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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Dezembro 18, 2018

Este outono que se ouve no feminino

Miguel Marujo

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Há novos álbuns no feminino que nos apontam três direções substantivamente diferentes mas dos quais retiramos idêntico prazer no posto de escuta. O outono ganha mais calor com as novas edições de Marianne Faithfull, Cat Power e Julia Holter. Abrimos o apetite.

 

Marianne Faithfull. Coração aberto na mesa de operações

Ainda miúda, com 17 anos, Marianne Faithfull revelou que seria mais fã dos Beatles do que dos Stones, um Benfica-Porto como tantos com que a música anglo-saxónica gosta de alimentar os nossos ouvidos. Ao 21.º álbum, com 71 anos, Marianne parece desdizer aquilo que confessava em 1964, ano em que cantou uma canção de Mick Jagger e Keith Richards, As Tear Go By, que a projetou para a fama e para a carreira.

Basta ouvir As Tear Go By, de novo, agora na sua voz envelhecida, rouca e sofrida. "Este é o disco mais honesto que já fiz. É uma cirurgia de coração aberto, querido", confidenciou à jornalista do Guardian, em setembro passado, no seu apartamento de Paris.

 

A voz rugosa de Marianne que ouvimos em Negative Capability, assim se chama este álbum, apresenta-nos uma viagem que nos fala de dor, tristeza e solidão, como aquela perda imensa que perscrutamos nos últimos álbuns de Johnny Cash, mas também de forma nítida noutro man in black que canta com Marianne neste disco: Nick Cave. (E também há Warren Ellis, o homem que ajuda a dar textura às sombras de Cave em Skeleton Tree, que produz este disco com Rod Ellis, parceiro de PJ Harvey, e Head.)

Se o single que nos trouxe este longa duração, The Gypsy Faerie Queen, com Nick Cave na segunda voz, era já um excelente cartão de visita para o que agora nos é revelado (com toques muito próximos do cancioneiro do australiano), há canções que não enganam o envelhecimento, num diálogo pessoalíssimo sobre solidão e amor, como admitiu na entrevista ao jornal britânico. A canção de abertura, Misunderstanding, diz-nos isso mesmo: "Then you find yourself alone/ No explanation you can give... such a shame, no way to live."

Podemos voltar a As Tears Go By, nos versos que nos falam do ocaso do dia, e ver como aos 71 anos esta canção é diferente daquela que lhe ouvimos com 17: "It is the evening of the day/ I sit and watch the children play/ Doing things I used to do/ They think are new/ I sit and watch as tears go by". O coração está aberto na mesa de operações.

Marianne Faithfull, Negative Capability (Panta Rei)

 

Cat Power. Bendita nega

A americana Cat Power também abriu o seu coração em Wanderer, um disco em que Chan Marshall, o seu nome de batismo, respira serenidade em cada poro e a cada sopro, seis anos depois de Sun. Este disco nasceu de uma nega: a sua editora de há muito, a Matador, não gostou do que Cat lhes mostrou e recusou a sua edição. E também nasceu de uma revelação: Chan descobriu-se com uma doença, logo depois da edição de Sun, e logo depois ficou grávida.

Era impossível que este álbum fosse indiferente a estes acontecimentos tão antagónicos - e não é. Wanderer é terno, seduz pela voz, que ganha uma centralidade que não havia na pop que flirtava com a eletrónica no disco anterior.

Para ajudar mais ainda, outra femme terrible, Lana del Rey (que este ano já nos trouxe dois temas num registo muito seu) junta-se a Cat Power no excelente dueto que é Woman, um manifesto pessoal e libertador - e que se tornou um grande sucesso a fazer roer de inveja os executivos da Matador. E há também Stay, uma versão do tema de Rihanna que se despe para só contar a voz de Cat. Na medida exata, como é todo o álbum.

Cat Power, Wanderer (Domino Records)

 

Julia Holter. Estranha-se e entranha-se

Quem for ouvir Aviary à espera de algo como Sea Calls Me Home ou Feel You, canções maiores que nos apresentaram Have You in My Wilderness, de 2015, desengane-se: três anos depois, Julia Holter eleva a sua pop, que se equilibrava até aqui entre o lo-fi e a eletrónica, a um experimentalismo que pede uma audição atenta e demorada. Sem concessões.

