Maio 24, 2017
Twin Peaks. Já estranhámos, agora continuamos a entranhar
Miguel Marujo
É o regresso mais esperado do ano. A série de Mark Frost e David Lynch chega com muitas pontas soltas à espera de mais partes
É o regresso mais esperado do ano televisivo — e os fãs esperaram mais de 25 anos: Twin Peaks, a mítica série criada por Mark Frost e David Lynch, está de volta. Já se estreou nos Estados Unidos e no domingo chega ao pequeno ecrã em Portugal (no TV Séries).
É um regresso demorado a Twin Peaks, constata-se no primeiro episódio, ontem mostrado ao início da noite a uma plateia de jornalistas e fãs. A cidade da trama da série exibida em 1990 e 1991 vai pontuando a ação deste regresso da obra mas o espectador é levado também a Nova Iorque e a Buckhorn, no Dakota do Sul, em histórias paralelas que, por enquanto, não nos explicam o que podem ter que ver com Twin Peaks, mas que têm tudo a ver com o universo lynchiano.
Nuno Markl, o radialista que colecionou cromos numa caderneta sobre "tudo o que nos fez espernear de prazer", introduziu ontem com visível prazer a exibição desta nova temporada (e não é suposto, segundo Markl a citar Lynch, falarmos em "episódios" ou "temporada", mas já lá vamos). Este regresso é "mais David Lynch do que nunca", atirou — e é: já tínhamos estranhado este objeto televisivo feito de cinema dentro, no início da década de 1990, agora continuamos a entranhar, num universo que vai desconstruindo uma narrativa em torno da morte de uma jovem de Twin Peaks, Laura Palmer, e desvelando uma pequena comunidade que vive enfiada entre segredos, bizarrias, árvores e montanhas.
Para trás ficaram 30 episódios de como fomos descendo por aquele buraco de Alice no país das maravilhas, na comparação feliz de Markl, oito "maravilhosos" episódios numa primeira temporada e 22 numa segunda que se prolongou para lá do desejável e apresentando a resposta à pergunta que atormentava o agente do FBI Dale Cooper e todos nós, espectadores: "Quem matou Laura Palmer?"
Neste regresso, a narrativa desconcerta-nos entre o humor e o terror, entre o desejo e o surreal. É Lynch, como já tínhamos experimentado em Estrada Perdida (1997), Mulholland Drive (2001) ou Inland Empire (2006), que nos leva por uma viagem dos sentidos e sem grande vontade de nos ter de explicar tudinho. Por enquanto, o benefício da dúvida vem do facto de se tratar da "primeira parte" de "um longo filme de 18 horas" (e é assim que o realizador apresenta agora Twin Peaks), com muitas pontas soltas, sem preocupação de as atar para já — algures saberemos.
Este regresso à série e à cidade fez-se também de percalços: David Lynch ressuscitou o projeto, saiu dele e regressou para completar estas 18 novas partes atrás das câmaras, mas também a desenhar o som. Talvez por isso, o Gigante que conhecíamos dos sonhos da série original regresse logo no início para avisar o agente Cooper: "Escute os sons."
Escutemos também: com o genérico, aquelas letras transparentes envoltas num verde forte, regressa a banda sonora de Angelo Badalamenti, aquelas guitarras e sintetizadores a marcarem os passos de uma cidade envolta num crime e em mistérios de muitos dos seus habitantes (e ontem já revimos a Mulher do Tronco).
Não sabemos ainda o que vai ser desvelado neste novo Twin Peaks. Naquela sala de pesados cortinados vermelhos e chão de mosaico, o agente Cooper ensaia uma resposta aos avisos do Gigante: "Eu entendo." Aquele homem quase disforme responde-lhe: "Está muito distante." No final desta primeira parte, só podemos concordar.
[texto originalmente publicado no DN de 23 de maio de 2017]