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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Junho 19, 2020

Deus, as joaninhas, o cão lunático ou a morte do filho. Nick Cave já escreveu 100 cartas aos fãs

Miguel Marujo

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É a centésima carta – e o próprio Nick Cave assinala o facto e agradece aos leitores, aos que leem e perguntam, que lhe dirigem todo o tipo de questões desde setembro de 2018. Das mais desconcertantes ou bizarras, íntimas e poéticas, às mais banais e quotidianas. É, pois, a carta n.º 100, divulgada sexta-feira, 5 de junho de 2020, na era da pandemia.

O músico australiano, radicado no Reino Unido responde sempre de forma desassombrada e próxima. “A minha forma de manter o meu passado no seu lugar é escrever sobre ele”, escreveu uma vez. E assim acontece em The Red Hand Files, o sítio de correspondência de que se fala.

É num corpo de letra courier, uma fonte tipográfica que imita a batida de uma máquina de escrever, que Nick Cave escreve estas cartas de resposta aos fãs que lhe perguntam sobre a sua criação, a poesia ou a música, a sua vida, a morte do filho (um tema recorrente este) ou a sua fé, como o espanto de Maria Madalena e Maria diante do túmulo.

Entre os sonhos de que não se lembra, o anúncio do último álbum ou o adiamento da sua digressão por causa da pandemia da covid-19, nada parece ficar de fora destas epístolas, que retomam os temas que percorrem também o seu longo percurso criativo de 40 anos, onde o amor, a morte, o sexo e a religião se cruzam de forma quase omnipresente.

Cada uma destas cartas tem sempre a mesma assinatura de despedida, “Love, Nick”.  Como esta carta n.º 100, enviada por Hajalti, a partir da Islândia: “Hoje, a minha pergunta é pessoal: se você tivesse um anel de ouro que o seu filho herdaria um dia, o que gravaria dentro do anel? (Atualmente, estou a fazer um anel que quero que o meu filho tenha depois do meu dia [da morte]).”

A resposta serve para o anel como para os seus seguidores, os que subscrevem estas cartas. No interior do anel, Nick Cave gravaria uma frase, revela: “I am beside you.” “Estou ao teu lado.”

“Como estrangeiros flutuando num espaço profundo”

É como um gesto de amor aquele que o escritor de canções aqui ensaia, num ritmo mais ou menos semanal. Em setembro de 2018, a primeira questão de todas foi colocada pelo polaco Jakub, e relaciona de forma direta o luto com o processo criativo. Jakub recorda-lhe que em One More Time with Feeling [vídeo acima reproduzido], o documentário que acompanhou as sessões de gravação do álbum Skeleton Tree (2016), Nick admitia que tinha perdido o controlo sobre a escrita durante algum tempo e pergunta-lhe se estaria a mudar como compositor. O cantor australiano admite que sim, que durante “um ano foi difícil descobrir como escrever” – tudo tinha desmoronado, o centro da sua vida e da vida de Susie, a mulher, tinha morrido. Susie e Nick sentiam-se “uma espécie de estrangeiros flutuando num espaço profundo”.

“A boa notícia”, respondeu Cave a Jakub, é que em 2017 sentiu-se “intensamente ligado” à escrita. E acrescentou: “Algo definitivamente mudou e escrevi muitas coisas novas. Não posso dizer-te o alívio que foi. Eu estou a escrever muito mais e é algo forte e focado, na minha opinião.” Algumas destas composições — e poemas, como um que o compositor divulgou numa das cartas — dariam origem a Ghosteen, o último álbum lançado por Nick Cave (2019).

O desmoronamento na vida de Nick Cave não foi apenas o da perda física de um dos seus filhos. Aquilo que está no centro da sua vida é ainda, “no caso de um artista”, “um sentimento de espanto”. “Talvez seja o mesmo para todos”, confessa o músico. “As pessoas criativas em geral têm uma propensão aguda para a maravilha. Um grande trauma pode roubar-nos isso, a capacidade de ficar impressionado com as coisas. Tudo perde o brilho.”

