Agosto 28, 2004
Um barco contra a interrupção voluntária do diálogo
Miguel Marujo
[voltou o soundbyte, voltaram as posições extremadas. mas a visita do barco do aborto merecia mais que um portas-avião a reboque do facilitismo. e mais do que a mera agitação das águas. com o país a banhos, retomo um texto que publiquei a 2 de Junho na escandalosamente católica «terra da alegria»]
Há um debate por fazer na sociedade portuguesa - o do aborto. Longe do soundbyte que foram os momentos legislativos e o referendo de 1998. Assente a poeira, retomo esta questão, por me parecer importante reflecti-la a partir de um lugar como esta Terra.
A interrupção voluntária de diálogo joga-se entre a barriga em que só a mulher manda e uma concepção da vida que, no limite, pode excluir outras vidas. Não parece nunca haver um caminho diverso destes que opte, serenamente, por encontrar uma tábua de compromisso - necessária e desejável. Quanto a mim, não é contraditório afirmarmo-nos «pela vida» e simultaneamente procurar-desejar-conseguir a despenalização da mulher.
Explico melhor a recusa da habitual "dicotomia" que tem prevalecido nas discussões sobre o aborto. Recuso a ideia de que é a mulher quem manda na sua "barriga". Com este argumento, há uma desresponsabilização séria do papel do homem na vida a dois. Já bastam as situações em que deliberadamente o homem foge a essas responsabilidades. Mas também não entendo o carácter categórico com que se defende a vida nestas paragens e se desdenha dela em situações concretas de todos os dias.
A pobreza extrema é tolerada, a pena de morte eventualmente aceitável, aquela raça de ciganos e pretos roubam-nos tudo: posso estar a ser injusto, mas já ouvi às pessoas cheias de boas intenções este tipo de afirmações. A Igreja Católica é, pois, bem mais afirmativa "nesta" defesa da vida do que em outros momentos, que nos exigem (também) muito.
Não é fácil procurar um terceiro caminho. Na via legal - aquela onde acaba por se jogar a discussão do aborto - tivemos recentemente uma proposta que, pelo menos, tentou estabelecer pontes. O insuspeito Diogo Freitas do Amaral, antigo dirigente do CDS e professor de Direito, procurou «despenalizar a mulher que aborta sem descriminalizar o aborto», em dois artigos publicados em Fevereiro e Março, na revista Visão [não disponíveis na internet].
Recordo alguns aspectos essenciais dessa proposta, por eventualmente ser desconhecida dos meus ocasionais leitores: para o jurista bastará acrescentar uma nova disposição ao artigo 142º do Código Penal («Que já se intitula - imagine-se! - "interrupção da gravidez não punível"», ironiza o próprio), com uma redacção aproximada a isto: «A interrupção voluntária da gravidez praticada, a pedido da mulher grávida, fora dos casos previstos neste artigo, e até às 12 semanas de gravidez, presumir-se-á ocorrida em estado de necessidade desculpante, com dispensa da pena, salvo se o Ministério Público apresentar prova concludente em contrário».
Permitam-me ainda duas pinceladas mais para melhor compreender o enquadramento deste possível debate. Francisco Louçã, do Bloco de Esquerda (partido que defende a legalização), na altura, reagiu dizendo que «a diferença é, a partir desta proposta, já muito curta, entre o que propomos e o que diz o professor Freitas do Amaral. Mas temos condições para ir mais longe».
O mais longe de uns pode não ser o de outros, mas como então alertava Freitas, o país só tem «a perder», se se mantiver o «método "ou tudo ou nada" (que até aqui tem sido utilizado de ambos os lados)». E defendia o «método da busca do "consenso possível"». Vamos retomar o diálogo?
[nota final: ao contrário do que muitos dizem e pensam, também nesta matéria há "muitas igrejas" e outras perspectivas católicas sobre o tema: «Teólogo católico diz que aborto não é sempre homicídio»]
Há um debate por fazer na sociedade portuguesa - o do aborto. Longe do soundbyte que foram os momentos legislativos e o referendo de 1998. Assente a poeira, retomo esta questão, por me parecer importante reflecti-la a partir de um lugar como esta Terra.
A interrupção voluntária de diálogo joga-se entre a barriga em que só a mulher manda e uma concepção da vida que, no limite, pode excluir outras vidas. Não parece nunca haver um caminho diverso destes que opte, serenamente, por encontrar uma tábua de compromisso - necessária e desejável. Quanto a mim, não é contraditório afirmarmo-nos «pela vida» e simultaneamente procurar-desejar-conseguir a despenalização da mulher.
Explico melhor a recusa da habitual "dicotomia" que tem prevalecido nas discussões sobre o aborto. Recuso a ideia de que é a mulher quem manda na sua "barriga". Com este argumento, há uma desresponsabilização séria do papel do homem na vida a dois. Já bastam as situações em que deliberadamente o homem foge a essas responsabilidades. Mas também não entendo o carácter categórico com que se defende a vida nestas paragens e se desdenha dela em situações concretas de todos os dias.
A pobreza extrema é tolerada, a pena de morte eventualmente aceitável, aquela raça de ciganos e pretos roubam-nos tudo: posso estar a ser injusto, mas já ouvi às pessoas cheias de boas intenções este tipo de afirmações. A Igreja Católica é, pois, bem mais afirmativa "nesta" defesa da vida do que em outros momentos, que nos exigem (também) muito.
Não é fácil procurar um terceiro caminho. Na via legal - aquela onde acaba por se jogar a discussão do aborto - tivemos recentemente uma proposta que, pelo menos, tentou estabelecer pontes. O insuspeito Diogo Freitas do Amaral, antigo dirigente do CDS e professor de Direito, procurou «despenalizar a mulher que aborta sem descriminalizar o aborto», em dois artigos publicados em Fevereiro e Março, na revista Visão [não disponíveis na internet].
Recordo alguns aspectos essenciais dessa proposta, por eventualmente ser desconhecida dos meus ocasionais leitores: para o jurista bastará acrescentar uma nova disposição ao artigo 142º do Código Penal («Que já se intitula - imagine-se! - "interrupção da gravidez não punível"», ironiza o próprio), com uma redacção aproximada a isto: «A interrupção voluntária da gravidez praticada, a pedido da mulher grávida, fora dos casos previstos neste artigo, e até às 12 semanas de gravidez, presumir-se-á ocorrida em estado de necessidade desculpante, com dispensa da pena, salvo se o Ministério Público apresentar prova concludente em contrário».
Permitam-me ainda duas pinceladas mais para melhor compreender o enquadramento deste possível debate. Francisco Louçã, do Bloco de Esquerda (partido que defende a legalização), na altura, reagiu dizendo que «a diferença é, a partir desta proposta, já muito curta, entre o que propomos e o que diz o professor Freitas do Amaral. Mas temos condições para ir mais longe».
O mais longe de uns pode não ser o de outros, mas como então alertava Freitas, o país só tem «a perder», se se mantiver o «método "ou tudo ou nada" (que até aqui tem sido utilizado de ambos os lados)». E defendia o «método da busca do "consenso possível"». Vamos retomar o diálogo?
[nota final: ao contrário do que muitos dizem e pensam, também nesta matéria há "muitas igrejas" e outras perspectivas católicas sobre o tema: «Teólogo católico diz que aborto não é sempre homicídio»]