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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Maio 04, 2018

A paixão nem sempre salva a música

Miguel Marujo

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Ao terceiro álbum em nome próprio, Jack White dispara em várias direções, procura um som que seja seu, e deixa o ouvinte à procura do que significa este Boarding House Reach. "Hear me out, it ain't easy but I'll try to explain", canta-nos ele em Ice Station Zebra. "Como artista, o teu trabalho não é seguir o caminho mais fácil", defende-se o americano. Já percebemos.

Este texto também se podia escrever com as palavras que acompanham as 13 canções do álbum, já nas lojas. Jack deixa nestes 44 minutos pistas sobre o processo de criação e sobre a sua aprendizagem. "When I was young/ I went to an abandoned house/ In one of the rooms/ I found an old piano/ I didn't know how to play piano/ So I just fumbled across the keys/ Pressed the pedals down/ I sat there for hours/ Trying to understand how to/ Construct a melody", conta-nos ele em Get In The Mind Shaft. Na versão vinil, este poema altera-se para um passeio à beira-rio, em que "I've been walking down by the river/ For hours/ Past sailors, that house/ Less tattoos than the average teenager".

É um jogo que nos leva a recuperar outra das suas declarações ao jornal britânico The Guardian, em março, no qual confessa que se estivéssemos em 1999 e lhe perguntassem o que pensava da música digital, teria de dizer: "É o que todos os outros estão a fazer? Então eu não gosto. Se o mundo evoluísse para o analógico, então eu adoraria o digital." É do contra, e é aqui que se defende. "Como artista, o teu trabalho não é seguir o caminho mais fácil. Eu quero manter-me ligado quando ouço um artista a falar: eu quero mostrar-lhes algo que mais ninguém está a fazer."

Entre o rock que nos leva aos seus White Stripes, um inesperado rap em Ice Station Zebra, toques de country a assomarem em What"s done is done, aqui e ali sons que nos transportam para a banda sonora de um filme blaxploitation, talvez realizado por Tarantino, Jack White não nos está a mostrar algo que ninguém está a fazer, mas que ele próprio ainda não tinha feito.

Basta ouvir o registo também declamado de Abulia and Akrasia, objeto estranho em que um homem em negação pede gentilmente mais uma chávena de chá. "But I do it so gently/ That you cannot resent me/ For this humble request of my company/ So with time left permitting/ And while we're still sitting/ May I please have another cup of tea?". E tudo isto antes de se atirar ao roubo de um banco em Hypermisophoniac, onde "Every sound I hear/ Is louder than the last/ Sounds like a dynamite blast/ When you flick your teeth/ I need a relief".

Editado pela Third Man, a editora de White, Boarding House Reach dispara sobre um mundo onde gente como Trump não usa o seu próprio dinheiro, usa o dos outros. "Ele é uma piada constante", atirou o músico ao Guardian. "Se ele tiver perdas ou abrir bancarrota, nada o vai afetar."

Jack queixa-se ainda em Ice Station Zebra deste mundo onde tudo "gets labeled and named/ A box, a rough definition, unavoidable/ Who picked the label doesn't want to be responsible/ Truth, you're the warden, here's the keys to the prison/ You create your own box, you don't have to listen/ To any of the label makers, printing your obituary".

White recusa ser classificado de forma fácil. O que está feito, está feito, avisa-nos, mas o remate entre a ironia e a magia de Humoresque, não esconde o desequilíbrio do novo álbum de Jack. "Over the air, you gently float/ Into my soul, you strike a note/ Of passion with your melody." Nem sempre a paixão salva a música.
[originalmente publicado no DN a 16 de abril de 2018]

Maio 04, 2018

Isto de ver deus ao vivo tem que se lhe diga

Miguel Marujo

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Isto de ver deus ao vivo tem que se lhe diga. Os fiéis podem apressar-se cegamente a louvá-lo sem qualquer espécie de crítica, como também podem descobrir que deus é afinal humano, eventualmente com pés de barro, que prefere as palavras das canções às palavras acessórias ditas para o aplauso da plateia.

Bob Dylan (é este o deus de que se fala) chegou na quinta-feira, dia 23 de março, a Lisboa para um concerto na Altice Arena de 20 canções, 18 no corpo do concerto, duas já previstas para o encore — o alinhamento deste concerto, o primeiro na Europa da digressão Never Ending Tour, foi praticamente o mesmo dos que o americano fez na América, mexendo sobretudo na ordem de algumas canções. O que baralhou mesmo foi a roupa com que Bob Dylan vestiu as suas canções, apanhando (quase) de surpresa quem o ouvia. Houve mesmo Blowin' in the Wind, no encore, e só a letra tornou reconhecível a canção do álbum The Freewheelin' Bob Dylan (1963).

Foi de surpresa que deus entrou no palco: às 21.06, as luzes apagaram-se de repente e logo assomaram as guitarras e o piano, de onde praticamente não saiu Dylan. Com a banda vestida de casacos brancos, não havia truques no cenário que ajudassem: na imensidão da arena, os cinco e Bob pareciam prontos para cantar num club, entre o blues e o rock'n'roll, pitadas de jazz, algum rock e aqui e ali swing para agitar os corpos.

Os fiéis foram reverentes: com deus sentado, os movimentos resumiam-se a acompanhar de forma muito compostinha a adrenalina de Highway 61 Revisited ou Summer Days e o esgalhanço de Autumn Leaves, uma versão de Yves Montand. Se a rebeldia do americano já ficou arrumada há muito no armário, quem foi ao concerto também não se agitou muito — talvez outras idades fizessem da Altice Arena uma enorme pista de dança para rock'n'roll e alguns slows.

Não ajudou o som da sala, que lá foi deixando de ser a amálgama inicial, para tornar mais clara o que é a voz de Bob Dylan hoje (deus é falível). E não ajudou que não houvesse qualquer ecrã que mostrasse o seu rosto (nem as fotografias foram permitidas para a imprensa). Sabe-se que deus não se deixa revelar de modo fácil, só as palavras (ele que também é Nobel da Literatura) e a música são importantes. E não há palavras a mais: nem um "boa noite", nem um "obrigado", nem a apresentação dos seus cinco apóstolos, a his band que o acompanha nesta digressão.

Bob Dylan não facilitou. Tangled Up in Blue foi tão swingada que houve quem não se desse conta do que cantava deus, que permanecia atrás do piano. Em Honest with me meneou a cabeça e carregou nas teclas. E quando saltou para a frente do palco, pela primeira e única vez, já perto do fim, para uma deliciosa versão de Why Try to Change Me Now (de Cy Coleman Jazz Trio), alguém desabafou, "finalmente".

Ao fechar o alinhamento de 18 temas, saíram como tinham entrado: na escuridão. Regressaram na semiobscuridade para o tal encore em que Blowin' in the Wind é surpreendente entre as guitarras e o contrabaixo e a bateria a dar-lhe um toque de swing irresistível, que deixa de lado qualquer nota de protesto. Não há rajadas de vento, apenas uma brisa de blues.

Cá fora, no final do concerto, um bob dylan de guitarra e harmónica juntou uma pequena multidão para lhes dar os clássicos como sempre foram. Quem queria ir ao céu, parecia desiludido com deus e certamente cantarolou Now I'm trying to get to heaven before they close the door. Bob Dylan não fechou porta nenhuma, abriu outras. Senhoras e senhores, nem sempre são fáceis as palavras de deus. E isto de ver deus ao vivo tem que se lhe diga.
[originalmente publicado no DN a 23 de março de 2018]