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Há um tanque de lavar roupa. Há uma cozinha. Há o poço e as mãos que lançam um balde. Há uma sombra que foge. Há o poste de eletricidade que ilumina as casas frágeis. Há o quadro pendurado em que um coração pede “Deus te ajude”. Há a campa e a eterna saudade. E há uns tapetes gastos. Em cada uma destas fotos só se adivinham os rostos, os olhos, as rugas, as mãos rugosas, as bocas, as pessoas que habitam estes lugares.
Este é um livro de lugares habitados, um livro cheio de pessoas, mesmo nas páginas em que apenas adivinhamos a presença dessas pessoas. Por vezes, há legendas que nos ajudam, como naquela página de um quarto que se adivinha desconfortável. “Às 8:30 recebo o RSI e às 9 pago o quarto. Fico logo sem dinheiro para o resto do mês.”
São Pessoas, assim se chama a proposta dos fotógrafos Adriano Miranda e Paulo Pimenta, jornalistas do Público, que regista em livro a exposição que esteve no Porto (e seguirá para outros lugares) e nos transporta para o quotidiano de Monteiro, Tiago, Francisco, Maria, Bento, Isabel, Arlinda, Laurinda, Ângela, Conceição, Neide, Higínio, Bráulio, Natália, Sara, Ismael – e outros 27 nomes, pessoas concretas com nome.
Os autores retratam um Portugal que resiste na pobreza e sobrevive numa luta diária. “Sabes o que é abrir o frigorífico e não ter nada lá dentro? Não sair de casa porque não tenho dinheiro para um café? Ir ao supermercado comprar um litro de leite e um pão, pois não tenho dinheiro para mais?”, questiona-se uma destas pessoas.
Num dos textos que acompanha as imagens, o também jornalista Camilo Soldado situa o tempo e o modo do projeto de Adriano Miranda e Paulo Pimenta. “O dito país profundo, que começa à porta dessas mesmas cidades, encolheu, viu sair serviços e vê sumir gentes, sem que pareça haver solução para tão estranho problema em tão pequeno país. Se o pior parece já ter passado, sabemos também que dificilmente vamos recuperar o que perdemos naqueles turvos anos.”
O país que se turvou é o dos anos da troika. Sobraram vidas perdidas, destroçadas, agarradas a uma pobreza resiliente, que resiste a uma economia melhor, gente que “não conseguiu voltar a levantar-se” ou que “nunca conheceu outra vida que não de privação”, como descreve Camilo Soldado. É esta privação que se prova neste livro, que serve “para dar força a todos esses rostos através da fotografia de alguns, para os resgatar da sombra para onde foram empurrados e para nos lembrarmos de que o caminho a percorrer ainda é longo, neste país de 10 milhões com mais de 2 milhões de pobres dentro”.
Adriano Miranda e Paulo Pimenta trazem-nos estas pessoas, numa composição espantosa que resgata a fotografia como um poderoso olhar para este país e as suas gentes. São pessoas, pois. E estas histórias merecem ser vistas.
São Pessoas
Autores: Adriano Miranda e Paulo Pimenta
160 páginas; o livro inclui códigos QR para aceder aos ficheiros áudio e vídeo com os testemunhos
saopessoas2020@gmail.com
[publicado originalmente no jornal online Sete Margens, em 17 de fevereiro de 2020; Foto © São Pessoas, Maria Graça Afonso. Foto © Adriano Miranda, cedida pelo autor ao Sete Margens]