Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Agosto 11, 2017

We need new dreams tonight. A América cantada pelos U2

Miguel Marujo

u2.jpg

 

Primeiro ato. The Whole of the Moon 

O ato é de celebração, as palavras são conhecidas e os gestos já muito ensaiados, mas há algo de refrescante no que ali se festeja: as canções têm 30 anos e ganham todo o sentido cantadas assim, do princípio ao fim, num espetáculo no qual os U2 comemoram os 30 anos do álbum The Joshua Tree. E chegaram há pouco mais de uma semana à Europa para esta digressão sem ponta de nostalgia. Estas canções fazem-se eco da América e do mundo de hoje, nas palavras e sons que são também manifestos políticos, projetados num imenso ecrã.

É com The Whole of the Moon, tema de 1985 dos Waterboys, que se insere a palavra-passe para o início do concerto, depois de Noel Gallagher's High Flying Birds ter entusiasmado a multidão com os sucessos dos Oasis. Larry Mullen Jr. entra para a bateria e marca o ritmo e, com a abertura sincopada de Sunday Bloody Sunday, os outros elementos da banda vão chegando ao palco para interpretar uma canção que é também senha para este concerto. Como explicou The Edge, na Mojo, cantar e tocar este tema de War (1983), logo a abrir, é “para deixar claro que banda é esta”.

As quatro canções com que arranca o concerto — depois de Sunday Bloody Sunday, em Londres ouviram-se New Year's Day, Bad e Pride (In the Name of Love) — são tocadas num palco mais pequeno, uma sombra da árvore de Joshua, que se destaca no ecrã panorâmico e é assim “projetada” no relvado do estádio de Twickenham. 

A lua tenta romper por entre a luz do sol, mas não há imagens no ecrã, remetendo assim para 1987, quando os espetáculos em estádios ainda não faziam uso da capacidade cénica de hoje (e onde os U2 sempre foram pioneiros e ousados). Apresentadas cronologicamente, estas canções de War e The Unforgettable Fire antecipam o álbum de 1987, mas também se inserem na linhagem política da banda irlandesa.

 

Segundo ato. The Joshua Tree

Os tempos de hoje, antecipava a banda antes da digressão, parecem completar um círculo regressando ao período de Ronald Reagan/Margaret Thatcher com diferentes personagens — agora Donald Trump, o brexit, Theresa May. “The Joshua Tree assemelha-se de alguma forma a um espelho das mudanças que estavam a acontecer no mundo”, dizia o baixista Adam Clayton. O ato é, pois, também político: os U2 nunca esconderam que olham de forma crítica para o mundo — e este álbum trintão conta-o por todas as espiras.

O público (no caso, londrino) sabe as letras de cor e salteado e sabe que é por Where the Streets Have No Name que se inicia o álbum e que depois dessa vem I Still Haven't Found What I'm Looking For e depois With or Without You e depois... Esse reconhecimento poderia jogar contra o espetáculo, mas não. Percebe-se que faz sentido ouvir de novo Where the Streets Have No Name ou Bullet the Blue Sky. Uma e outra vez: “É importante para nós que isto não dependa de nenhum tipo de nostalgia. É um olhar fresco sobre estas canções, uma nova forma de as apresentar e aproveitar uma qualquer qualidade intemporal que tenham. Elas parecem ter ganho uma nova vida agora”, confessava o guitarrista The Edge à Mojo.

Em palco, nas quase duas horas e meia de concerto, a banda também faz da encenação uma forma de luta: no ecrã panorâmico gigante projetam-se curtas-metragens realizadas por Anton Corbijn (responsável pelas fotos que acompanham o álbum de 1987) e filmadas nos californianos parque de Joshua Tree e Zabriskie Point, no vale da Morte. 

São metáforas para estes dias. Em Where the Streets Have No Name, as ruas sem nome são uma longa reta que rasga o deserto com migrantes a caminharem sob o sol (e ali projetado com o sol ainda a fazer-se ver no Twickenham Stadium). Estes filmes são sobre “como pôr The Joshua Tree na América de hoje”, explicou Corbijn à revista Mojo.

Quando arranca a interpretação na íntegra de The Joshua Tree, o ecrã do espetáculo concebido por Willie Williams assume também protagonismo no palco, transportando os cerca de 55 mil presentes para essa América que é a de Donald Trump e de Barack Obama.

Se ao longo destes 30 anos as canções de Joshua Tree foram ganhando outros contextos e mantendo um olhar fresco sobre a América e o mundo, basta chegar a Bullet the Blue Sky, que nasceu de uma viagem de Bono e da mulher à América Central das guerras civis violentas e dos esquadrões da morte dos anos 80 e que hoje podia ser cantada sobre a Síria, o Iémen ou a República Centro-Africana.

Em 1987, “a música falava sobre os tempos e sobre o que estava a acontecer na cultura, de uma maneira que não se faz agora. Talvez no hip-hop haja um pouco mais”, apontou o guitarrista nas páginas da Q

Ouvindo The Edge, é mais fácil de perceber o que se passa no concerto: Exit é antecipado por um excerto de uma série de western onde um Trump, Walter, assusta a população de uma cidadezinha do Texas com a iminente colisão de um cometa a construção e garantindo que a solução mágica passa por construir um “muro magnético” que os protegerá do mal que se anuncia. Sounds familiar? Sim. E é a referência mais explícita a Trump, Donald, que se ouvirá no concerto. 

