Vítor Bento não é caso único no Banco de Portugal (BdP) de um trabalhador que exerceu funções na administração de um banco comercial. José de Matos e Ana Cristina Leal, dois funcionários do banco central, estão em regime de licença sem retribuição na administração da Caixa Geral de Depósitos (CGD).
Segundo o Banco de Portugal, em setembro passado estavam “52 trabalhadores dos quadros com o contrato de trabalho suspenso por motivo de licença sem retribuição concedida para efeito de exercício de funções” no Banco Central Europeu (40 trabalhadores), na Autoridade Bancária Europeia (4) no FMI (1) e, sem especificar, “outras entidades nacionais e estrangeiras” (7).
A Lei Orgânica do BdP impede a acumulação dos cargos, mas com a licença sem vencimento a incompatibilidade é contornada. Quando acabarem o mandato, em 2015, José de Matos e Ana Cristina Leal podem regressar ao supervisor, retomando o seu vínculo laboral – afinal, nunca perderam a ligação ao regulador.
Segundo o BdP, a licença sem vencimento interrompe o vínculo laboral, o que explica que não há impedimento em assumir funções nas administrações de bancos comerciais ou outras instituições, que a Lei Orgânica do BdP proíbe. “Salvo quando em representação do Banco ou dos seus trabalhadores, é vedado aos membros do conselho de administração e aos demais trabalhadores fazer parte dos corpos sociais de outra instituição de crédito, sociedade financeira ou qualquer outra entidade sujeita à supervisão do Banco ou nestas exercer quaisquer funções”, lê-se no artigo 61.º da lei, o que impediria Vítor Bento ou José de Matos e Ana Cristina Leal de exercerem funções no BES/Novo Banco e na CGD.
Vítor Bento pediu a reforma, que lhe foi dada pela administração de Carlos Costa, mas depois não assinou os papéis para a reforma, como já noticiou o DN. Mas o BdP não controlou o facto de aceitar a nomeação de Bento para presidente do BES/Novo Banco, sem cuidar de saber se já tinha assinado os papéis. O banco central acrescenta que o economista solicitou “a prorrogação da sua licença sem retribuição até à data da sua passagem à reforma, o que foi autorizado”, sem “necessidade” de apresentar “novo pedido, tendo a licença concedida produzido efeitos até ao dia imediatamente anterior ao [seu] regresso”.
Sobre o seu percurso, o consultor da administração responde uma primeira vez ao DN que “NADA” (assim em maiúsculas), no seu caso, “é original”: “Há atualmente e houve ao longo dos anos, vários casos semelhantes.” E reiterou depois: “Estou a ser vítima de uma perseguição pessoal, como é fácil de ver pela sucessão de ‘ notícias’ que me visaram nos últimos dias. E nem percebo sequer qual é o ponto que quer fazer para além do ataque pessoal.”
Os dois administradores da CGD (que o DN questionou através do gabinete de comunicação da Caixa, sem resposta) saíram do banco central em 2011, no caso do então vice-governador, José de Matos, e em 2013, no caso de Ana Cristina Leal, muito longe dos 20 anos que esteve fora Vítor Bento – saiu em 1994, voltou agora em outubro.
O suposto contrato de Bento é explicado pelo BdP ao DN. “A lei orgânica estabelece efetivamente um regime de incompatibilidades para os seus trabalhadores e membros do Conselho de Administração. Todavia, conforme estabelecido no Código do Trabalho e nas convenções coletivas de trabalho aplicáveis, a licença sem retribuição suspende o vínculo laboral e, assim, todos os direitos, deveres e garantias das partes que pressuponham a efetiva prestação de trabalho, como é o caso.”
É esta distinção que leva a administração de Costa a defender que “assim confirma-se que não houve uma situação de facto incompatível dado que o dr. Vítor Bento não se encontrava em efetivo exercício de funções para o Banco quando exerceu funções no conselho de administração do BES/Novo Banco”.
Leituras diferentes em 2008 e 2014
Esta resposta de outubro de 2014 teve leitura diferente em 2008. Então perante um pedido do economista, o BdP procedeu ao seu “reajustamento profissional” na “carreira interna do Banco”, como se lê no comunicado da administração de maio de 2008. “Foi deliberado proceder ao reajustamento profissional do senhor dr. Vítor Bento na carreira interna do Banco, embora garantindo que dessa decisão não decorreriam quaisquer encargos adicionais quer para o Banco quer para o seu Fundo de Pensões.”
Agora, diz fonte oficial do BdP, “o período em que o dr. Vítor Bento esteve de licença sem retribuição contará para efeitos de reforma”, segundo o Acordo Coletivo de Trabalho do setor e o Acordo de Empresa, que “determinam que o tempo de licença é contado para efeitos de antiguidade, salvo no caso de acordo em contrário para efeitos de reforma”.
Este acordo entre as duas partes, prevendo a contagem do tempo, foi estabelecido com uma condição: o “pagamento por parte do dr. Vítor Bento da totalidade das contribuições para o Fundo de Pensões (quer a parte respeitante ao trabalhador, quer a parte respeitante ao empregador)”.
Argumentava a administração que o “reajustamento profissional anterior ao seu regresso ao Banco determinou um decréscimo de custos para o Banco de Portugal” e que o custo daquele reajustamento “foi suportado pelo dr. Vítor Bento no período de licença”. Ou seja: confrontado com o facto de uma possível incompatibilidade de funções, por ter presidido ao BES/Novo Banco, o BdP justifica-se com a suspensão do vínculo laboral, de “todos os direitos, deveres e garantias das partes”, mas em 2008 esse facto não impediu a instituição de rever a sua carreira, não esperando que Bento regressasse à efetividade de funções no BdP. Ao DN, fonte do banco notou que se trata de um processo de outra administração. Não é possível acrescentar mais nada ao que foi dito em 2008. E Vítor Bento também não disse agora mais.
[publicado no DN, a 2 de dezembro]