Novembro 30, 2020
"Toda a minha vida foi fazer coisas com beleza e sentido"
Miguel Marujo
Laurie demora-se no pequeno-almoço. Entre amigos e telefonemas para Paris, para onde segue depois de Lisboa. O dia límpido e o mar brilhante, azuis estonteantes no horizonte, entram pelo hall do hotel. Talvez a conversa que se antecipa no bloco-notas peça um ambiente menos vivo – e daí talvez não. Recordando as imagens que percorrem os momentos finais de Heart of a Dog – Coração de Cão, o filme que Laurie Anderson veio apresentar ao Lisbon & Estoril Film Festival, e as palavras que Lou Reed canta em Turning Time Around, talvez a conversa tenha de ter afinal aquele enquadramento, luminoso – e também a simplicidade de Laurie, 68 anos, artista, música, realizadora, desarmante no humor, olhar de menina, chávena larga de café na mão.
Vamos a Paris, para início de conversa. Depois de Lisboa, a americana seguia para a cidade que, na sexta-feira anterior (a entrevista teve lugar no domingo, 15 de novembro de 2015), vivia o terror de atentados que não olharam a quem, que atingiram gente num estádio, em restaurantes, num concerto. “Vou para Paris, era suposto fazer uma conferência sobre música para jovens músicos, que vêm de todo o mundo, mas cancelaram os concertos, o promotor do evento foi morto, mas decidi ir...” E acrescenta: “Toda a minha vida como artista temi este dia, em que pessoas viriam a um concerto para matar pessoas. Aconteceu na Califórnia, uma vez há muito tempo, mas nunca assim, nunca como terrorismo. Por isso tenho que pensar o que vou dizer, é demasiado complexo. ‘Como vivemos isto e como vamos responder a isto?’.”
Sobram dúvidas, apesar de certezas. “O meu objetivo como artista é criar empatia, por isso quando temos toda a gente a falar de quem foi morto, também me lembro de todos os sírios que foram mortos, questionando-me sobre que conflito é este, sobre o facto de nós não falarmos sobre eles, de não os termos nas nossas manchetes. Também devíamos fazer isto, as nossas vidas não são mais preciosas que as deles. Não estou a dizer que entendo o terrorismo mas é muito importante recuarmos e olharmos para toda a situação.”
A morte irrompe na conversa, como no filme Heart of a Dog, um retrato sobre a sua cadela Lolabelle, pretexto para refletir sobre a vida e a morte, que revisita os últimos dias da morte da mãe (com quem a artista mantinha uma relação distante, difícil: “Não amo a minha mãe.”) e percorre episódios com a marca do 11 de setembro. Laurie vive na cidade que foi atacada num dia límpido de 2001, e na altura a sua resposta foi artística: dois concertos dias depois do dia infame. A arte como resistência e sobrevivência. “Podemos usar muitas palavras: resistir, sobreviver, comprometer com, viver por... Para mim, toda a minha vida foi fazer coisas que considero terem beleza e sentido, por isso é muito importante proteger essas coisas de pessoas que querem acabar com elas.”
“O propósito da morte é a libertação do amor”, diz-nos Laurie no filme - e a banda sonora que faz o filme vive em disco de forma magistral, sem que as músicas e o monólogo da autora se percam. “Não tento romantizar a morte, eu amo a vida”, e repete-se ao DN para melhor se explicar. “Eu amo a vida, mas no meio de Heart of a Dog, o meu professor [de budismo] diz-me para praticar a tristeza sem estar triste. A morte para muitos é assustadora ou triste, mas eu tento vê-la como uma big picture, uma coisa transitória, que faz profundamente parte das nossas vidas.”
Depois regressa à viagem que se seguia a Lisboa e aos telefonemas que a ocupavam. “Tenho pensado toda a manhã, no que dizer a estes jovens músicos, porque temos aqui uma combinação de amor e morte no mesmo instante: gente que se dedica a ouvir música, uma das coisas mais alegres que podemos fazer como seres humanos, e depois são mortos.”
Das palavras que lhe ocupam a manhã passa para o filme. “Heart of a Dog é também sobre lá em cima”, e olha e aponta. “Sobre a liberdade do alto mas que quando se inverte transforma-se em medo." No filme não há metáforas: a sua rat terrier descobre, em passeios pela Califórnia (onde Laurie se refugia com Lolabelle depois dos atentados do 11 de setembro), que nos ares mora uma ameaça, falcões que a sobrevoam e confundem a cadela com coelhos, a mesma surpresa estampada nos olhos dos novaiorquinos quando olharam para cima e viram a destruição. “Para mim, como artista, é importante ver sempre a oportunidade em algo, em vez de viver no medo. Por isso me questiono 'porque faço música?', 'porque faço filmes, porquê?'.”
Eles, quem atacou, querem isto: “Que vivamos no medo, para termos medo. É uma coisa terrível para se fazer às pessoas, para as fazer ter medo de sair e eles sabem isso. Por isso, é importante resistir, mas também ouvir a sua história, o seu lado.” Ou dito de outro modo, procurando a normalidade. “Sair à rua, ir aos restaurantes, fazer coisas, coisas normais, não ter medo, tentar não ter medo, tentar abrir o coração ao que se passa, em vez de só pedir vingança” - e muda a voz, quase fantásmica, “vingança não, não, não”. Para insistir que essa “é uma terrível reação”.
O filme termina com uma “mensagem de esperança”. A voz de Lou Reed - o marido de Laurie, que morreu em 2013, e que assoma por instantes a estender-lhe a mão - canta Turning Time Around, onde se pergunta a que é que se chama amor. Laurie sorri e antecipa uma resposta: “Cada ser no presente. Este filme também é sobre o tempo. Como se vive os arrependimentos, as expectativas, como é que vivemos este momento. Para mim, Turning Time Around é sobre uma pessoa que está bem no presente, e é uma prenda para as pessoas, de quem aprecia a vida como é.”
[artigo originalmente publicado no DN em 22 de novembro de 2015]