 

Terceiro ato. Miss Síria

Junte-se Mothers of the Disappeared, por exemplo, logo a seguir, e temos retratos de um mundo que está ainda presente. Ou Miss Sarajevo, já a abrir um encore com sete temas mais recentes dos U2, que acaba por ser uma miss Síria, Omaima, a jovem refugiada de 15 anos do campo jordano de Zaatari que vê os seus olhos abrirem-se no ecrã gigante enquanto uma bandeira com o seu rosto é levada pelos braços do público que compõe as bancadas de Twickenham.

Já antes, a antecipar a canção que celebra a América de forma clara, In God’s Country, Bono deixou uma declaração de amor a Brian Eno, pelo seu trabalho no álbum. “Não haveria um lado 2, ou um lado 1, se não fosse Brian Eno, que está aqui esta noite”, explicou-se o vocalista.

Há um verso neste In God's Country que ajudou Bono a explicar a vontade de tocar Joshua Tree agora na íntegra nos palcos. “We need new dreams tonight.” Precisamos de novos sonhos nos tempos que vivemos. Hoje a digressão, que passou entretanto por Berlim e Roma, chega a Barcelona. Para continuarmos a sonhar outra América — e outro mundo.

 

[texto publicado na Máquina de Escrever, a 18/7/17, elaborado, revisto e aumentado, a partir de uma crónica escrita para o DN, publicada a 15/7/17; o concerto em Londres aqui narrado foi a 9 de julho.]

Agosto 10, 2017

Humanz, a banda sonora para o fim do mundo

Miguel Marujo

Gorillaz-press-photo-cr-J-C.-Hewlett.jpg

O aviso vem em letra de forma na capa de Humanz, o álbum que assinala seis anos depois o regresso dos Gorillaz: "Aqueles que têm medo da música são perigosos." Sabe-se que Damon Albarn pediu a Pusha T, ainda antes daquele mau dia de novembro de 2016, que imaginasse "uma festa para o fim do mundo, como se Donald Trump ganhasse". Trump ganhou a presidência americana e o mundo ganhou a banda sonora para esse fim do mundo como o conhecemos.

Quem há muito anda distraído pode achar que vai encontrar neste alter ego de Damon Albarn um pouco mais de Blur, o grupo a que deu voz na explosão da britpop e na guerra alimentada no espaço mediático com os Oasis, sem cuidar que os seus ouvidos vão mergulhar num mundo que atravessa pontes entre o hip hop, o tecno e o dub (e Albarn prometia canções de "125 batidas por minuto e nada abaixo disso") ou o reggae e a pop.

Esta banda virtual de Damon Albarn e Jamie Hewlett, responsável pela imagem gráfica dos Gorillaz, suga os anos 1980, no encontro com os De La Soul (também eles a viver uma segunda vida, como se pôde ou-ver no ano passado em Lisboa), mas também recuperando gente que seria proscrita, insultada e caricaturada por muitos na década final do século XX, como Jean-Michel Jarre (sim, os seus sintetizadores ressuscitam em três temas), a inesperada Carly Simon ou a sempre enigmática Grace Jones.

Também há Vince Staples, Danny Brown, Pusha T, Mavis Staples, D.R.A.M., Jehnny Beth, das Savages (que se mostraram no Primavera Sound de 2016 no Porto) e Kelela, que também no ano passado se apresentou a solo no Super Bock Super Rock, longe do palco principal dos De La Soul. E com Damon quase sumido nas vocalizações, há ainda a voz de Benjamin Clementine, sempre inclassificável, sempre brilhante, apesar de quase discreta nos tons fortes que fazem desta voz um templo sagrado. E, por fim, Noel Gallagher, um dos irmãos desavindos dos Oasis, também acompanha Damon e Jehnny Beth em We Got the Power, um gesto que motivou a fúria de Liam Gallagher.

Há coisa de três anos, este álbum começou a ganhar forma e, em outubro de 2015, Damon Albarn admitia que já estava a trabalhar em novas canções. Elas deviam transmitir três ideias centrais para este registo: "Dor, alegria, urgência." E Albarn era citado numa entrevista a pedir a festa de um mundo que se desfazia. "Eu disse a todos para imaginarem que estavam na América após a tomada de posse [do presidente] e que pensassem no pior cenário: como se sentiriam naquela noite? Vamos fazer um disco festivo sobre o mundo a ficar doido."

O álbum avança entre canções de corpo inteiro e interlúdios que experimentam palavras de ordem para o ritmo dos corpos. Temos o poder de nos espantar num universo que extravasa a música. Os Gorillaz têm uma existência virtual de quatro personagens animadas, completamente ficcionadas, sem qualquer correspondência com a realidade — apenas emprestam os nomes a vídeos e filmes, como também a instrumentos, como 2-D na voz e teclas, Murdoc Niccals no baixo, Noodle na guitarra e teclas e Russel Hobbs na bateria e percussão.

