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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Agosto 19, 2008

Os moles

Miguel Marujo

Havia ciganos, uns em tendas nómadas, outros sedentários em casas. Os pretos eram poucos, uns quantos num grande casarão pertinho da Vera Cruz, e alguns mais do básquete do Beira-Mar e do Esgueira, americanos, calmeirões enormes. Como o André, jardineiro ou homem do vestiário do Beira-Mar, atraiçoa-me a memória, que andava pelo estádio junto ao Ciclo e só nos ralhava se íamos para o relvado dar uns chutos na bola. O medo, medo mesmo, nós putos com mochilas e sapatilhas de poucas marcas, não era muita a escolha, Monte Campo para umas, Sanjo ou Le Coq Sportif para outras, devia ser isto, afinal foram os nomes que registei, mas dizia, medo mesmo era dos moles, assim como os ovos, mas moles, sem mais, de famílias pobres que viviam à beira ria, fora da cidade de betão, respigando como anfíbios da terra e do mar. Uns putos, da nossa idade, cara rude, navalha na mão, atacavam no parque que devíamos contornar pelo hospital, e assim atalhávamos caminho pela porta da morgue onde havia um frasco com um feto morto à janela, e nós íamos espreitar, mas os moles atacavam, diziam-nos os pais, os professores, os jornais e a televisão não, que isso era coisa que não chegava à imprensa vetusta lisboeta ou portuense, nem à estação única. Pronto, dos moles é que se devia ter medo, mesmo que depois nunca me tenha cruzado nos dois anos de Ciclo e idas pelo parque ou a contornar pelo hospital. O medo ficou, o preconceito lá germinava, lembro-me de uma reportagem do Tó para um jornal de lá, sobre eles, respigadores da terra e da ria, os moles, que afinal eram pobres. Nunca lhes vi navalha, nem se atravessaram lá. Mas o parque devia evitar-se. Cá para mim, era só para não vermos os namorados nos cantos escondidos pelas árvores.

Agosto 19, 2008

Sabes Sara,

Miguel Marujo

... perto da Curia tinhas a discoteca Três Pinheiros, na EN1, mas era coisa para se ir de carro. De resto, à Curia ia ver-se o parque em passeios de domingos, saídos de Aveiro. Depois, curva contra curva, subíamos ao Luso, onde se enchiam garrafões da água, ainda sem sabores a limão, e ao Buçaco, que algumas placas insistiam em escrever com dois ss. Com sorte não apanhávamos nenhum camião porque se não era seca prometida no banco corrido do Ford Cortina. Hoje já não vamos às termas, e estas agora são spas.

Agosto 18, 2008

Prata

Miguel Marujo

Adormeci com Vanessa em esforço, no segundo lugar. Acordei a achar que ela tinha falado a medalha. A prata é ouro no meio do deserto dos portugueses.

Agosto 15, 2008

A subsidiodependência, versão liberal

Miguel Marujo

Não se percebe a tábua de salvação que é para qualquer liberal o cheque-ensino. Desconfiam do Estado mas adoravam que o Estado lhes desse um cheque-ensino. Dizem-no em defesa de uma suposta liberdade de escolha (ainda que, depois, como bons liberais de direita, tremam com outras liberdades de escolha), mas o que no fundo querem é verem os seus filhos subsidiados nos colégios onde já andam. Porque, na realidade, num futuro de cheques-ensino, as famílias mais carenciadas e remediadas, a quase totalidade da classe média, continuarão a ver os seus filhos nas cada vez mais depauperadas (pelo próprio Estado) escolas públicas, enquanto que os senhores liberais de direita terão finalmente os seus filhos subsidiados nas escolas privadas. Mas eles são liberais, e o socialista sou eu.

Agosto 15, 2008

As ditaduras sempre tiveram um carinho pela manipulação da História

Miguel Marujo

A China "forjou" o momento de diversidade étnica na cerimónia de abertura. Apenas crianças da etnia Han, que constitui a maioria da população chinesa, participaram no número da cerimónia inaugural dos Jogos Olímpicos que deveria representar os 56 grupos étnicos do país, afirmou hoje fonte do grupo infantil de dança.
 

A falta de representatividade étnica é o terceiro incidente falso na cerimónia de abertura dos Jogos de Pequim, depois de a Organização ter admitido que a criança que encantou o mundo a entoar a música "Ode à Pátria Mãe" fez playback e que o fogo-de-artifício que foi exibido nas televisões de todo o mundo na noite da cerimónia de abertura foi gravado com antecedência.

[da Lusa]

Agosto 13, 2008

Preto e branco

Miguel Marujo

Se falo mal de Bush, sou anti-americano; se não quero a guerra contra o Iraque, por temer um atoleiro, sou vilipendiado como amigo dos infiéis, quem quer que eles sejam; se critico Guantánamo, só posso gostar de terroristas; se questiono o comportamento da polícia britânica na morte do brasileiro Jean-Charles Menezes devo estar a querer que os inimigos da civilização se infiltrem por todo o lado; se não engulo os disparos sistemáticos para o ar que acabam em corpos de ciganos, pretos e ladrões, estou contra a autoridade. Sempre me ensinaram a ver o mundo em muitas cores. Hoje, os supostos arautos da liberdade querem impingir-nos um mundo a preto e branco. Ai de quem duvidar: estamos contra eles.