Turn The Light On, o tema de abertura, é um excelente exemplo de como este é um disco a pedir tempo: há uma voz que plana por cima de sons que se prolongam, há fragmentos que se interrompem, procuram outras direções.

É impossível, nesses fragmentos, não ouvir ecos de Kate Bush ou Tori Amos, mas também a magia de Julianna Barwick e, sobretudo, uma voz a arriscar algumas amplitudes polifónicas de Meredith Monk. Arrisque-se o cliché: primeiro estranha-se, depois entranha-se.

Julia Holter, Aviary (Domino Records)
[Publicado originalmente no DN, em 23 de novembro de 2018]

Dezembro 17, 2018

Uma festa verdadeiramente dionisíaca

Miguel Marujo

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O regresso dos Dead Can Dance faz-se da forma dionisíaca a que nos habituaram Brendan Perry e Lisa Gerrard, por entre ritmos encantatórios, percussões hipnóticas e a beleza de sons recolhidos na Natureza.

Neste seu nono álbum de estúdio, Dionysus, o primeiro em seis anos desde Anastasis, os australianos voltam a transportar-nos por entre experiências folclóricas, onde ouvimos o mistério das vozes búlgaras, o transe lânguido oriental ou um canto que nos remete para polifonias corsas.

A sua sonoridade continua a fazer a ponte entre a antiguidade e a modernidade sem qualquer dificuldade - e que já há muito reconhecemos na obra dos Dead Can Dance, sobretudo desde os espantosos The Serpent's Egg (1988) e Aion (1990).

Dionysus, que mostra na capa uma máscara nativa mexicana, divide-se em dois "atos" e sete "movimentos". Há uma solenidade na sua música que já arriscou mais, ao longo de um percurso de 37 anos (Brendan e Lisa juntaram-se em Melbourne em 1981), mas este Dionysus, que parte dos mitos do deus grego Dionísio, mantém intactas a aura misteriosa e a voluptuosidade com que o dueto vai desenhando as suas composições, como se ouve em Dance of the Bacchantes ou The Moutain.

Convocados os espíritos (o álbum foi lançado a 2 de novembro), os sete temas de Dionysus incorporam sons de colmeias da Nova Zelândia, o chamamento de pássaros de florestas da América Latina ou de um pastor dos Alpes suíços e do seu rebanho, passeiam-se por entre berimbaus brasileiros, flautas aztecas ou as cordas de uma gadulka búlgara e de uma balalaica russa.

Na sublime The Invocation, por entre ritmos que remetem para haréns de impérios otomanos ou persas, Gerrard é acompanhada pelas cantoras búlgaras (que também se fazem ouvir noutros temas), com quem tem andado em digressão - depois da edição de BooCheeMish, álbum do grupo Le Mystère Des Voix Bulgares com Lisa, num mantra de dafs iranianos ou tambores davul turcos.

Toda esta amálgama de ritmos pode deixar o ouvinte mais desatento de pé atrás, mas nestes quase 40 anos de percurso (e que Lisboa poderá comprovar em dois concertos já esgotados em maio de 2019), a maestria dos Dead Can Dance tem sido exatamente a de construir um som que se revela coerente, equilibrado, grandioso, eloquente e sempre misterioso. A transcendência mora aqui.

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[Publicado originalmente no DN, em 18 de novembro de 2018]

Dezembro 14, 2018

Seis discos do frio que ainda vamos a tempo de ouvir

Miguel Marujo

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Com uma primavera que andou frouxa e um verão que se viveu entre o tímido e o calor mais fogoso, podemos sempre olhar para a primeira metade do ano e recuperar música desses dias mais frios, que nos pode ajudar a ultrapassar a indecisão dos elementos, a canícula e o nevoeiro, o vento frio ou as chuvas que irrompem entre o sol.

Recuperamos seis discos do inverno e da primavera, todos já editados em 2018, para melhor nos refrescar nestes dias de calor. A ordem é estritamente aleatória, a música é para todos os sentidos e gostos.