Já no final do álbum (na versão standard, que se fica pelos 20 temas; há uma edição deluxe que acrescenta mais seis canções de bónus), Jehnny Beth toma a palavra para nos dizer que temos o poder de nos amarmos, sem que mais nada importe: "We've got the power to be loving each other/ No matter what happens/ We've got the power to do that/ On a le pouvoir de s'aimer, okay?" E aqueles que têm medo da música são perigosos.

Num ano em que já tivemos Kendrick Lamar no seu Damn e Thundercat com Drunk, este Humanz ajuda a compor uma trilogia destes tempos modernos de inquietação de que qualquer coisa está para acontecer. É este o fim do mundo como o conhecemos — e sentimo-nos bem. Já se sabe: estas canções hão-de afugentar os perigosos que têm medo da música. É a banda sonora perfeita.

[publicado originalmente no DN a 27/5/17]

Agosto 09, 2017

Aos 20, celebra-se o fim da adolescência. E a vida é o que fazemos dela

Miguel Marujo

Placebo.jpg

É uma foto destes tempos: dois jovens estendidos no chão beijam-se, com um polícia em primeiro plano e, ao fundo, o caos instalado nas ruas de Vancouver. Scott contou que procurou acalmar a namorada, Alexandra, com o beijo, depois de os dois terem tropeçado numa fuga precipitada da multidão e a polícia lhes ter batido — estávamos em 2011.

Cinco anos depois, os Placebo fizeram desta imagem a sua capa da coletânea A Place for Us to Dream, com que festejam os 20 anos do seu primeiro álbum homónimo, de 1996. Este lugar para sonharmos anda desde outubro último pelos palcos europeus e chega hoje [1/5/17] ao Pavilhão Multiusos de Gondomar e amanhã [2/5/17] ao Coliseu dos Recreios em Lisboa.

A avaliar pelos alinhamentos dos concertos mais recentes, pode esperar-se uma entrada em palco com dois momentos de Without You I"m Nothing, o segundo disco de originais da banda e que a Pitchfork incluiu na lista dos 50 melhores álbuns da britpop. Every You Every Me será projetado nos ecrãs e Pure Morning já contará com Brian Molko e Stefan Olsdal no palco para uma noite em que se espera mais de uma vintena de canções, encores incluídos, entre originais e algumas surpresas — a banda tem fechado os concertos com a sua versão contida de Running up That Hill (A Deal with God), o tema de Kate Bush, e tem interpretado Without You I'm Nothing, com David Bowie (que canta no original) a visitar-nos nos ecrãs.

No palco, garante Stefan Olsdal, as coisas têm corrido bem. "Eu penso que nos aproximámos mais um pouco de um estilo festivo do que em digressões anteriores porque, afinal, sempre é o nosso 20.º aniversário, e em vez de sairmos e de tocarmos com má vontade velhas canções de que não gostamos, preferimos ter uma abordagem que foi a de 'vamos celebrar o nosso passado e vamos aceitar aquilo que nos fez o que somos hoje e nos trouxe até aqui hoje'", confessou o guitarrista-baixista num concerto na Alemanha ao jornal britânico Yorkshire Evening Post. "Chegámos a um acordo com o passado: celebrá-lo e estar gratos pelo que temos, basicamente."

Nestes 20 anos, Stefan reconhece que têm tido "alguns espetáculos, algumas colaborações e alguns momentos", mas que o melhor é manterem as suas armas e não seguir caminhos demasiado rápidos. Afinal, "também vivemos períodos em que estávamos realmente fora de moda e não podemos deixar que isso nos afete".

Para Brian Molko e Stefan Olsdal, o importante foi "fazer o que parecia certo e cumprir a sua própria visão". "Se fizermos isto durante um tempo suficiente, como que crias o teu próprio mundo. Até porque, se andares por aqui muito tempo, as pessoas também não te podem ignorar."

A banda não tem sido ignorada, regista Stefan. Ao longo destes 20 anos tiveram os seus momentos, como a primeira vez em que tocaram na Brixton Academy, em Londres, ou quando colaboraram com alguns dos seus "heróis", como lhes chama Stefan, de Frank Black a Robert Smith e David Bowie. Ou quando tocaram nos templos de Angkor Wat, no Camboja — "nós fomos a primeira banda de rock a fazê-lo". "Posso sentar-me e conversar sobre isto durante um bom bocado."

Na compilação, os Placebo incluíram ainda um inédito, Jesus' Son, que agora têm levado aos concertos, um tema que assenta como uma luva no longo percurso de uma banda desde sempre arrumada nas categorias do rock independente e da britpop. "And I am unafraid and blissful, here I come/ I am unashamed at getting nothing done", canta Brian na canção.

De fora tem ficado Life's what You Make It, a canção inscrita no panteão dos Talk Talk, registada num EP homónimo com temas que lançaram recentemente para ajudar na festa dos 20 anos. Mas aos 20 anos deixa-se a adolescência para trás — e festeja-se o que fazemos da vida.