Agosto 12, 2008

E se... (um país quase imaculado)

Miguel Marujo

É dos argumentos que leio até ao vómito final: se fosses tu com uma arma apontada, não dizias isso. Pois não. Repare-se: limitei-me a não tomar partido na euforia da morte de um tipo, que merecia a condenação em julgamento; e condenei uma "perseguição" muito mal explicada pela GNR.

Mas - voltemos ao início - de facto já tive uma arma apontada ao pescoço: uma naifa. Dois magalas, numa noite de Outubro de 1992, mandava Cavaco e Dias Loureiro nas polícias (dizia ele que andavam aí uns perigosos gangues de pretos, mudam-se os tempos, mudam-se as etnias). Os dois eram branquinhos, vieram por trás e agarraram-me com a faca bem encostadinha ao pescoço. Não havia negociadores nem snipers por perto, não havia ninguém aliás nas escadinhas do Lavra, e ainda hoje acho que um morador fugiu da janela.

Levaram-me a carteira com cinco contos, os documentos, ficou perdido o passe nas escadas, que levava no bolso. Ainda hoje lamento esse assalto, ainda hoje sei que nunca desejaria a morte deles. Tremi que nem varas verdes, espreitei pelo ombro durante meses...

A superioridade moral de uma democracia - sim há uma coisa assim! - é ser diferente da ditadura: por isso, um Estado democrático não pode ter uma GNR que actue como no caso do miúdo morto; nem um ministro que se excita felicíssimo pela morte de um cidadão, mesmo bandido. Guantánamo ou a barbárie ficam ao virar da esquina. A minha rua segue em frente.

Agosto 12, 2008

Tiro certeiro (a propósito de um comentário)

Miguel Marujo

Pressuposto errado, Maldonado: ao contrário do que diz, os media fazem muito alarido quando morre um polícia (e rejubilam, como rejubilaram nos últimos dias, com a morte de um ladrão). Outro detalhe: quantos polícias morrem por ano? E quantos "delinquentes" morrem com balas atiradas para o ar ou para os pneus?

Para rematar, o mais importante, aquilo que me importa ver discutido: o problema não é da autoridade do Estado Novo. Exactamente por vivermos e sermos uma democracia é que não podemos ficar contentes com estas actuações policiais. Na democracia, o poder de condenação não é do tiro certeiro, é do juiz. Na democracia, eu exijo que as polícias não se comportem como esquadrões da morte. Na democracia, eu não quero uma autoridade policial que actue como no Estado Novo. Isto é muito simples de aprender. O problema não é o alarido, o problema é a morte de uma criança de 11 anos.

Agosto 12, 2008

Tiro certeiro

Miguel Marujo

Com o país eufórico com os tiros certeiros, morre agora uma criança às mãos da GNR: os militares não têm a certeza de terem visto armas e dispararam para os pneus. A carrinha entrou aos solavancos e a maldita bala desviou-se.

 

Escusado será dizer que a populaça rejubila nos fóruns (nos comentários do Público, por exemplo). País imaculado, este. Retire-se o quase: esta gente é virgem, nunca pecou, adora atirar pedras. E balas.

Agosto 11, 2008

Um país quase imaculado (tempo cinzento)

Miguel Marujo

Há um criminoso que é abatido, logo o país aplaude o gatilho fácil. A justiça-justiceira é bem mais popular que os atrasos dos tribunais e o coro das saídas em "liberdade" de arguidos. A classe política rejubila com o tiro certeiro, o povo tem ali grandes líderes. O jornal mais vendido insiste que o sobrevivente (sedado e ventilado) tentou fugir do hospital, para acicatar a populaça e enlamear o jornalismo. Enquanto isso, o Presidente que veio a Lisboa entregar uns prémios e aproveitou para falar ao país de um tema obscuro continua no reino dos Algarves preocupado com as hordas de paparazzi que lhe sobrevoam a cabeça.

Agosto 09, 2008

O país está mais descansado. Cavaco leva 20 polícias ao teatro. "Uma forma de incentivar artistas"

Miguel Marujo

«O Presidente da República assistiu sexta-feira à noite, no Pavilhão Arena, em Portimão, ao espectáculo "Jesus Cristo Superstar", encenado por Filipe La Féria, que pelo oitavo dia consecutivo apresentou lotação esgotada. Acompanhado pela mulher, Cavaco Silva, de férias em Albufeira, destacou a "grande qualidade do espectáculo", referindo que a sua presença "é também uma forma de incentivar os artistas portugueses". No final do espectáculo, depois de cumprimentar os actores nos camarins, o Chefe de Estado descerrou uma placa que assinalou a sua passagem pelo Arena de Portimão. A sua deslocação ficou marcada pelo forte dispositivo de segurança, onde eram visíveis cerca de duas dezenas de elementos da PSP fardados e à civil, dentro e nas imediações do pavilhão.»
[da Lusa]