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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Fevereiro 27, 2015

Leonard Nimoy (1931- 2015)

Miguel Marujo

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Nimoy reflects on Spock's death

I thought everything was managed in excellent taste. I feel proud. When it was first suggested to me that Spock would die, I was hesitant. It seemed exploitative. But now that I've seen how it was accomplished, I think it was a very good idea.

Leonard Nimoy in Associated Press

Fevereiro 24, 2015

O boné do operário

Miguel Marujo

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Uma semana depois da criação do cardeal de Lisboa, Manuel Clemente, é prematuro antecipar que mudanças trará esta nova responsabilidade ao seu magistério. Há dias, nas páginas do Diário de Noticias, um padre lisboeta, Vitor Gonçalves, recordava que o Papa, vindo de perto do fim do mundo, «quase que transformou o barrete cardinalício num boné operário».

Regressado a Lisboa como patriarca, no dia em que nos Jerónimos cumprimentou um a um os fiéis que celebraram consigo a entrada na diocese, Manuel Clemente disse de si que era «um homem expropriado pela utilidade pública». Agora ao receber o barrete, que o levará a ficar mais perto de Francisco, como seu apoio e sustentáculo, talvez o bispo de Lisboa o assuma como o boné de um operário. O país precisa.

O cardeal-patriarca recordou várias vezes, na sua primeira conferência de imprensa, já investido no cardinalato, na segunda, dia 16 de fevereiro, a homilia do Papa na missa da véspera. E aí o Papa foi duro aos ouvidos dos novos cardeais, pedindo-lhes mesmo que saíssem «da casta»: «Não se sintam tentados a estar com Jesus, sem quererem estar com os marginalizados, isolando-se numa casta que nada tem de autenticamente eclesial».

Francisco quer pois recentrar a prática de uma Igreja, que tem na opção preferencial pelos pobres a chave do seu magistério. E ao pedir aos cardeais que abandonem os seus paços e se deixem inquietar pelos marginalizados, o Papa recordou entre estes os desempregados. Uma realidade demasiado próxima do que se vive no dia a dia em Portugal. Logo: é uma interpelação direta que o cardeal-patriarca terá de aprofundar no tempo e na obra da diocese.

Manuel Clemente parece já ter assumido também esse discurso. Na sua mensagem da Quaresma, o patriarca notou que «mesmo alguns sinais de recuperação económica demoram em repercutir-se na vida e no estado de espírito de muitas pessoas e famílias, que por excessivos encargos e falta de trabalho e perspetivas não conseguem satisfazer necessidades básicas, nem olhar com otimismo o futuro, especialmente os mais jovens». O boné do operário parece ser também o seu.
[texto de opinião publicado em Fátima Missionária]

Fevereiro 19, 2015

Um tango e uma novena

Miguel Marujo

Já não é novo constatar, uma e outra vez, como o Papa, este Papa Francisco, está a mudar as coisas na Igreja de Roma - e a partir daí para todas as outras igrejas locais. O Consistório deste fim de semana é mais uma dessas mudanças, visível na criação de cardeais em pontos do mundo que até aqui passavam ao lado da Santa Sé, como Cabo Verde, Tonga ou Myanmar (o nome atual da Birmânia). Ou outras mudanças mais imperceptíveis, como a de uma linguagem mais viva e dessacralizadora, que simplifica a mensagem cristã e abala a rigidez de uma Cúria Romana sempre formalista, quando pede aos novos cardeais que não se deixem turvar pelo poder, ou como escreveu Francisco o "espírito de mundanidade que embriaga mais do que a aguardente em jejum".

Francisco quer reformar a Igreja, já se sabe, simplificando estruturas, abrindo mais as portas a leigas e leigos, com os olhos postos no Sul, como o tango da sua Argentina natal, Vuelvo al Sur. Regressar ao Sul, olhar para as periferias, como fez há dias na visita inesperada a um bairro de lata de Roma, a sua diocese. A mesma periferia que a Igreja de Roma tantas vezes esquece, paredes meias com esta realidade, mas paredes dentro com vários escândalos.

Foi esta periferia que o vice-primeiro-ministro usou para tentar convencer o Papa a visitar Fátima em 2017, falando de uma aldeia perdida num Portugal atrasado no início do século XX e esquecendo o recato necessário de um governante de um país republicano e secular, ao falar de um "acontecimento" que é antes ordem da fé, como são as "aparições de Fátima". Porventura, seria mais acertado falar das periferias que se instalam na Europa, quando o défice é o novo altar da política. Mas aí talvez o discurso de Paulo Portas já não seria tão alinhado com o do Papa.

[publicado no DN de domingo passado, dia 15, com o título Vuelvo al Sur]

Fevereiro 17, 2015

Ir a Roma e ver os sem-abrigo

Miguel Marujo


[foto Octávio Carmo/Agência Ecclesia]

 

É ditado popular que nem todos cumprem: ir a Roma e ver o papa. Mas é impossível não ver os sem-abrigo, nos quais quase tropeçamos nas arcadas de edifícios do Vaticano e da cidade eterna. São muitos, tapados por cobertores, que escondem o rosto e a miséria. De dia, vê-se que esses muitos são também imigrantes que procuraram na Europa a vida que a guerra, a fome e a pobreza lhes roubaram nos seus países de origem.