Antes de iniciarem esta digressão dos 20 anos, os Placebo fizeram uma pequena homenagem a Leonard Cohen e Stefan Olsdal e Brian Molko olharam um para o outro e disseram-se: "Ainda nos temos um ao outro e ainda estamos a fazer isto. Somos abençoados com o que temos."

[publicado originalmente no DN a 1/5/17]

Agosto 08, 2017

Contar uma vida com 50 canções e 100 instrumentos

Miguel Marujo

MF.jpg

Harpas, órgãos, sintetizadores, ábacos, pianos, ukulelés, tambores, pandeiretas ou um cavaquinho. Desafiado a festejar os seus 50 anos com 50 canções, Stephin Merritt não deixou a coisa por menos. Pegou em mais de cem instrumentos, grande parte tocados pelo próprio, alinhou ano a ano letras autobiográficas e reuniu cinco discos numa caixa épica e conceptual, 50 Song Memoir, e sob o nome pelo qual é mais conhecido o seu múltiplo trabalho — Magnetic Fields.

A empreitada remete logo para outro disco com que Stephin Merritt fechou o século XX: então em 1999, também sob o nome de Magnetic Fields, o canadiano apresentou-nos um épico triplo álbum de amor, 69 Love Songs, literalmente 69 canções de amor divididas por três discos.

Dezoito anos depois, chegados a 2017, Merritt estabelece a ponte entre os seus dois discos: "Penso neste álbum como parte de uma resposta a 69 Love Songs, no qual era tudo ficção, mais ou menos, pelo menos no sentido em que as canções de amor são ficção ou não. Em 50 Song Memoir é tudo não ficção, mais ou menos, pelo menos no sentido em que uma autobiografia é extremamente construída...", explicou-se numa conversa que acompanha a edição desta nova caixa. E aí volta a dizer que "é a pessoa menos autobiográfica que provavelmente encontrarão", antecipando que a sua velha discrição pessoal deve regressar. "Provavelmente não vou escrever mais nenhumas canções verdadeiras depois disto como fiz antes, mas foi interessante trabalhar nisto."

A história deste 50 Song Memoir é conhecida: Robert Hurwitz, o presidente da sua editora, a Nonesuch, levou Stephin Merritt ao Oyster Bar na Grand Central Station, em Nova Iorque, e desafiou o mentor dos Magnetic Fields a fazer o tal álbum de 50 canções pelos "50 anos de Stephin no planeta" — "e fazer disso uma extravagância".

É um homem que gosta de complicar o que é aparentemente simples. Ao uso de mais de cem instrumentos, impôs-se a regra de que cada canção não teria mais do que sete. No passado lançou um trabalho em que todas as canções tinham como inicial a letra "i" (e o álbum chamava-se obviamente i). Ou outro, inspirado nos escoceses The Jesus and Mary Chain, em que as pessoas sabem musicalmente ao que vão: Distortion.

Talvez se expliquem estas manias com o texto "The Formulist Manifesto", que Merritt elaborou para explicar que "toda a arte aspira à condição do Top 40 bubblegum pop". Mastiga e deita fora? Não, neste caso.

Talvez seja por isto que este novo álbum dos Magnetic Fields navegue por territórios cujas sonoridades se reconhecem e remetem para trabalhos anteriores de Stephin Merritt, nomeadamente o já referido 69 Love Songs. Mas até chegar ao amor, neste 50 Song Memoir, há a infância de descobertas e memórias (também musicais, como quando aos 5 anos foi a um concerto dos Jefferson Airplane com a mãe).

Stephin nasceu em 1965 e a primeira canção é de 1966, no seu primeiro aniversário (as canções são identificadas pelos anos, até 2015, quando fez 50 anos). Em 1971, tinha sonhos próprios dos seus 6 anos: "Eu penso que farei um outro mundo e vou enchê-lo com tudo o que quiser", diz em I Think I'll Make Another World.

As ilusões parecem esboroar-se nos anos 1980, depois da explosão do disco e das idas à danceteria. Em 1985, em Why I Am not a Teenager, a sida assoma à porta, quando se ouve "When you never get paid/ And you never get laid/ And you're full of these stupid hormones/ And just then they come out with AIDS". Cinco anos depois, é o fim da inocência, que se joga em Dreaming in Tetris: "All the young dudes of 25/ Caught diseases, few survived/ Dreaming in Tetris/ We expected nuclear war/ What should we take precautions for?"

Mergulhados no Tetris, à espera da guerra nuclear dos anos 1980, quando se instalavam mísseis nucleares nas fronteiras da Europa dividida, as precauções foram nulas. Merritt mergulha num boletim clínico de "estranhas doenças" que o afetaram, de "quistos renais realmente dolorosos" à "hiperacusia", uma intolerância a determinadas frequências sonoras que o aflige desde 1992.

