Pensamento. A obra de Bergoglio é curta e quase desconhecida, já a de Ratzinger é vasta. Tentámos descodificar os temas que aproximam e afastam os dois papas
Dois meses antes de ser eleito papa, Jorge Maria Bergoglio escreveu aos seus fiéis porteños. Estávamos na quarta-feira de cinzas, 13 de fevereiro, e nessa sua mensagem para esta Quaresma, o arcebispo de Buenos Aires sublinhava que “o sofrimento de inocentes e justos não deixa de nos esbofetear; o desprezo pelos direitos das pessoas e dos povos mais frágeis não nos são tão longínquos; e o império do dinheiro, com os seus efeitos demoníacos, como a droga, a corrupção e o tráfico humano, incluindo crianças, juntamente com a miséria material e moral são moeda corrente”.
Se ao Papa intelectual e académico que foi Joseph Ratzinger se atribuem cerca de 600 obras, Bergoglio parece resumir-se em 15 obras publicadas, todas em espanhol. O agora Papa Francisco ainda editou os diálogos entre João Paulo II e Fidel Castro, de acordo com a informação disponibilizada na Wikipédia. Apenas um destes livros atravessou o rio da Prata, para ser publicado em Espanha, e são porventuras as únicas páginas que a comunicação social tem dedicado alguma atenção nestes dias do novo pontificado. Em El Jesuita, livro-entrevista de Sergio Rubin e Francesca Ambrogetti, Bergoglio confronta-se com as acusações de alegada cumplicidade com a tenebrosa ditadura dos coronéis.
O seu pensamento traduz-se numa prática já proclamada ao mundo. Nos gestos despojados com que se apresentou na varanda de São Pedro e nas histórias espartanas repetidas desde a sua eleição: vivia num modesto apartamento em Buenos Aires, dispensou carro e motorista para se deslocar de transportes públicos.
Numa leitura de 15 anos de homilias e mensagens, desde abril de 1999, disponíveis na página da Arquidiocese de Buenos Aires (foi nomeado arcebispo em fevereiro de 1998), a atenção aos pobres, à educação e ao serviço prevalecem nas palavras deste homem. No primeiro texto de todos, da missa crismal de 1 de abril de 1999, Bergoglio dirige-se aos sacerdotes para lhes recordar que “o Pai se entrega inteiramente à sua família, em tudo e para todos: quando abraça, abraçando todos, justos e pecadores”.
No confronto com a modernidade, o Papa Francisco aproxima-se do seu antecessor, Joseph Ratzinger, até nas imagens de uma barca fustigada. Nas vésperas de se tornar Bento XVI, o cardeal alemão denunciava na missa do conclave de abril de 2005, a “ditadura do relativismo”. “A pequena barca com o pensamento dos cristãos sofreu, não pouco, pela agitação das ondas, arrastada de um extremo ao outro: do marxismo ao liberalismo até a libertinagem, do coletivismo ao individualismo mais radical, do ateísmo a um vago misticismo, do agnosticismo ao sincretismo”, apontava Ratzinger.
Já Bergoglio, meses antes, em outubro de 2004, referia-se a uma “cultura do naufrágio”, onde prevalecia “o reino da opinião, sem convicções”. “Não se conta com normas objetivas, não existe o bem ou o mal, mas sim vantagens ou desvantagens, numa retirada subjetiva dos valores. Nivela-se para baixo, avança-se pactuando. Todos opinam em igualdade de circunstâncias; tudo vale o mesmo.”
O direito à vida, que os dois tantas vezes afunilaram na defesa de uma moral sexual restritiva ou na recusa absoluta do aborto e da eutanásia, acaba por ter outra expressão, em outubro de 2011, por Bento XVI, ao sublinhar que “a libertação da submissão da fome é a primeira manifestação concreta do direito à vida”. Ou como apontava Bergoglio, em 2005, “os prazos da economia não têm em conta a fome ou a falta de escolas das crianças”.
Pobreza
“Os pobres são perseguidos por reclamar trabalho e os ricos aplaudidos mesmo fugindo à justiça” – Jorge Mario Bergoglio
“A Europa tem a sua responsabilidade. A economia não pode ser só lucro, mas também solidariedade” – Bento XVI
Aborto, eutanásia
“Lembro agora as crianças não nascidas, vítimas indefesas do aborto; nos velhos e doentes incuráveis, por vezes objeto de eutanásia; e tantos outros seres humanos marginalizados pelo consumismo e materialismo” – Jorge Mario Bergoglio
“Foi isso que o Papa João Paulo II fez: quando se defrontou com interpretações erradas de liberdade, sublinhou de forma inequívoca a inviolabilidade dos seres humanos, a inviolabilidade da vida humana da concepção à morte natural” – Bento XVI
Evangelização
“A religiosidade popular configura a identidade histórica: é a decantação de uma história de evangelização que integra de modo mais ou menos consciente uma multitude de elementos culturais e religiosos de muitos povos, raças e culturas” – Jorge Mario Bergoglio
“Quem anuncia o Evangelho deve ser humilde, não deve pretender obter resultados imediatos, nem qualitativos nem quantitativos, porque a lei dos grandes números não é a lei da Igreja” – Bento XVI
[texto publicado este sábado no Diário de Notícias]