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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Março 23, 2020

— música para estes tempos incertos (breves registos)

Miguel Marujo

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Senhora de uma voz peculiar, entre o sussurro e a garra que se colam à vez a guitarras viscerais, que a acompanham desde os Throwing Muses (que nos prometem um novo disco, já com canção nova, para maio próximo), Kristin Hersh é um porto seguro para acostar nestes tempos incertos. 

Crooked, o seu último trabalho, é de 20 de setembro de 2018, e recupera uma primeira edição de um livro multimédia de 2009. E, antes, tínhamos tido Possible Dust Clouds (em 5 de outubro de 2017) e foi neste disco que tropeçámos ao sétimo dia de "quarentena social" — e a partir dele voltámos a navegar nestas águas turbulentas mas também envolventes. Ouça-se, por exemplo, o espanto dialogado de violoncelo e guitarra de Flooding, em Crooked, com uma extraordinária interpretação vocal de Kristin.

Com uma já longa carreira a solo (desde Hips and Makers, de 1994, um breve tratado de excelentes canções), que se traduz em 11 álbuns, Kristin respira cada sílaba, pontuada por riffs e cordas dedilhadas de forma assertiva, como as que nos canta em Breathe In, do álbum de 2017: "Breathe in/ 'Cause breathing is what you do/ You're rawer than you were/ You punctured your cocoon." Respiremos, pois.

[foto: James O'Keefe/Wikimedia Commons]

Março 07, 2020

São Pessoas. Histórias com gente dentro

Miguel Marujo

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Há um tanque de lavar roupa. Há uma cozinha. Há o poço e as mãos que lançam um balde. Há uma sombra que foge. Há o poste de eletricidade que ilumina as casas frágeis. Há o quadro pendurado em que um coração pede “Deus te ajude”. Há a campa e a eterna saudade. E há uns tapetes gastos. Em cada uma destas fotos só se adivinham os rostos, os olhos, as rugas, as mãos rugosas, as bocas, as pessoas que habitam estes lugares.

Este é um livro de lugares habitados, um livro cheio de pessoas, mesmo nas páginas em que apenas adivinhamos a presença dessas pessoas. Por vezes, há legendas que nos ajudam, como naquela página de um quarto que se adivinha desconfortável. “Às 8:30 recebo o RSI e às 9 pago o quarto. Fico logo sem dinheiro para o resto do mês.”

São Pessoas, assim se chama a proposta dos fotógrafos Adriano Miranda e Paulo Pimenta, jornalistas do Público, que regista em livro a exposição que esteve no Porto (e seguirá para outros lugares) e nos transporta para o quotidiano de Monteiro, Tiago, Francisco, Maria, Bento, Isabel, Arlinda, Laurinda, Ângela, Conceição, Neide, Higínio, Bráulio, Natália, Sara, Ismael – e outros 27 nomes, pessoas concretas com nome.

Os autores retratam um Portugal que resiste na pobreza e sobrevive numa luta diária. “Sabes o que é abrir o frigorífico e não ter nada lá dentro? Não sair de casa porque não tenho dinheiro para um café? Ir ao supermercado comprar um litro de leite e um pão, pois não tenho dinheiro para mais?”, questiona-se uma destas pessoas.

Num dos textos que acompanha as imagens, o também jornalista Camilo Soldado situa o tempo e o modo do projeto de Adriano Miranda e Paulo Pimenta. “O dito país profundo, que começa à porta dessas mesmas cidades, encolheu, viu sair serviços e vê sumir gentes, sem que pareça haver solução para tão estranho problema em tão pequeno país. Se o pior parece já ter passado, sabemos também que dificilmente vamos recuperar o que perdemos naqueles turvos anos.”

O país que se turvou é o dos anos da troika. Sobraram vidas perdidas, destroçadas, agarradas a uma pobreza resiliente, que resiste a uma economia melhor, gente que “não conseguiu voltar a levantar-se” ou que “nunca conheceu outra vida que não de privação”, como descreve Camilo Soldado. É esta privação que se prova neste livro, que serve “para dar força a todos esses rostos através da fotografia de alguns, para os resgatar da sombra para onde foram empurrados e para nos lembrarmos de que o caminho a percorrer ainda é longo, neste país de 10 milhões com mais de 2 milhões de pobres dentro”.

Adriano Miranda e Paulo Pimenta trazem-nos estas pessoas, numa composição espantosa que resgata a fotografia como um poderoso olhar para este país e as suas gentes. São pessoas, pois. E estas histórias merecem ser vistas.

São Pessoas
Autores: Adriano Miranda e Paulo Pimenta

160 páginas; o livro inclui códigos QR para aceder aos ficheiros áudio e vídeo com os testemunhos
saopessoas2020@gmail.com

[publicado originalmente no jornal online Sete Margens, em 17 de fevereiro de 2020; Foto © São Pessoas, Maria Graça Afonso. Foto © Adriano Miranda, cedida pelo autor ao Sete Margens]