge referem no filme-documentário sobre Achtung Baby, acaba por marcar o trabalho do grupo de forma evidente nos singles que vão sendo publicados, com remisturas das canções mais orelhudas para as pistas de dança, como Even Better Than The Real Thing ou Mysterious Ways, The Fly ou Who’s Gonna Ride Your Wild Horses, ou em lados B como The Lady With the Spinning Head ou Salomé. Mas também nos dois álbuns seguintes: Zooropa (1993), outra obra-prima, e que é um segundo capítulo de Achtung Baby (foi, aliás, publicado como um dos discos na já referida edição dos 20 anos, que incluía outros dois com remisturas, Über Remixes e Unter Remixes); e Pop (1997), que arriscava três canções a abrir (Discothèque, Do You Feel Loved, Mofo) que pareciam deixar para trás o rock — e os seus fãs dos anos 80.

Ouvindo hoje Achtung Baby, todas estas músicas-mais-pop-que-rock integram sem qualquer mácula o cancioneiro dos U2. “No seu novo habitat, os U2 apropriaram-se de novos sons e novas batidas, aparentemente sentindo-se tão confortáveis em saquear os reluzentes legados da vanguarda dos Kraftwerk, Can e Neu! em Berlim, como tinham feito com os blues empoeirados em Memphis”, regista Andrew Mueller. A própria herança do grupo é uma vantagem, acrescenta o jornalista, lembrando a Irlanda natal, uma rocha cravada entre a Europa e a América.

 

O alinhamento do disco regista esse caminho, com Zoo Station e Even Better Than The Real Thing a apontarem logo a abrir novas pistas para os sons do álbum. Se One fez tiro ao alvo dos clássicos da banda, Until the End of the World retomou os riffs de guitarra que se deixam enlevar numa percussão que pede corpos dolentes a dançarem. O realizador alemão Wim Wenders tinha-lhes pedido uma canção, a banda respondeu com este tema, dizendo-lhe que o queriam usar no disco e que lhe roubavam também o nome do filme. Em U2 Songs + Experience, Niall Stokes pergunta quais são os temas das canções dos U2 e The Edge responde: “Traição, amor, moralidade, espiritualidade e fé.” Stokes regista: “Traição veio primeiro.”

Who’s Gonna Ride Your Wild Horses e So Cruel, que se seguem, mantêm o registo da nova sonoridade experimentada nos Hansa Studios, antecipando The Fly, o single de apresentação do disco e que, já vimos, deixou todos baralhados.

U2-Achtung-Baby-Kv.jpgÉ Brian Eno quem melhor descreve o processo de composição do disco, num longo parágrafo, publicado em Achtung Baby Deluxe Edition. “Alguém chega com uma velha mistura em bruto que acabou de redescobrir e que, apesar de todas as suas deficiências, tem alguma coisa. O que é? Podemos conseguir sem abandonar tudo o que aconteceu desde então? Podemos obter o melhor de ambos? Quando falha, o resultado é diluído, comprometido, homogeneizado. Quando corre bem, passa a existir um híbrido, há uma sinergia de sentimentos e nuances que ninguém antecipou. Se isso acontecer, é novidade. Há muitas novidades deste tipo neste álbum: So Cruel é épica e íntima, apaixonada e tranquila, Zoo Station, de uma alegria maníaca e industrialmente jovial, Ultra Violet (Light My Way) tem uma melancolia envolvente, Mysterious Ways é pesado e leve. Encontrar um único adjetivo para qualquer canção mostra-se difícil: é um álbum de oximoros musicais, de sentimentos que não deveriam existir juntos, mas que de alguma forma são verosímeis.”

Para além das já citadas, toda a segunda metade de Achtung Baby é uma sucessão de outros oximoros musicais: Tryin' to Throw Your Arms Around the World, Acrobat e Love Is Blindness.

O amor é cego, bem se vê. “Por um momento, à medida que a velha ordem ia passando, os U2 exploraram a possibilidade de reconciliar muitas ideias aparentemente contraditórias e fazer tudo soar. Eles escaparam do canto em que eles próprios se tinham metido, no final dos anos 80, fazendo explodir a casa. Foi uma explosão linda. Podia ver-se o fogo de artifício a milhas. E ainda se podem ouvir os ecos”, concluiu Bill Flanagan.