Já o amor toca-lhe agora na frequência certa. Em Somebody's Fetish, a fechar o álbum, Merritt diz-nos: "Nothing's too strange for somebody's palate / Some spank the maid, and some wank the valet." Ou, como confessou ao The Guardian, não é só aí que se diz apaixonado. "Eu estou enamorado noutros lugares do álbum, mas acho que a mensagem é mais podermos encontrar um final feliz no rio da vida. Eu podia dar-lhe um final trágico. Há várias coisas em que nos podemos concentrar — na política americana, por exemplo."

[publicado originalmente no DN a 25/3/17]

Agosto 07, 2017

Este Nick Cave é de antologia — from him to eternity

Miguel Marujo

NC.jpg

 

Há um momento no filme no qual o rapaz que está no palco volta para mais uma canção, "mais uma canção e acabou", pensa ele, "mas não lhes vou falar de uma rapariga, não lhes vou falar", e quando se chega ao microfone diz o contrário: "Vou falar-vos de uma rapariga" - e a banda começa a tocar, enquanto ele canta sobre a rapariga que vive no quarto 29, exatamente por cima do dele, onde ela passeia descalça a chorar.

Foi assim que, pela primeira vez, Nick Cave e os seus Bad Seeds apareceram num filme, Der Himmel über Berlin/As Asas do Desejo (1987), de Wim Wenders, a interpretar em palco The Carny e From Her To Eternity, a canção da rapariga do quarto 29. E é por este tema, do primeiro álbum homónimo, que nos iniciamos neste acontecimento maior que é a mais abrangente coletânea de Nick Cave and The Bad Seeds, Lovely Creatures: The Best of Nick Cave and The Bad Seeds (1984-2014) — descontados um primeiro best of, curto nos seus 16 temas, de 1998, os discos ao vivo e uma box que reuniu lados B e raridades, em 2005 — que [foi] lançada a 5 de maio.

Esta viagem percorre os 15 álbuns de originais do australiano e da sua banda de From Her To Eternity (1984) até Push The Sky Away (2012), só deixando de fora o mais recente Skeleton Tree (2016) e [chega] às lojas em duas versões que só aparentemente são iguais. A edição standard fica-se por 21 temas, a deluxe atira-se para os 45.

E, senhoras e senhores, como apetece tanto puxar os cordões à bolsa para poder ouvir esta antologia na sua versão de luxo (e falamos só da música): desfiando as canções cronologicamente, os 45 temas permitem parar em cada um dos álbuns com tempo, percebendo a importância de cada um na construção do edifício musical de Nick Cave and The Bad Seeds, da carnalidade dos cinco primeiros discos ao lirismo hipnotizante que o acompanha, com mais ou menos arroubos viscerais, sobretudo desde Murder Ballads (1996) e The Boatman's Call (1997).

Da edição standard à edição deluxe, o embrulho é cuidado. A primeira é um duplo CD, com um booklet de 24 páginas de fotos pessoais e raras da banda. A versão de luxo traz um livro de 36 páginas que acompanha três CD e um DVD de duas horas. Por fim, para fãs, há uma edição limitada super deluxe a pedir a atenção dos sentidos, num livro luxuoso de 256 páginas, com ensaios originais, muitas fotos e memorabilia.

As criaturas adoráveis que são as canções deste álbum mostram um Nick Cave e os seus Bad Seeds em empolgantes hinos rock, como The Mercy Seat ou Deanna, em que órgãos Hammond gingam de forma despudorada com guitarras apocalípticas e coros guturais.

Até 2014 não há álbum de originais que fique de fora, exceto (lá está) na edição standard. Nocturama (2003) é o disco menos amado e quase esquecido nesta coletânea, com um único tema na versão deluxe. Mas não há muito por aferir sobre amores e desamores de Nick Cave na seleção final feita: Your Funeral... My Trial também é quase esquecido (Stranger Than Kindness ouve-se nas duas versões, acompanhada de Sad Waters e The Carny, no triplo que reúne os 45 termas), quando o australiano dizia em 1992 que era o seu disco preferido. "Este disco em particular, que é o meu disco favorito dos que fizemos, é muito especial para mim e muitas coisas espantosas aconteceram, musicalmente, no estúdio", contava então. "Há algumas canções que, no que me toca, são tão perfeitas como as podemos fazer. Canções como The Carny, Your Funeral, My Trial e Stranger Than Kindness, penso que são de facto brilhantes."

O génio atormentado que sobe ao palco em As Asas do Desejo está sempre presente nas letras que fazem este longo percurso de 30 anos, em que o amor, o sexo e a religião se cruzam de forma quase omnipresente. Há The Good Son (2000) e The Boatman's Call, ou ainda Kicking Against the Pricks, o álbum de covers de 1986 que ganhou o nome a partir de um versículo dos Atos dos Apóstolos, que cita um provérbio grego apenas referido numa tradução anglicana da Bíblia.

Mesmo que possamos apontar o dedo a uma ou outra ausência (onde andam o fantástico dueto com PJ Harvey, Henry Lee, de Murder Ballads, ou Black Hair, de The Boatman's Call?) — o que acaba por acontecer naturalmente ainda mais vezes ao olharmos para o alinhamento da edição mais económica — há um esforço para contar o essencial destas ervas daninhas.

