Maio 24, 2013
O diabo em nós
Miguel Marujo
«Nessa cadeira onde você está, já esteve um homem que me ia partindo isto tudo.» Um exemplo de pessoas que se dizem com o diabo no corpo, contado ao PortugalDiário por Joaquim Carreira das Neves.
«Tire-me o demónio», pedem muitas pessoas que se dirigem a este padre. Ele recusa: «Não faço exorcismos.» Mas estuda o fenómeno e acompanha pessoas que se dizem possuídas. Como também acontecia com a pequena Regan no filme de William Friedkin, «O Exorcista», que é tomada pelo diabo.
O filme chegou devagarinho desta vez, sem o escândalo da estreia: a nova versão mais longa e em cópia restaurada estreou recentemente nas salas de cinema e em DVD. O que se vê e ouve no filme «é humano, é natural, não tem que ver com o diabo», explicou Carreira das Neves, professor da Universidade Católica e exegeta bíblico (um investigador que interpreta a Bíblia).
A miúda de 12 anos fala com voz masculina, automutila-se com um crucifixo e tem uma força descomunal capaz de arrastar homens e mobílias. Um comportamento humano e natural. Mas quem é que está no corpo de Regan? O diabo, responderão. Ou o mal. Que é a mesma coisa, acrescenta Carreira das Neves. É nesse sentido que apontam as referências bíblicas aos demónios, a Satanás e ao diabo. «São entidades sem personalidade ontológica, mas funcional. Temos que concluir que são símbolos», clarifica. O diabo não existe como pessoa, «é mesmo uma figuração».
Ser exorcista hoje
Faz então sentido exorcizar? É como que «um placebo», algo que alivia a dor com fins sugestivos ou morais, refere o padre franciscano. A Igreja tem um novo rito do exorcismo, apresentado em 1999, quando não era alterado desde 1614. Baseado num conjunto de orações, esta intervenção exorcista só acontece depois de a ciência, toda a ciência, não apresentar uma solução para disfunções psicológicas. «Aquilo é tudo histerismo», sublinha. A figura do padre é então fundamental porque a pessoa acredita que está possuída. Mas o rito deve ser sempre devidamente acompanhado por médicos.
Carreira das Neves critica a posição da Igreja: «Devia tomar uma posição mais radical [sobre os exorcismos]. Muita gente está a sofrer por causa desta crença.» O que é preciso, antes, é estar disponível para ouvir as pessoas. «Elas precisam de deitar para fora.» Falar, falar, falar.
Para não culpar Deus, culpa-se o diabo e os demónios. E não é coisa da “idade das trevas”: nesta época moderna e pós-moderna, as pessoas vão cada vez mais à bruxa e ao cartomante. «É um problema cultural», comenta o professor universitário. Afinal, em épocas de crise, de depressão económica, política e religiosa, «tudo serve para explicar o mistério da doença, do mal, a Morte». De tal forma que é frequente as pessoas perguntarem: «Que mal fiz eu a Deus?»
A história do diabo – acreditar no diabo e na incorporação do diabo – começa em épocas de crise: os judeus no exílio, desesperados pela libertação que não chegava (afinal, Israel esteve sob o jugo político de estrangeiros do século VI a.C. até... 1948, ano da independência), vêem-se nas mãos de Lúcifer. É nesta altura que nasce a literatura apocalíptica.
«O Exorcista», o filme, permite também um olhar sobre uma América em crise: 1973 seguia-se à crise petrolífera do ano anterior que lançou o mundo numa nova depressão económica; os soldados americanos continuavam a morrer no Vietname; Nixon era apanhado no escândalo de “Watergate”.
Hoje, as pessoas voltam de novo para o demónio. «Facilmente o arquétipo do demónio entra numa pessoa em disfunção», diz Carreira das Neves. «As pessoas já não acreditam como acreditavam na ciência.» E a pequena Regan já não assusta tanto: é humano aquilo que lhe acontece.
Diabos, demónios e Satanás
São nomes que habitualmente usamos como sinónimos, mas que apresentam ligeiras diferenças. Demónio vem do grego daimónion, «génio mau», o maligno, enquanto que diabo vem do grego diábolos, ou seja, «caluniador», aquele que divide e nos afasta de Deus. Do hebraico satán, Satanás significa «inimigo, adversário» de Deus, aquele que evita a felicidade dos homens.
[artigo originalmente publicado no PortugalDiário a 3 de Junho de 2001, a propósito de uma tolice recriada em torno de um gesto de oração do Papa.]