 

Beach House, 7

Ao sétimo álbum de originais, Victoria Legrand e Alex Scally limitaram-se a nomeá-lo como 7. Mas não há qualquer crise de criatividade numa obra que ousa seguir novas direções no desenho das composições dos Beach House. Depois dos álbuns editados em 2015, Depression Cherry e Thank Your Lucky Stars, e de uma compilação de lados B no ano passado, este 7 enuncia logo nos primeiros acordes a vontade de mudar, onde só aparentemente se resiste à mudança. Entranha-se de tão viciante.

Bella Union, 17,90€ (CD), 27,90€ (LP)

 

Ash, Islands

Cinco anos depois de um regresso que já parecia improvável, os Ash regressam à casa onde se sentem mais à vontade para se divertirem com muitas malhas, na fórmula clássica de guitarra, baixo e bateria, numa linguagem que lhes valeu um culto relativo lá para as Ilhas Britânicas, incluindo a sua Irlanda do Norte natal. Com este Islands há muita adrenalina, que nos fazem bater o pé, como se voltássemos a dias de juventude, e há canções, como It's a Trap ou Incoming Waves, que apetecem ouvir em repeat — mas não é por aqui que viajaremos para o futuro.

Infectious/BMG, 14,30€ (CD)

 

Eels, The Deconstruction

De um dos autores mais desconcertantes nas poesias que canta e autor do sucesso improvável de Shrek, com My Beloved Monster, Mr. E. (senha para Mark Oliver Everett) volta a imprimir o seu cunho muito próprio neste The Deconstruction. Basta ouvir os primeiros versos do tema-título ("The deconstruction has begun/ Time for me to fall apart/ And if you think that it was rough/ I tell you nothing changes/ Till you start to break it down"), ou logo depois Bone Dry, onde E. canta candidamente "Bone dry/ You drank all the blood/ My heart is bone dry/ Can't give you more 'cause you took all of it", rematado com um Sha la la absolutamente desarmante. Como desconcertante é este álbum dos Eels, pintado de pequenas pérolas, como Sweet Scorched Earth e In Our Cathedral.

E Works Records, 14,95€ (CD), 35,10 (2LP)

 

TIPO, Novas Ocupações

O tipo que se esconde atrás deste projeto é Salvador Menezes, que já conhecíamos dos You Can't Win Charlie Brown — e isso já é um ótimo cartão-de-visita. Português de Lisboa, TIPO (grafa-se em maiúsculas) arrasta-nos com este Novas Ocupações para um delicioso torpor melancólico que pede uma cerveja ao fim de tarde, enquanto nos canta um "deixa a mama e tenta". Salvador deixou-se pois, tentou e conseguiu, neste disco produzido com Benjamim (que parece ter um toque de Midas em tudo o que faz) e Afonso Cabral, companheiro na aventura dos You Can't Win... Fazem o nosso tipo estas dez canções.

Pataca Discos, 12,60€ (CD)

 

The Breeders, All Nerve

É tudo nervo neste quinto álbum em 28 anos das manas Deal, que assinam para já um dos melhores álbuns rock do ano. Kim e Kelley juntaram-se a velhos colegas de estúdio e estrada para assinar All Nerve, um regresso que bebe na melhor fonte da inspiração: os próprios Breeders. Em fórmula que ganhou no passado não se mexe no presente, e se, por isso mesmo, tudo nos parece soar a algo que já foi ouvido, há também uma sensação de frescura que se renova a cada faixa, com a maturidade de quem toca e canta há muito. Obrigatórias estas 11 novas canções.

4AD, 13,90€ (CD)

 

Car Seat Headrest, Twin Fantasy

É um projeto inusitado este com que Will Toledo nos presenteou em 2018. Pegando num álbum de 2011, gravado ainda a solo e então disponibilizado na sua página do Bandcamp, o rosto dos Car Seat Headrest voltou às canções de Twin Fantasy para as reler com a companhia de uma banda. Este duplo álbum é a frente e o verso (de um lado Mirror to Mirror, de 2011, do outro, Face to Face) de um músico cheio de talento e ambição, que não receou baralhar e dar de novo canções escritas ainda na sua adolescência. Com uma maturidade a toda a prova.

Matador Records, 19,90€ (2CD), 31,90€ (2LP)


Publicado originalmente no DN, em 13 de setembro de 2018, com o título "Seis discos do frio que ainda vamos a tempo de ouvir no verão"