Quem aqui chegar pela primeira vez fica a saber com o que conta, desde a história da rapariga do quarto 29 até à de uma outra rapariga, que se passeia pela Jubilee Street. É uma viagem e tanto, de antologia mesmo.

[publicado originalmente no DN de 15/4/17]

Agosto 06, 2017

As versões alternativas dos contos dos Beach House

Miguel Marujo

BH.jpg

 

É um disco que pode enganar: promete-nos lados b e raridades, mas na verdade aquilo que se ouve não são canções de refugo nem apenas curiosidades para colecionadores. Os Beach House, de Victoria Legrand e Alex Scally, fazem do seu sétimo disco de longa duração (agora lançado) uma compilação de todas as canções gravadas que não constavam dos seus seis anteriores discos: juntaram 14.

Novidades, novidades fresquinhas, só duas: Chariot e Baseball Diamond, canções inéditas recuperadas das sessões de gravações dos dois últimos álbuns editados em 2015, Depression Cherry e Thank Your Lucky Stars, então editados com um intervalo de dois meses (uma surpresa que não evitou que a maior parte dos tops desse ano incluísse ambos os trabalhos).

Ao ouvir este B-Sides and Rarities — nome apenas factual pela dificuldade de encontrar hoje em dia alguns destes registos — podemos imaginá-lo como que um terceiro capítulo daqueles álbuns, completando um tríptico final em que as texturas dos Beach House se depuraram por entre as florestas frias de Twin Peaks (ouça-se Chariot e, por entre as sombras, surge-nos Julee Cruise), as sonoridades dos Cocteau Twins ou contos infantis com as suas personagens assustadoras (há sempre um lobo mau ou uma bruxa má que pregam sustos a capuchinhos e frágeis princesas).

Talvez desta amálgama de referências se entenda o sonho em que se entra com a voz de Victoria e as guitarras de Alex, o voo planante que se inicia em cada uma das notas, como as que escutamos em 10 Mile Stereo, numa remistura que tornou mais lentos todos os movimentos desta canção gravada nas sessões de Teen Dream em julho de 2009. Como explicam os próprios, na apresentação do álbum no site da sua editora Sub Pop, desde que usam cassetes, muitas vezes desaceleram a cassete para criar efeitos durante a gravação. "Quando estávamos a fazer isso em 10 Mile Stereo, decidimos que queríamos fazer uma versão alternativa onde toda a canção seria mais lenta." Dito e feito, como se ouve nesta Cough Syrup Remix.

Este tema é recuperado de um dos períodos "mais prolíficos até à data" do duo, o de 2009/2010 - o outro é 2014, que deu origem aos tais dois álbuns de 2015 - e é destes anos que encontramos umas quantas canções nesta compilação, como explicam Victoria e Alex: Baby foi escrita e gravada em outubro de 2009, The Arrangement e White Moon não se adequavam a Teen Dream (2010). Esta versão de White Moon é recuperada da sessão ao vivo do iTunes, tal como Norway, e se a primeira foi remisturada para melhor responder à "estética atual", a segunda estabelece uma ponte bem distinta da versão original.

I Do Not Care for the Winter Sun é uma canção escrita numa pausa na digressão do "ano louco" de 2010, ao sentirem-se bastante agradecidos aos fãs "por tudo o que tinha acontecido". O tema foi libertado à borla na internet, sem qualquer masterização. "Agora, foi finalmente remasterizado", explicam os Beach House.

Ao ler as explicações de Victoria e Alex para só agora estas canções surgirem em formato de álbum, percebe-se também melhor o processo criativo da franco-americana de Paris que cresceu em Filadélfia e do americano de Baltimore, cidade de Maryland onde os dois formaram a banda. Wherever You Go, por exemplo, também daquela época, mas "como soava muito à música antiga" dos Beach House, a sua escrita ficou a marinar até 2011, quando já preparavam Bloom. E surgiu originalmente como uma canção escondida neste álbum de 2012. Ou Equal Mind, também gravada nas sessões de Bloom, de que gostam muito mas que acabou de fora por parecer uma canção gémea de Other People. "Tinha exatamente o mesmo tempo", recordam.

Outra canção escondida, no primeiro álbum homónimo da banda (2006), e a mais antiga deste B-Sides and Rarities é Rain in Numbers, gravada em 2005, no verão em que os dois se juntaram como Beach House. "Nós não tínhamos um piano, e pedimos ao nosso amigo se podíamos usar o dele, que estava bastante desafinado. Usámos o microfone que estava no gravador de quatro pistas para gravar o piano e as vozes." E sim, tudo isso se percebe na fantasmagoria desta chuva em números.

Como se percebe a ironia de Victoria e Alex, ao serem confrontados com um tweet de alguém quando se soube da edição deste álbum. "Um disco de lados b? Porque põe cá fora os Beach House um disco de lados b? Os lados a deles são como lados b." Sim, é verdade, concordam os dois. "O nosso objetivo nunca foi fazer música que seja explicitamente comercial. Ao longo dos anos, na forma como trabalhámos nos nossos seis álbuns, não foram as 'melhores' músicas ou as mais atraentes que foram escolhidas, mas sim as que melhor se encaixaram para fazer um trabalho coeso." Tal e qual este B-Sides and Rarities.

