Dezembro 26, 2019
Uma zona morta. Como uma série de TV fez crescer um turismo de risco
Miguel Marujo
Em finais de abril de 1986, os céus da Europa cobriram-se de pequenas partículas poeirentas e radioativas. Na central nuclear sueca de Forsmark, os trabalhadores notaram a acumulação dessas pequenas partículas nas suas roupas e lançaram o alerta para eventuais fugas no local - mas a fonte do mal estava a 1100 km, em Chernobyl, uma central nuclear na cidade de Pripyat, na Ucrânia, então uma república soviética.
Hoje, 33 anos depois, Chernobyl é o que os ucranianos chamam de "uma zona morta", mas é também uma excelente série de televisão (com uma banda sonora a condizer na qualidade), que relata aqueles dias que carregaram mais medo e terror na atmosfera de uma Europa rasgada a meio.
A série, uma produção da HBO, conta uma história conhecida: na noite de 25 para 26 de abril de 1986, um teste de segurança correu mal e o reator nuclear n.º 4 explodiu - era 1.23 da manhã. É por aqui que começa a série, por aquela onda que se propaga, um incêndio que se instala, e as pessoas ao longe que despertam nas suas casas e saem à rua, homens, mulheres e crianças a verem ao longe as tonalidades hipnóticas que se desenham vindas da central. E as tais partículas que enchem o ar, como se fossem pequenos flocos de neve, quando na verdade eram confetis de morte.
Gente como nós
É este rigor estético - sublinhado pelos cenários, guarda-roupa e os espaços físicos quase ascéticos e asséticos -, que prende o olhar do telespectador desde o primeiro instante, somado a uma tensão de quem descobre os bastidores e pormenores deste acidente.
O realizador Johan Renck (autor de outra minissérie, Os Últimos Panteras, ou dos telediscos de David Bowie, Lazarus e Blackstar) faz-se acompanhar de um elenco que inclui Jared Harris, Stellan Skarsgård, Emily Watson e Jessie Buckley, para nos contarem uma tragédia tantas vezes dita, mas tão pouco conhecida. Se conhecemos a história, a série reaviva a memória e conta-nos mais, mostra-nos o dia-a-dia de gente como nós, que trabalhavam e iam para a escola todos os dias sem desconfiar que viviam encostados a uma potencial "zona de morte".
"Um mundo justo é um mundo são e não há nada são em Chernobyl", diz-nos a voz que nos introduz na série, a de Valery Legasov (Jared Harris), cientista russo, que chefiou a comissão de inquérito ao acidente, e se suicidou dois anos depois do acidente, na véspera de publicar os resultados do inquérito.
Paradoxo: sem nada saudável em Chernobyl, como nos avisa Legasov, o sucesso desta minissérie fez disparar o turismo nesta "zona morta", uma fantasmagórica cidade de Pripyat, que foi evacuada 36 horas depois do acidente. E na série, há um rapaz que vê um homem a vomitar num relvado, enquanto um soldado de máscara manda seguir um dos muitos autocarros que transportaram cerca de 49 mil pessoas para fora de um perímetro de dez quilómetros.
Em duas reportagens fotográficas, uma da Reuters publicada no dia 4 [de junho], e outra da agência EPA partilhada este sábado [8 de junho], veem-se visitantes a passearem pela cidade abandonada de Pripyat: como qualquer turista destes dias, há uma mulher que tira uma selfie junto a um autocarro abandonado e outras duas que se fotografam numa ponte (talvez a "ponte da morte" que se vê no primeiro episódio da série), há um homem que observa um camião e pneus deixados para trás, há quem se passeie por prédios que o tempo tratou de ir degradando ou quem fotografe um pequeno dosímetro, que regista os valores de radiação, e uma sala destruída de um jardim-de-infância.