Uma longa noite de memórias boas com os Cure
Há coisas que não se explicam ou são indizíveis: amores de verão, danças adolescentes ou canções que trauteamos pela vida fora. E há coisas que não se explicam, apenas se cantam e dançam, como esta terça-feira à noite em que os Cure nos apresentaram o nosso álbum de memórias, das coisas que não conseguimos explicar.
Foi uma noite assim. Os Cure abriram a porta a uma multidão de amigos, mostrando-lhes velhos álbuns de fotografias, demorando-se em episódios que muitos já não se lembram, mas cujas histórias se ouvem com regalo na voz de Robert Smith. Pelo meio outras canções eram cantadas por todos, mas seria já na hora final de concerto que a festa se faria num coro de coreografias espontâneas, de braços no ar e telemóveis a filmar.
Sem álbum novo desde 2008, sem êxitos reconhecidos desde os anos 1990, a banda britânica de Robert Smith levou ao Meo Arena, em Lisboa, um longo desfile de canções em que tocaram, nas quase três horas de concerto, grande parte da sua discografia, com direito a um tema inédito, Step Into the Light, que, desde maio, tem sido tocado nesta digressão.
Com 40 anos de história a ser celebrada, a banda tocou canções de 13 dos seus álbuns. A primeira metade do concerto de 16 canções (que abriu com Open e fechou com End, ambas do álbum Wish, de 1992) deixou de fora muitos dos êxitos que os Cure colecionaram nos anos 1980 e 90, guardando-se para os três encores quase tantas outras canções, numa sucessão de 15 temas que fizeram a delícia dos corpos e da memória.
Logo com o segundo tema, All I Want, da obra prima que é Kiss Me, Kiss Me, Kiss Me (1987), percebeu-se que o grupo trazia uma barragem sonora em que as guitarras tiravam o pó aos trejeitos mais pop de temas como Hot Hot Hot!!! ou The Caterpillar. Não facilitando na escolha dos temas, In Between Days e Pictures of You seriam exceções nessa primeira metade do concerto. E foi já a fechar o primeiro encore, com A Forest, opus maior de Seventeen Seconds (1980), num longo diálogo de guitarra, baixo, bateria e palmas que a festa se soltaria definitivamente no Meo Arena.
Veio então mais um "obrigado" de Robert Smith e Fascination Street, dessa pérola pop que é Disintegration (1989), para o vocalista da voz que se mantém impecável, de cabelo sempre despenteado e lábios muito pintados dar um ar da teatralidade que se lhe conhecia dos palcos e dos telediscos (era assim que se dizia no tempo destas memórias).
Freakshow antecedeu a imensa festa de Friday, I'm In Love, para uma festança sem parar: Just Like Heaven, Boys Don't Cry e (no último encore) Lullaby, Hot Hot Hot!!!, Close to me e Why Can't I Be You? a fechar, batia a meia-noite.
Ain't no cure for love, não há cura para este amor, como cantava Cohen. Por isso, o melhor é continuar a abrir álbuns, com memórias destas, sem ter pressa, sem estar sempre à espera de ouvir uma novidade. Quem precisa de novidades quando as recordações são tão boas?
[crónica publicada no DN online, fotos de Alexandre Antunes/Everything is New]