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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Maio 21, 2020

rãs, chuva, trovoada — por entre as ruínas

Miguel Marujo

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Gosto de álbuns onde os sons dos dias e das noites entram de rompante, uma porta que bate, passos que se ouvem, aves que se metem à janela, animais que se fazem notar, a chuva que cai, um sino a repique, miúdos que brincam, pessoas que falam, e podia continuar à medida que salto dos Pink Floyd de Ummagumma, para Virginia Astley, sobretudo em From Gardens Where We Feel Secure, ou a Sétima Legião em A Um Deus Desconhecido, até Nuno Canavarro de Plux Quba — Música para 70 serpentes

Já estou a divagar. Gosto de álbuns que também nos metem a vida dentro. E Ruins é um desses discos. À época, estávamos em 2014, Vítor Belanciano escreveu no Ípsilon um texto admirável que me fez ir ouvir a obra de Grouper, imaginada e composta na costa de Aljezur, e na primeira audição (de muitas, que se repetiram) descobri as vozes que Liz Harris, que dá pelo nome de Grouper, respigou da natureza na sua residência artística na Costa Vicentina, com rãs, chuva a cair, o restolho do campo e da praia, e aquela trovoada que se imagina de chumbo.

Nestes tempos fechados sobre nós próprios, como Liz e o seu piano, voltei de novo a Ruins, para melhor perceber como podemos construir esta nossa casa. "I hear you calling and I wanna go/ Run straight into the valleys of your arms", ouve-se na voz tímida. A vida toda aqui dentro.

[foto de Tanja Engelberts]

Maio 06, 2020

Coliseu dos Recreios, estação de energia

Miguel Marujo

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Na morte de Florian Schneider (1947-2020), fundador dos Kraftwerk, recupero um texto sobre a passagem dos alemães por Lisboa, em 2015, apesar de Florian já não estar no palco.

 

Há um disco voador que aterra no Rossio lisboeta, depois de ter sobrevoado o Coliseu dos Recreios ali perto, provocando o espanto dos muitos que esgotam a sala de espetáculos. Como num filme dentro do filme, o público de óculos 3D postos acompanha a viagem que os Kraftwerk trazem do seu espaço para Lisboa, na primeira apresentação em Portugal do seu concerto em três dimensões (que repete esta segunda-feira na Casa da Música, no Porto).

O tempo do quarteto alemão é deste tempo, feito de sinais que todos identificam - e a média de idades do público é de quem foi acompanhando o trabalho dos Kraftwerk - mas num registo clássico: o computador de Computer World é um Atari; em Autobahn, o Mercedes Benz é de 1974, como o "carocha" e a carrinha "pão de forma" da Volkswagen; as modelos de The Models saíram de um catálogo de moda dos anos 1950; e mesmo a nave espacial de Spacelab parece saída do Caminho das Estrelas.

A energia nuclear continua a ser uma preocupação na (rara) agenda política da música dos Kraftwerk: Chernobyl já faz parte da letra de Radio Activity há muito, mas a voz de Ralf Hütter agora acrescenta Fukushima a Hiroxima, Sellafield e Harrisburg. Os medos dos anos 1970 não desapareceram, reciclaram-se.

O Coliseu transforma-se numa contínua barragem minimalista de sons em movimento e de imagens sonoras, com os músicos aparentemente reduzidos a mera figuração de uma projeção maior, quase sem se mexerem e vestidos de fatos que são reflexo das formas e luzes que saltam do ecrã. Só que os quatro artesãos das máquinas magnetizam os corpos da multidão presente na sala, mostrando à saciedade que a pop electrónica bebe nesta fonte criada na Alemanha dos anos 70, permanecendo em forma mais de 40 anos depois.

A estação de energia que é a música dos Kraftwerk alimenta-se dos sentidos - e na vertigem das descidas e dos sprints dos ciclistas que alimentam as imagens dos vários temas apresentados de Tour de France Soundtracks (o último álbum de originais, de 2003), o corpo do público parece acompanhar o movimento em cima das bicicletas, uma dança magnética, que se insinua a cada síncope e a cada aceleração de ritmo. Antes do encoreTrans Europe Express retoma as linhas melódicas dos homens-máquina que anteciparam o techno ou o hip-hop.

Cai o pano, literalmente uma cortina que se fecha como se de um filme se tratasse (e não falta a referência ao "estúdio" de realização do que acabou de se ver), para se voltar a abrir para a representação de quatro bonecos mecânicos, The Robots, a máquina sozinha em palco.

Depois de nova pausa, para retirar os robôs de cena, Ralf Hütter, Fritz Hilpert, Henning Schmitz e Falk Grieffenhagen regressam para uma celebração final dos corpos em movimento: Aero DynamicPlanet of Visions (o tema que compuseram para a Expo 2000) e a tríade sagrada de Boing Boom TschakTechno Pop e Musique Non Stop. É com estas palavras que, um a um, os artesãos dos Kraftwerk vão deixando o palco, sob um manto de aplausos. A música não para, a estação de energia continua em funcionamento. Magnético concerto, este, no ano 2015 da era atómica.

[originalmente publicado no DN em 20 de abril de 2015]