Estamos no país de Lampedusa, a ilha-cemitério de imigrantes que arriscam a travessia do Mediterrâneo, onde o Papa chegou primeiro que qualquer responsável europeu. Estamos na cidade onde Francisco resolveu instalar duches nas colunatas vaticanas para que os sem-teto de Roma possam tomar banho. Parece pouco, é pouco: uma pequena gota de água que se gasta na dignificação de homens e mulheres que vivem nas ruas. Mas é um gesto que dignifica mais que muitas políticas desta Europa-fortaleza. Que tem em conta homens e mulheres, que não se perde em números, não atira só esses números para a mesa em qualquer debate político, para justificar as opções de governos que preferem os mercados às pessoas. É um gesto de um homem que já na sua Buenos Aires natal ia ao encontro dos pobres, dos que estão na margem, dos que se escondem debaixo de cobertores. E que em Roma já repetiu este gesto.

É esse também o discurso que Francisco quer recentrar na prática de uma Igreja - que tem na opção preferencial pelos pobres a chave do seu magistério - ao pedir aos cardeais que abandonem os seus paços e se deixem inquietar pelos marginalizados. Entre estes, o Papa recordou os desempregados. Muitos deles, por essa Europa fora, dormem na próxima noite ao relento e ao frio. Sem emprego, caíram nas ruas. Com troikas, desesperam na pobreza. Talvez os governantes europeus devessem vir mais a Roma, mas não para ver o papa.

[publicado no Diário de Notícias, a 16 de fevereiro de 2015]

Fevereiro 11, 2015

"Gracias, Felipe"

Miguel Marujo

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«O agradecimento escreve-se em espanhol – “Gracias, Felipe – “porque há alternativa!”, com direito a exclamação. António Costa remata assim o prefácio à edição portuguesa do livro do antigo secretário-geral do PSOE espanhol, Felipe González, À Procura de Respostas (ed. Matéria-Prima), no qual sublinha que “a utilização no título do plural ‘respostas’ é, em si só, uma declaração política da maior importância”.

A importância está nos detalhes, aponta: o plural “significa a negação da resposta única, da natureza de inevitabilidade com que alguns procuram maquilhar as suas opções profundamente ideológicas”. Sem nomear, está aqui a sua crítica ao governo de Passos Coelho. Mesmo que Costa remeta para a Europa, partindo da análise que o antigo primeiro-ministro espanhol faz nesta sua obra, agora traduzida em Portugal, sobre a “implosão do sistema financeiro” que “procurou disfarçar-se na crise das dívidas soberanas”.

“Felipe González levanta-se contra a resposta neoliberal que tem inspirado a política europeia e lança as bases de uma nova liderança política social-democrata”, acrescenta o líder socialista português. E Costa defende “que há um outro caminho para prosseguir o ideal europeu e que esse caminho passa por uma Europa mais forte e mais solidária”. O secretário-geral do PS regista que “alguns quiseram, no seu início, e por óbvias conveniências, fazer crer que esta era uma crise nacional. Não é, nunca o foi. E só sairemos dela com uma resposta global”.

Já o socialista espanhol, no prólogo à edição portuguesa, recupera uma “imagem expressiva” de Durão Barroso: de que “fora necessário fazer ao mesmo tempo o trabalho de ‘bombeiros’ e de ‘arquitetos’”, perante a crise instalada na Europa, desde 2008. Mas a União Europeia (UE) e a zona Euro “reagiram pouco, tarde e mal”, e com o incêndio, os bombeiros só chegaram quando já estava “tudo ou quase tudo” destruído e os arquitetos esqueceram a necessidade de reconstruir o edifício da UE. E conclui: “Quando observo a situação de Portugal (...) pergunto- me, procurando respostas, se alguém acredita de boa-fé que a situação social, económica ou política melhorou nestes anos com as políticas austericidas dos resgates.” António concorda com Felipe.»

[texto publicado hoje no Diário de Notícias]

Fevereiro 06, 2015

Bob canta Frank. O respeitinho é muito bonito – e bom

Miguel Marujo

 

Foi lançado esta semana o novo álbum de Dylan, que parece surpreender mais uma vez ao gravar dez temas popularizados por Sinatra. Este é o texto que publiquei na segunda-feira passada no Diário de Notícias.

 

O respeitinho é muito bonito. Quem o diz é Bob Dylan que, aos 73 anos, se atirou a dez canções do cancioneiro americano, imortalizadas na Voz: sim, Bob canta no seu novo álbum dez temas interpretados, algures no tempo, há muito tempo, por Frank Sinatra. Não se esperem facilidades: os clássicos – e são clássicos de que falamos – não são os óbvios, como também não seria óbvio que Dylan surgisse assim, em formato de quinteto (três guitarras, um baixo e percussão) para uma voz despojada, sem disfarces.