Ícones pop

 

“Os U2 chegaram a Berlim do final do século XX em busca de uma musa e de uma metáfora, e partiram com o início de um álbum que pareceu surpreendê-los tanto quanto a todos. Era uma boa época para ser um iconoclasta — até mesmo para os ícones”, define Mueller.

“Apesar das ironias mordazes ouvidas ao longo de Achtung Baby — ou, talvez, por causa delas —, os U2 parecem que nunca se divertiram tanto nas suas vidas”, sublinha Andrew Mueller, apesar do batismo de fogo que significou Berlim. E esse divertimento foi transposto para o palco na Zoo Tv Tour.

Para a imagem de Achtung Baby, o fotógrafo e cineasta Anton Corbijn resgatou os Trabant, velhos carros de fabrico da Alemanha de Leste, para cortar com a imagem de quatro rapazes encasacados junto às árvores de Joshua (são também dele, Corbijn, as icónicas — lá está — imagens de Joshua Tree). “Da noite para o dia, o carro deixou de ser um símbolo de status muito desejado e tornou-se uma lembrança do passado”, escreveu Corbijn, que com as suas fotos ajudaria a transformar aqueles automóveis da RDA em ícones pop.

Como recorda o jornalista alemão Martin Scholz (também na Deluxe Edition), os U2 viajaram de avião para Berlim a 3 de outubro de 1990, apanhando o último voo da British Airways que pousaria oficialmente no território da República Democrática Alemã, a RDA, no lado oriental da cidade. Mas já aterraram no futuro, no dia em que a Alemanha foi oficialmente reunificada e a RDA deixou de existir. É a imagem perfeita para Achtung Baby: um disco que aterrou no futuro. E o Muro caiu de vez naquele 18 de novembro de 1991.

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[artigo originalmente publicado no 7Margens; fotos © Anton Corbijn, da sessão de fotografias para a promoção de Achtung Baby.]

 

 

Novembro 09, 2021

A caminho da Expo: um bairro inteiro que quer criar

Miguel Marujo

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À passagem dos 20 anos da Expo'98, antes de uma pandemia que suspendeu vidas, uma reportagem nos caminhos do Oriente sobre a vida que fervilhava por ali, num bairro onde agora querem fazer nascer unicórnios (não lhes digam nada, mas os unicórnios não existem).



De bicicleta, numa foodtrip pela Europa, Anne e Antoine Legrand começaram por se maravilhar pelo Alentejo, onde pensaram lançar âncora, mas chegados a Lisboa enamoraram-se de tal modo da cidade que deixaram o sonho de viver nas terras da planície para um dia.

Quando procuravam móveis para a casa que encontraram na Graça, foram parar a uma loja de mobiliário vintage no Beato, num enorme armazém como tantos outros na zona. "E assim descobrimos este bairro", explica Anne ao DN, em português.

É um bairro "com todo o potencial", diz, antecipando a escolha que ela e o marido fizeram por uma pequena casa que será um restaurante familiar [A Ilegítima, assim se chama], a inaugurar no outono [de 2018], junto ao Largo do Olival.

Este largo sossegado de coreto a um canto é um parque de estacionamento, onde os carros parados não perturbam a calma do lugar, com mesas para jogar às cartas e sem ninguém naquela tarde de dia de semana, casas de piso térreo ou de um ou dois andares, não mais, um apartamento de janelas de acrílico branco que denuncia a reabilitação recente e que está à venda, e outro edifício de esquina a cair.

Passam poucos por ali, encostados que estamos à Rua do Grilo, à Calçada Duque de Lafões e à Alameda do Beato, mas já há cartazes imobiliários nesta Lisboa que agora, 20 anos depois da Expo'98, deixou de ser apenas uma terra de passagem entre o centro da cidade e o Parque das Nações. Beato e Marvila ficaram a ver o progresso nascer paredes meias com estas duas freguesias, e começam por fim a mexer. Sem medo da gentrificação, o palavrão para estes tempos. 

"É um bairro ótimo, parece Brooklyn", compara Anne Legrand, "com as cervejas artesanais, as galerias de arte. Aqui há garagens, armazéns, um bairro inteiro que quer criar", entusiasma-se Anne. "E eu tenho um milhão de ideias", antecipa.