[publicado originalmente no DN a 3/7/17]

Agosto 05, 2017

O milénio chegou em 1997. OK Computer faz 20 anos

Miguel Marujo

oknotok.jpg

Há 20 anos, quando vinha aí a correr o século XXI, os Radiohead anteciparam-se ao milénio para nos cantarem logo como era - OK Computer, nascido entre 1996 e 1997, fechou-nos em casa, dias a fio assim, a ouvir o álbum que profetizaria a idade digital que vivemos sem o adivinharmos, uma revolução em forma de disco.

Agora, 20 anos depois de 21 de maio de 1997, data do seu lançamento, os Radiohead revisitam uma das suas obras maiores (e a mais icónica) juntando três inéditos e muitos lados b à história perfeita dos 12 temas originais, aqui remasterizados, numa edição a que deram o nome de OK Computer OKNOTOK.

A história é conhecida: o vocalista Thom Yorke dizia que andava a preparar um álbum "positivo", depois de Creep ter feito o sucesso de Pablo Honey (1994) e de The Bends (1995), o seu segundo álbum, ter entreaberto a porta a novas sonoridades. Faltou em otimismo o que sobrou em claustrofobia e nem as suspeitas guitarras que abrem Airbag, no início de OK Computer, disfarçam o que logo se intui: este álbum seria diferente, romperia com a britpop em que já tinham sido arrumados estes rapazes de Oxford. E se dúvidas restassem, Paranoid Android, o segundo tema, desfazia numa assentada, com a voz sempre aparentemente frágil e perdida de Thom Yorke a deambular por entre personagens que nos assustam. Será também assim em Karma Police, outra canção que entrou num panteão onde o difícil é indicar alguma que fique de fora. This is what you'll get, When you mess with us, canta Thom.

Como se escreveu no jornal britânico The Guardian, "o facto de continuarmos a achar que OK Computer é muito mais do que estrelas de rock a gemerem por serem estrelas de rock tem tanto que ver com a música como com a habilidade lírica de Yorke em transformar os seus medos e ansiedades pessoais em algo mais universal".

Nem todas as canções eram novidade: Lucky tinha surgido no álbum a favor das crianças vítimas da guerra na Bósnia, HELP, gravado num único dia, e Exit Music (For a Film) acompanhava os créditos finais de um filme do ano anterior, a fantástica versão pop shakespeariana de Romeo+Juliet de Baz Luhrmann, mas tinha ficado de fora da banda sonora publicada. O contributo para HELP é também importante por outro facto: Nigel Godrich, que já tinha trabalhado com a banda como engenheiro de som, produziu Lucky e seria chamado depois para OK Computer, tornando-se a partir daí um sexto radiohead, ajudando a cozinhar a complexidade sonora de várias camadas de que vive o álbum - e que seria aprofundado até aos limites da desconstrução pop em Kid A (2000) e Amnesiac (2001), as obras que se lhe seguiram.

Num tempo em que o YouTube ou o streaming eram quase ficção científica e que os telemóveis não cabiam num bolso nem estavam à distância de todos os bolsos, OK Computer teve honras de apresentação mundial, durante três noites de maio de 1997, em Lisboa, num Paradise Garage que nunca esgotou, apesar do sucesso de culto que os britânicos já iam conhecendo por cá.

Vinte anos depois, OKNOTOK deixa-nos KO, ao redescobrir que o sopro de inventividade e genialidade do álbum de 1997 permanece intacto e que os lados b e as canções inéditas ajudam a compreender o processo criativo do grupo e a perceber porque é que OK Computer ainda é essencial. Já estamos no século XXI, sem necessidade de nos fecharmos em casa, mas podemos sair a correr enquanto Thom Yorke nos pede aos ouvidos: "Please could you stop the noise/ I'm trying to get some rest/ From all the unborn chicken voices in my head/ What's that?" É um objeto belo este.

[texto publicado originalmente no DN a 25/6/17]

Agosto 04, 2017

Pet Shop Boys: licença para dançar

Miguel Marujo

PSB.jpg

 É uma festa para os corpos esta que se anuncia por estes dias de verão e os rapazes da loja de animais de estimação não fazem a coisa por menos: os Pet Shop Boys revisitam toda a sua obra, o catálogo completo dos álbuns de estúdio de 1985 a 2012, editados pela Parlophone, para uma releitura que promete muitos inéditos e bastantes remisturas. Desde ontem [28/7/17] estão à venda os três álbuns — Nightlife (1999), Release (2002) e Fundamental (2006) — que abrem este programa de reedições muito especiais, anunciadas pelo duo em junho passado, sob o nome de Catalogue: 1985-2012, sempre acompanhados de material extra, reunido sob o nome comum de Further Listening. Para baralhar, o projeto começa num ano em que não se festeja uma data redonda: foi em agosto de 1981 que Neil Tennant e Chris Lowe se conheceram, passam 33 anos do primeiro single (e primeiro êxito, diga-se), West End Girls, o primeiro álbum Please é de março de 1986 — e este catálogo arranca com a edição dos sétimo, oitavo e nono álbuns dos Pet Shop Boys. 