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“Mudar, crescer e confundir”

Ouvindo Skeleton Tree, composto durante o seu tempo de dor, sabemos que há um espanto permanente em cada uma das suas canções, um sobressalto indizível e um arrebatamento por uma polifonia de afetos. O brilho está lá. Nick Cave revê-se nas palavras de S, uma fã que lhe escreveu de Londres, em outubro de 2018, na terceira carta, sobre o processo criativo, de que é sempre algo que se vê de forma imperfeita ou apenas pelo canto do olho.

“Eu gosto muito da sua descrição do processo criativo: ver algo imperfeito ou pelo canto do olho. É isso mesmo. Uma boa ideia de música nunca se aproxima de ti, nunca te olha nos olhos, nunca se anuncia – pelo menos não na minha experiência. Ideias líricas são tão ilusórias quanto pirilampos: eles são espíritos que voam entre as árvores. No momento em que lhes dás atenção, eles foram-se.”

Na carta n.º 99 é sobre a identidade que Cave discorre. Questionado por Max, de Hamburgo (Alemanha), sobre o que “procura pessoalmente num artista”, e interpelado por Eleanora, de Bruxelas (Bélgica), sobre se a identidade de cada um “é uma manta de retalhos de desejos, escolhas, afiliação, excentricidade”, que habitam em nós “em conflito” e de forma incoerente, Nick Cave garante que “sempre” sentiu “o horror de ser encaixotado por uma identidade e uma opinião inflexível, pois essa lealdade a uma única persona pode ser a própria morte da criatividade”.

Defendendo que o melhor será “a capacidade de abraçar ideias contraditórias ao mesmo tempo”, o músico aponta que, “para um artista, particularmente um compositor, essa capacidade de estar aberto a influenciar, descartar a persona, nos dá a liberdade de nos expressar de maneiras contrastantes”. E conclui: “Quando penso nos artistas que tiveram o maior impacto em mim, esta identidade flutuante e desordenada, e a necessidade de se reinventar, é comum à maioria deles. Acho que é isso que procuro num artista – a capacidade de mudar, crescer e confundir.”

Otis, Nosferatu e o feitiço

Nick Cave vai além do que lhe perguntam, dá notícias do que está a fazer ou do que poderá acontecer, parece deixar cair a armadura de quem desafia a natureza quando sobe a um palco. Em 2018, na segunda carta, Jenn, da cidade americana de Boston, pergunta-lhe se tem animais em casa. Dois cães, responde ele: “Um cão lunático gentil de olhos tristes e com cancro chamado Otis e um pequeno salsicha psicótico chamado Nosferatu, cujo único grande empreendimento na vida é morder-me.”

Antes de falar dos cães, Cave começa por dar uma novidade. “Enquanto escrevo isto, estou sentado num estúdio com Warren na Califórnia a trabalhar no novo disco.” E desvela um pouco do que está a acontecer: “É uma coisa estranha e maravilhosa e muito diferente do que aconteceu antes. Estamos sob o seu feitiço.” Seria o feitiço que andaria agora em digressão, não fosse a pandemia.

Foi esse feitiço que se desvendou em outubro de 2019, como tinha antecipado Cave numa outra carta divulgada neste site, dias antes. Parecia combinado: o britânico Joe perguntou-lhe diretamente: “Quando podemos esperar um novo álbum?” – e a resposta surgiu acompanhada de uma foto de Nick sentado com Warren Ellis: “Podes esperar um novo álbum na próxima semana”, dizia, referindo-se a 4 de outubro. E a seguir mostrava a capa de Ghosteen.