Ideias de sobra têm também os responsáveis do Hub Criativo do Beato (HCB) para uma área de 35 mil metros quadrados e 20 edifícios, enumera Miguel Fontes, diretor executivo da Startup Lisboa, a quem a Câmara de Lisboa entregou a gestão do projeto.

Se "Lisboa está no mapa", como diz ao DN, "obriga Lisboa a mexer-se", apostando numa zona da capital que começou a "ganhar outra dinâmica". "De Santa Apolónia à Expo" - como tantos ainda hoje dizem, referindo-se ao Parque das Nações - "era a zona que faltava desenvolver e consolidar". Por isto, "a localização do Hub não foi inocente", admite Miguel Fontes.

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No espaço por agora quase vazio, há obras de saneamento a arrancar e empresas que já começaram a anunciar a sua instalação na antiga Manutenção Militar - era ali que se fazia o pão, as massas e as bolachas para os militares portugueses. Miguel Fontes chama-lhes parceiros e puxa dos nomes com satisfação: haverá a Factory Berlin, o hub digital da Mercedes, a Super Bock, a Web Summit ou a Startup Lisboa. São "entidades âncora", ímanes que podem atrair outras nos eixos definidos para o HCB: empreendedorismo, indústrias criativas e mundo corporativo. E haverá ali um museu, na antiga fábrica da moagem, para perpetuar a memória do lugar.

Até ao final de 2019, Miguel Fontes conta ter "os primeiros ocupantes a abrirem portas", num espaço que se foi mostrando à cidade com eventos, que ocuparam o local, como a mais recente exposição do World Press Photo.

O responsável recusa que o projeto seja um objeto estranho ao bairro, a esta zona de Lisboa. Mas reconhece que "já havia uma dinâmica própria no Beato e em Marvila". O HCB "é um ponto de partida e de chegada", conta, recordando a reunião que mantiveram com comerciantes e líderes da comunidade para lhes explicar o que será o Hub e para os ouvir. "O desafio é controlar os efeitos mais perniciosos, como a gentrificação."

Anne Legrand duvida que venha a ser um bairro tão atingido como outras zonas da cidade. "É uma zona de trabalho e industrial, não é uma zona turística", nota, eventualmente procurada por quem se interessa por arte urbana. Eles próprios na sua Maison Legrand, empresa de eventos, que pretendem que funcione como um laboratório, querem "trazer os locais". "Não procuramos os turistas, se vierem muito bem, mas queremos trazer quem vive e trabalha em Lisboa", para se sentarem na sua cozinha em volta da mesa.

É de vizinhos que se faz também a clientela do Bistrô Lisboa, cafetaria e lounge como se apresenta o estabelecimento na Rua Fernando Farinha, numa urbanização de prédios incaracterísticos de construção recente, e onde sobressai o elétrico amarelo que marca a Lisboa que os turistas procuram. Sem quererem fazer um simples "café do Nuno e do Bruno", o Bistrô nasceu com vontade de ser diferente. Bruno Ribeiro é desta zona de Marvila, o Vale Formoso, e depois de saber da disponibilidade do espaço desafiou Nuno Gomes (trabalhavam os dois numa empresa da restauração) para fazer de outro modo, onde a oferta é limitada. "Manter o tradicional mas atualizado" - e desde há dois anos e meio que assim fazem. À oportunidade de negócio, estudaram os clientes e o que pediam para apostar em alimentação saudável, sumos naturais, saladas. Há bolachas e chás e um parque infantil ao lado, muito procurado.

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Em conversa com o DN, os dois notam que já há "muita procura imobiliária" e "pouca oferta". "Se souberem de alguém que venda", ou "arrende", pergunta quem passa, também estrangeiros. Ao longe, no fundo da rua, veem-se os silos de cereais do Beato, o azul do Tejo a espreitar.

Numa zona "muito parada, envelhecida e e decadente", que foi perdendo atratividade, a sua precariedade "trouxe este tipo de usos" de gente a apostar em negócios e espaços diferentes, avalia Miguel Fontes. "O início desta dinâmica esteve muito cruzado com esta indefinição." Agora, é tempo de outra definição: o Beato e Marvila não são mais meras passagens a caminho do Oriente.

[artigo originalmente publicado no Diário de Notícias a 23 de maio de 2018; foto principal: Anne Legrand, no espaço que viria a ser o restaurante familiar, © Pedro Rocha/Global Imagens]