Neil e Chris focam-se num período criativo que percorre 11 anos de produção: de 1996 a 2007 — onde também houve tempo para um musical, Closer to Heaven (2001), uma coletânea de sucessos, PopArt (2003), ou uma obra instrumental composta para acompanhar o clássico do cinema mudo soviético, Battleship Potemkin (2005).

Lowe confessou agora ao The Times que estes três álbuns são os seus três preferidos dos Pet Shop Boys. Tennant também se disse "sempre surpreendido" sobre o "quão bons eles são". Talvez seja exagero promocional. Afinal, Release é ainda hoje o álbum com mais fragilidades de uma obra já extensa de três décadas, apesar da presença do ex-Smiths Johnny Marr, nas guitarras (ou se calhar por causa disso...). E apesar de Nightlife e Fundamental arrumarem nas suas versões originais alguns dos melhores exemplos da pop apelativamente dançante e também socialmente comprometida dos Pet Shop Boys.

No libreto que acompanha esta edição prolixa, Neil explica abundantemente o lifting aplicado no som dos britânicos com este Release. "Nós decidimos a determinada altura que o álbum anterior [Nightlife] era o fim dos velhos Pet Shop Boys e que íamos fazer uma coisa radicalmente diferente. Era uma coisa muito do Chris, isto." Queriam fazer canções simples e com guitarras, para evitar o som previsível dos Pet Shop Boys, atreve-se a explicar Tennant. O mais velho dos rapazes, hoje com 63 anos, acaba por desvalorizar o som mais despido que o álbum ganhou com as guitarras. "As pessoas falam muito do 'solo de guitarra' em Love Is a Catastrophe, mas foi tocado no órgão", apontou Neil.

Voltemos atrás, a Nightlife — o sucessor de Bilingual, a experiência luxuriante em que os britânicos flirtam com a música da América Latina —, que acompanha a composição das canções para Closer to Heaven, peça estreada no londrino Arts Theatre em 2001.

O álbum do fim do milénio antecipa alguns dos temas dessa peça, mas não se resume a uma banda sonora exclusiva do musical de Jonathan Harvey. É antes uma saudação ao século XXI, que já ali espreitava, que nos trouxe como cartões-de-visita dois dos singles essenciais desta história de 30 anos, que são I Don't Know What You Want But I Can't Give It Any More ou New York City Boy, por entre as orquestrações negras de Craig Armstrong, os sons das pistas que Rollo e David Morales conheciam como a palma da mão (são eles os três produtores de Nightlife) ou a colaboração vocal de Kylie Minogue em In Denial.

Os dois álbuns extra de Further Listening que acompanham a edição de Nightlife ajudam a descobrir mais temas do musical, alguns cantados até aí apenas pelo casting da peça, e a vontade sempre presente de experimentar, esticar, reler, remisturar e rever canções próprias e de outros. Por isso, ouvimos um divertimento como Paris City Boy, pastiche delicioso de New York City Boy, em que se substitui a Sétima Avenida pelos Campos Elísios, mesmo que num francês macarrónico que muitos não entenderiam e que "foi uma pura perda de tempo", mas "divertido". Ou a colaboração com Elton John emBelieve/Song for Guy - o mesmo Sir Elton John que os volta a acompanhar em In Private e Alone Again, Naturally nos dois volumes de Further Listening que se juntam a Release.

Fundamental esteve para se chamar Fundamentally e para ser fundamentalmente eletrónico, mais uma rutura com o som de Release, com catchy pop songs, que soassem muito eletropop, com sintetizadores gordos e sujos, nada como o som limpinho dos Kraftwerk, sem house ou sentimentos humanos.

Acabou por ser uma obra feita de orquestrações, na qual o produtor Trevor Horn, que se foi impondo ao longo das gravações, ficando como responsável pelo som cheio do álbum. "Nós estávamos sempre a dizer ao Trevor: "Nós somos um duo eletrónico"", recorda Neil. Ao contrário de Nightlife — na qual a música clássica irrompia, por exemplo, em Happiness Is an Option —, neste Fundamental, Neil e Chris não queriam uma cantora de ópera, como desejava Horn. "Este álbum não era sobre uma cantora de ópera. Mas depois, obviamente, o Trevor punha uma orquestra em tudo."

Estes três discos são obras que também se leem. Os libretos que os acompanham são longas conversas sobre cada um dos álbuns e nos quais Tennant e Lowe se demoram a explicar as canções, as histórias à volta de cada uma delas. Como a de We're the Pet Shop Boys, com a letra de um fã, que atravessa alguns dos títulos do duo e coloca um casal a olhar para os anos 1980, quando os dois gostavam dos Pet Shop Boys. "I close my eyes and see you/ better than before/ then I feel you touch me/ and it's 1984." Estes rapazes prometem continuar a tocar(-nos) por mais uns anos. E sempre com mais para ouvir.

[publicado no DN de 29/7/17]