“Uma certa santidade nessa amizade…”

Em tempos em que as mediações tradicionais são postas em causa todos os dias, através das redes sociais – com atores e atrizes, músicos, modelos, um sem mundo de famosos e antes intocáveis a interagirem com os seus admiradores e detratores, Nick Cave surpreende-se com a reação que o site teve logo no primeiro instante. “Tenho sido inundado com perguntas. A adesão a The Red Hand Files apanhou-me completamente desprevenido. Por isso, muito obrigado a todas e a todos.”

O australiano sempre foi um magnífico contador de histórias, como provam também as suas canções (e os romances a que já deu vida) ou as prosas breves deste site. Como quando Irina, de Londres, questiona se no “bloco-notas cheio de palavras” de Nick grava peças do seu subconsciente e atreve-se a perguntar como serão os sonhos e como influenciam eles a escrita do australiano.

A resposta é desconcertante: “Assassinos cruéis sequestraram o Warren. Os sequestradores enviaram-me uma lista de exigências. Eu tive que escrever uma carta de volta concordando com essas exigências. A carta que eu estava a compor tinha exatamente o mesmo formato de uma edição do Red Hand Files, com a mesma fonte cambria de vermelho sangue, o mesmo fundo de cor creme. O problema era que eu estava a ter um problema técnico em formatar a carta. As letras continuaram a lutar. A fonte continuou a mudar. O pequeno logotipo da mão vermelha não ficava de pé. O tempo estava a esgotar-se. E eu acordei, a tremer.” Era um sonho, bem se vê, mas pelo sim pelo não Nick telefonou a Warren. “Parece-me que ele está bem.”

Warren Ellis, que foi o responsável pela direção musical de Skeleton Tree e Ghosteen, começou a colaborar com Nick Cave na gravação de Murder Ballads, e desde então tem ganho preponderância na definição do som do australiano e da sua banda. E tornou-se um amigo, concorda Cave, em resposta a vários fãs que o questionaram sobre… Ellis. “Há uma certa santidade nessa amizade, na medida em que ela atravessou todos os tipos de problemas nos últimos vinte e poucos anos, mas permanece resiliente como sempre. A nível profissional, desenvolvemos um estilo de composição baseado quase exclusivamente num tipo de intuição e improvisação espiritual que, como diz Henry Miller, parece calmo, alegre e imprudente.”

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Como soará a voz de Deus

Uma portuguesa, Rute, pergunta-lhe de Lisboa como soará a voz de Deus. Talvez seja parecida com a do australiano, sugeriu a leitora. “Espero que a voz de Deus seja algo que não é estrondosa, autoritária e masculina. Imagina que boa surpresa seria”, respondeu Nick, que disse esperar que não seja como a dele, ou de Tom Waits, nem mesmo de Morgan Freeman, o ator americano que apresentou a série Deus.

Lembrando-se de como há refrães que surgem da polifonia de várias vozes, Cave diz que pode ser essa a voz. “Talvez a voz de Deus seja a combinação de uma coleção de biliões de almas, uma assembleia dos que já partiram falando como um só, sem rancor, dominação ou divisão”, ou “um grande chamamento, em várias camadas, e que chega talvez como a voz determinada e pequena de uma criança. Sem género, pura e descomplicada, que diz ‘procura-Me, estou aqui’.”

Há uma espiritualidade que atravessa a música e a poesia de Nick Cave, já se sabe. Quando questionado sobre Deus – por um ateu, por exemplo, que lhe pede que explique a sua fé –, o australiano prolonga a resposta para lá do óbvio. “Há décadas que ando às voltas da ideia de Deus. Tem sido um lento arrastar pela periferia de Sua Majestade, com a caneta na mão, tentando escrever ao Deus vivo. Às vezes, acho que quase consigo. Quanto mais me torno disposto a abrir a minha mente para o desconhecido, a minha imaginação para o impossível e o meu coração para a noção do divino, mais Deus se torna aparente. Acho que temos aquilo que estamos dispostos a acreditar e que a nossa experiência do mundo se estende exatamente aos limites de nosso interesse e credibilidade. Estou interessado na ideia de possibilidade e incerteza. A possibilidade, pela sua própria natureza, estende-se além dos factos prováveis, e a incerteza impulsiona-nos para a frente. Eu tento encontrar o mundo com uma mente aberta e curiosa, insistindo em nada mais do que a liberdade do olhar para lá do que achamos que sabemos.”