“Adoro estas canções, e não vou desrespeitá-las. Estragar estas canções seria um sacrilégio”, admitiu o próprio na primeira entrevista sobre o álbum no site da AARP, a Associação Americana de Reformados. Assim se vê: o respeitinho é muito bonito. “Já todos ouvimos estas canções serem estragadas, e estamos habituados. De alguma forma, queres corrigir o errado”, acrescentou Bob Dylan.

Sim, todos ouvimos, de facto, estas canções estragadas. Mas neste regresso aos discos – é o 36º na carreira de Dylan – o que se ouve em Shadows in the Light, hoje lançado, é aquela voz velha e rugosa, no tom certo e com as palavras adequadas, que reconhecemos em Bob, apropriando-se destas canções também para o seu cancioneiro, naquilo que é o seu trabalho mais recente.

O americano do Minnesota não facilitou na abordagem. De I'm a Fool to Want You a That Lucky Old Sun, são 36 minutos em que Dylan não se livrou de pensar em Sinatra. Nem podia ser de outro modo, como o próprio admitiu na referida entrevista. “Quando começas, tens de ter Frank na cabeça. Porque ele é a montanha. E é a montanha que tens de subir, mesmo que só o consigas em parte.”

Apesar de toda esta reverência, o respeitinho de quem não quer estragar, Dylan ironiza com o facto de se arriscar a gravar estas versões. “Arriscado? Como caminhar através de um campo cheio de minas terrestres? Ou trabalhar numa fábrica de gás venenoso? Não há nada de arriscado em gravar discos.” Nestas comparações, só o crítico do Guardian parece desafinar ao afirmar que Bob se juntou, “talvez inadvertidamente” a um corrente iniciada por... Robbie Williams, quando provou ser possível vender sete milhões de cópias de um álbum de versões. Pedia-se mais respeitinho, neste caso.

Já Bob Dylan, que nesta obra apenas canta, recusa qualquer comparação. De um só fôlego: “Comparar-me a Frank Sinatra? Deve estar a brincar. Ser mencionado na mesma frase que ele deve ser algum tipo de grande elogio.” Modéstia que fica bem, vinda de alguém que sabe dar a volta aos temas e que, não fugindo à interpretação clássica dos clássicos (temos de ser redundantes), se ouvem agora como novos clássicos.

Estes avisos valem o que valem porque, na verdade, ninguém estará preparado para ouvir Dylan assim, em versão crooner, mesmo que o cantor sempre tenha surpreendido nestes mais de 50 anos de carreira, com mais ou menos reconhecimento da crítica e do público. E períodos de aversão quase mútua entre o americano e o público. Hoje, no ano em que passam 50 anos de Bringing It All Back Home e Highway 61 Revisited – também eles hoje verdadeiros clássicos do cancioneiro americano –, Bob Dylan troca às voltas a quem se vinha reconciliando com a sua obra. Há reedições nos escaparates, edições piratas recuperadas para a discografia oficial (com The Bootleg Series), compilações de luxo, o documentário de Martin Scorsese e álbuns que chegaram de novo aos tops. E há este álbum, que não é folk nem rock, mas em que se respira Dylan.

Das dez canções recuperadas agora para este álbum, que quebra um silêncio de Bob de quase três anos em álbuns – não se repetem compositores, só Sinatra é a referência que as une. E Frank é também autor de I'm a Fool to Want You, uma canção de 1951, composta com Jack Wolf e Joel Herro. Entre as (possivelmente) mais reconhecíveis, há Irving Berlin, que perguntou What I'll Do, em 1923, Why Try to Change Me Now, de Cy Coleman e Joseph Mccarthy, que Sinatra popularizou em 1959, e Stay With Me que foi composta por Jerome Moross e Carolyn Leigh e gravada e editada pela primeira vez por Frank Sinatra em 1963. É o cartão de visita do álbum de Bob Dylan.

Não se confunda o registo quase intimista deste conjunto de canções como monotonia. E a produção eficiente e discretamente bonita, entregue ao próprio, sob o pseudónimo já usado de Jack Frost, sublinha todas as notas. Em That Lucky Old Sun – o tal tema que encerra este novo capítulo de Dylan – escrita por Beasley Smith e Haven Gillespie em 1949, a voz sobe, empolga-se, os sopros acompanham a alegria e os versos finais. Bob Dylan rompe, por fim, nos acordes finais do álbum aquilo que até aí é quase ascético, no som e na voz.

Daqui a uns anos, talvez alguém possa dizer como Bob diz de Frank na entrevista já citada. “Eu próprio nunca comprei um disco de Frank Sinatra naquele tempo. Mas ouvia-o de qualquer forma – no carro ou numa jukebox. E certamente que Sinatra não era tão adorado nos anos 1960 como foi nos anos 40”, a década dourada em que as adolescentes suspiravam por Frank. “Mas ele nunca foi embora – enquanto que todas as outras coisas que pensámos que estavam para ficar, acabaram por ir embora.”