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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Dezembro 22, 2003

O eixo do mal (antes da noite do Bem)

Miguel Marujo

Há dois pesos e duas medidas na leitura dos dias. Diz-nos, brilhantemente, o Diogo, já aqui em baixo. José Manuel Fernandes não é só paladino da ocupação do Iraque. É o melhor exemplo de quem tem muitos pesos e muitas medidas (explica Diogo), talhados pelo alfaiate das conveniências políticas.

À reflexão aqui apresentada acrescento uma outra, antes do "sumiço" que levaremos todos em noites de Natal: por estes dias, foi divulgada uma importante notícia sobre a adesão da Líbia ao tratado de não-proliferação de armas nucleares e ao abandono de qualquer empenho na concretização de um programa de armas de destruição (ainda que, observem os peritos internacionais, faltasse muito à Líbia e a Kadhafi para obterem qualquer destas armas e que só o conseguiriam com ajuda externa).



O silêncio de quem defendeu a guerra contra o Iraque (JMF, incluído) sobre esta notícia explica-se facilmente: durante nove meses, os Estados Unidos preferiram a via negocial, do diálogo e (horror dos horrores!) da solução pacífica para um problema que, ainda não existindo, poderia acontecer. Sabiamente, a CIA negociou e arrematou uma paz duradoura no Norte de África, com uma ditadura sanguinária, capaz de muitas atrocidades (ou será que JMF também a "desvaloriza", comparando com Saddam, esse novo Estaline ou Hitler, como a Direita agora gosta de dizer?).



No Iraque, atrevemo-nos a dizer, a paz era possível sem a guerra, a queda de Saddam seria uma etapa inevitável com outros compromissos que fossem assumidos pelos Estados Unidos e pela Inglaterra. Mas a pressa do petróleo e os dólares da reconstrução voaram mais rápidas que a própria sombra das nunca-encontradas-armas...



A (des)propósito de Estaline e dos dois pesos e duas medidas, muita blogosfera (também à Direita), tem rejubilado com o novo romance de Martin Amis, «Koba, o Terrível». Por causa do retrato impiedoso do estalinismo. Pena que não se lembrem também de «Experiência», como recordou Mário Mesquita no Público, onde escreve: «O Texas não parece, por vezes, assemelhar-se à Arábia Saudita, com o seu calor, a sua riqueza petrolífera, os seus lugares de culto transbordantes e as suas execuções semanais?».

Dezembro 22, 2003

Luanda, Lisboa e Washington

Miguel Marujo

José Manuel Fernandes, "paladino da ocupação do Iraque" nas palavras do Miguel Marujo, e uma das pessoas para cujos rendimentos mais lamento contribuir, assina o Editorial da edição do Público de hoje. O texto intitula-se «Durão no casamento de Luanda» e, basicamente, diz o seguinte: «Num paí­s onde se morre de fome e que depende da ajuda internacional, uma festa com o luxo da do casamento da filha de José Eduardo dos Santos é um escândalo. Mas que contou com a participação cúmplice de Durão Barroso. Que vergonha...»

Desengane-se quem chegou a pensar que me preparo para defender José Eduardo dos Santos da opinião de José Manuel Fernandes. Deus me livre! Mas, não consigo deixar de perguntar a mim mesmo e a quem ler estas linhas a razão de, aparentemente, a Rua Viriato ter tão boa vista para Luanda e tanto nevoeiro a encobrir a vista do resto da cidade de Lisboa. Ou de Washington.

Porque é que JMF se envergonha da viagem privada, de "amigo", de Durão Barroso a Luanda e não se envergonhou, da mesma forma, da viagem oficial, de "aliado", de Durão Barroso à Base das Lajes?

Porque é que JMF acha escandaloso o luxo do casamento de Tchizé e não achou, da mesma forma, escandaloso o luxo do aparato militar utilizado nos bombardeamentos, invasão e ocupação do Iraque?

Porque é que JMF tem palavras tão duras para com este acto de Durão Barroso, quando foi, ele próprio, cúmplice do envio de "tropas" pagas a peso de ouro a partir de um país onde o salário mí­nimo não chega a 360 Euros por mês?

Acaso nos EUA e em Portugal não se morre de fome? Ou de frio? Ou será que a miséria dos angolanos vale mais que a dos norte-americanos e dos portugueses? Ou os angolanos dizimados pela guerra valem mais que os soldados norte-americanos e os civis iraquianos a quem acontece o mesmo?

Confesso que não entendo.

Que o primeiro-ministro português se deveria abster de praticar actos de vassalagem junto de José Eduardo dos Santos, eu entendo. O que não entendo é a razão pela qual JMF não faz o mesmo raciocínio quando o acto de vassalagem tem no seu centro um senhor chamado George W. Bush...

Porque JMF é mesmo assim. Tal como acusa os outros de fazer, tem vários pesos e várias medidas. Não se preocupa muito com a coerência de pensamento e de discurso, desde que o que pensa e escreve sirva para defender e alimentar a sua visão do mundo, feita a preto-e-branco, e da humanidade, dividida entre bons (os seus) e maus (os outros). JMF é daqueles que não teria hesitado em lançar a primeira pedra... mas talvez escrevesse um editorial contra a pena de morte no dia seguinte.

JMF dirige um dos melhores jornais portugueses com uma tiragem média que ronda os 70.000 exemplares; JMF foi colocado no pedestal dos comentadores televisivos e radiofónicos; JMF modera debates, comenta conferências e apresenta livros. JMF há-de ter algumas qualidades, mas isso não o coloca acima dos comuns dos mortais. Como jornalista profissional que é, deveria, ele também, abster-se de praticar actos de tal arbitrariedade.