E perante outra questão, sobre se Deus existe, a resposta dada é aquela que ouvimos nas suas canções. “Eu não tenho nenhuma evidência, mas não tenho a certeza de que essa seja a pergunta certa. Para mim, a questão é o que significa acreditar.” E acrescenta: “Acho impossível não acreditar, ou pelo menos não estar envolvido na procura disso, o que de certa forma é a mesma coisa. A minha vida é dominada pela noção de Deus, seja a Sua presença ou ausência. Eu sou um crente – na presença de Deus e na Sua ausência. Acredito na procura em si, mais do que no resultado dessa procura. Como extensão dessa crença, as minhas músicas são perguntas, raramente respostas.”

“Vemos joaninhas em todos os lugares”

Foi com um primeiro texto em que falou explicitamente da morte do filho que estes Red Hand Files se projetaram no espaço mediático. A americana Cynthia conta-lhe que experimentou a morte do pai, da irmã e de seu primeiro amor nos últimos anos e que sente que, “de algum modo, mantém a comunicação com eles através de sonhos”. E Nick e Susie vivem o mesmo?, pergunta-lhe então.

“Sinto a presença do meu filho, por todo o lado”, diz-lhe Nick Cave. “Parece-me que se amamos, sofremos. É esse o pacto. O amor e o luto estarão para sempre ligados”, escreve o músico. “O luto é o lembrete terrível das profundezas do nosso amor e, tal como este, não é negociável.”

A dor, conta-nos ainda, “ocupa o núcleo do nosso ser e estende-se dos nossos dedos até aos limites do universo. Dentro dessa volta existem todo o tipo de loucuras: fantasmas, espíritos, sonhos, tudo o que na nossa angústia desejarmos existir.”

A morte regressa vezes sem conta – a do filho. Como noutra carta em que lhe perguntam se acredita em sinais. A resposta é uma quase parábola.

“Dois dias depois de o nosso filho ter morrido, Susie e eu fomos à falésia onde ele caiu”, contou. “Quando Arthur era criança, ele falava de joaninhas e besouros. Ele amava-os, desenhava-os e identificava-se com eles. Falava constantemente sobre eles. E enquanto nos sentávamos ali, uma joaninha pousou na mão de Susie. Nós dois vimos, mas não dissemos nada, porque, embora reconhecêssemos o triste significado disto, não estávamos prontos a menosprezar a enormidade da tragédia com alguma exibição sentimental de um pensamento mágico. Mas éramos novos nisto do luto. Não tínhamos consciência dos apetites particulares da dor. Quando voltámos para casa, e eu estava a abrir a porta da nossa casa, outra joaninha pousou na minha mão. Desde então, Susie e eu vemos joaninhas em todos os lugares. Quando Warren e eu estávamos a trabalhar no último álbum, uma praga de joaninhas entrou no estúdio. Não sei o que pensar deste fenómeno, mas cada vez que vejo uma joaninha, recebo uma espécie de choque de que talvez algo esteja em jogo no mundo que está para lá da minha compreensão, mesmo que seja, com toda a probabilidade, apenas a estação das joaninhas.”

De tudo isto, Nick Cave responde com dúvidas que sempre o apoquentam. “Se eu acredito em sinais? Bem, prefiro dizer que assumi, por razões de sobrevivência, um compromisso com a natureza incerta do mundo. É aqui que o meu coração está. E suspeito que é onde sempre esteve.”

[Este texto foi publicado originalmente no jornal Sete Margens, a 11 de junho de 2020, e retoma partes substantivas de um anterior artigo, escrito em dezembro de 2018, entretanto revisto, editado e muito aumentado. As fotos são retiradas do site The Red Hand Files.]