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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Janeiro 04, 2020

A casa que perdeu o chão

Miguel Marujo

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É uma casa que já perdeu o chão. O mar veio e galgou areias e pedras e a casa lá ficou, suspensa no ar, inclinada enquanto resiste à queda definitiva. Quem ali vivia já desistiu mas há alguns que resistem, em casas nas dunas, algumas de pescadores - que esses são cada vez menos e a faina já não rende - outras de habitação de veraneio, do tempo em que se permitiam todos os devaneios. E há restaurantes na beira da estrada mas o mar já se abeira deles em dias alterados.

Chega-se à casa sem chão na praia da Apúlia e no horizonte a norte, em direção a Esposende, há mais casas com o mar a fustigar as dunas que são os seus alicerces. Anda por ali muita gente, uns políticos de Lisboa vieram ver o que se passa naquela língua de areia que se prolonga até à restinga da foz do Cávado e, sem que ninguém lhes pergunte, falam das alterações climáticas. Aquela gente que vê o mar vir para terra não lê certamente ensaios falhados de antigos humoristas encartados no ceticismo militante contra estas mudanças, mesmo que na hora de defender os seus argumentos garanta - a pés juntos, como se o chão não lhes fugisse - que o mar não avança.

Todos têm uma ideia de como resolver a coisa, entre o sonho de repetir os diques que impedem o oceano de avançar nos Países Baixos aos homens que já se resignaram à força do mar. "Vamos ter de desocupar o litoral", dizia um, antecipando o pior dos cenários. "Se o essencial for retirar da costa, que se retire da costa", disse outro. "A comunidade científica mundial diz que o melhor é retirar, gaste-se a proteger bens e pessoas", completou. Outro deixou um pedido angustiado. "Façam qualquer coisa para defender a costa e não venham para cima dos desgraçados." Um dos políticos concluiu salomonicamente que "contrariar as alterações climáticas é como travar o vento com as mãos" mas as populações também não podem ser deslocalizadas. A casa sem chão já mostrou que o mar quer ter uma palavra.

[artigo originalmente publicado no DN/1864, em 12 de março de 2019; foto MM, na Apúlia, em 18 de fevereiro de 2019]

Janeiro 03, 2020

Às malvas com as convenções

Miguel Marujo

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Quando Salvatore recebe a notícia da morte de Alfredo, o projecionista do pequeno cinema da sua aldeia natal, a sua vida passa-nos no grande ecrã: desde os tempos da infância, quando o pequeno Totó, como chamavam a Salvatore, se apaixonou pela magia do cinema, à adolescência em que se enamora de Elena. Mas a melhor síntese da sua vida está num pequeno filme que Alfredo lhe deixou e que não é mais do que uma extraordinária montagem de cenas cortadas dos filmes que eram exibidos no Cinema Paradiso e o padre mandava censurar ao som de um sino.

São beijos e beijos e beijos, e alguns nus, que não passavam no crivo do senhor de batina. É um dos mais belos hinos à história do cinema - e ao beijo!

Às malvas com as convenções, quando aqueles beijos se mostram naquelas películas enxertadas. O cinema sempre nos deu um beijo chamado desejo: quando nos lembramos de Burt Lancaster e Deborah Kerr, deitados na praia, em From Here to Eternity; quando o Homem-Aranha de cabeça para baixo beija Mary Jane; ou quando a misteriosa Rita toca nos lábios da inocente Betty em Mulholland Drive; e ficávamos aqui a ocupar páginas e páginas com exemplos destes. É esse também o sonho do cinema.

Há tratados sobre isto, páginas de filosofia, o beijo contado ao longo da história, fotografias, pinturas, livros, mas nada nos prepara para o momento em que mandamos um recado à professora da nossa filha e ela nos explica o que devemos escrever. "E depois terminas com beijinhos." Não, filha, não se mandam beijinhos à professora. Talvez no cinema.

[texto originalmente publicado no DN/1864, em 16 de abril de 2019]