Milan Kundera foi a minha companhia na viagem de comboio por uma certa Europa em 1988, de Aveiro a Oostmalle. Aos 16 anos, tinha sede de ler A Insustentável Leveza do Ser, antes do filme com que me apaixonei por Juliette Binoche. O livro ficou-me, gravado também na memória pelas imagens de Philip Kaufman, e depois percorri as estantes dos irmãos mais velhos em busca de A Brincadeira, A Imortalidade, o Livro do Riso e do Esquecimento ou a Valsa do Adeus. Houve outros, e também houve aquele tempo em que Kundera passou a ser alguém que devorei na juventude. Há autores que nos fazem viajar. Até na sua morte. Esta noite, o céu apresentou-se assim. E eu terei de regressar aos seus livros.
Há 20 anos, em 2003, cruzei-me com a Margarida Ferra no metro, que me falou com entusiasmo desse mundo novo que eram os blogues (ela que escrevia o bonito Ponto e Vírgula). Eram um fenómeno recente, havia umas quantas pessoas que já falavam disso nos meios de comunicação tradicionais, como Pacheco Pereira, que tinha iniciado o seu Abrupto, e mais uns jovens de direita que eram uma lufada de ar fresco numa direita órfã do Independente, Pedro Mexia, Pedro Lomba e João Pereira Coutinho, na Coluna Infame (que acabou com estrondo, seis dias depois de começar esta Cibertúlia) e outros de esquerda que faziam o Blog de Esquerda e com quem mais me identificava, pois claro.
A 4 de junho de 2003, depois da conversa entusiasmada no metro, resolvi experimentar como se fazia uma coisa dessas: inscrevi-me no blogspot e ensaiei uns rudimentos de html, e dei-lhe um nome. Cibertúlia. Foi este o nome que algures tínhamos (um grupo de amigos que gosta de falar de tudo e de nada) dado a uma troca regular de mails, nos finais dos anos 90, sobre tudo e sobre nada: foi aí que saudei o verão ("meus senhores, chegou o verão, minhas senhoras, obrigado"), foi aí que mantivemos intensa atividade em favor da independência de Timor-Leste… E em 2003, quando criei o blogue convoquei esses amigos. No início, uns quantos ainda escreveram por aqui, depois foi cada vez mais sendo o blogue de um só, mas sempre falando de tudo e de nada.
A Cibertúlia saltou do blogspot para o Sapo, numa contratação digna de um qualquer CR7, sem milhões envolvidos. A Cibertúlia trouxe-me novos amigos, velhas amizades, polémicas acesas, piadas pelo tempo fora, músicas e filmes, livros e viagens, e um arquivo cheio de caracteres e imagens. (E algumas saltaram para outro blogue, entretanto acabado.) Hoje, este blogue junta os caracteres que escrevi no tempo de jornalismo e os que vou escrevendo aqui e acolá, daí a sua irregularidade.
A Cibertúlia faz hoje 20 anos. Parece uma eternidade — e no entanto é apenas um dia.
A invasão da Ucrânia pela Rússia abre um capítulo novo na Europa do pós-Guerra. Pela primeira vez, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, um Estado soberano é invadido por outro, com o poder russo a pretender aniquilar o país vizinho – Vladimir Putin disse que “a Ucrânia moderna é uma criação da Rússia”, negando assim que a Ucrânia possa existir como país independente.
Este novo capítulo de guerra tem como principal consequência uma militarização acentuada da Europa, em detrimento de um caminho para a paz e a necessária desmilitarização do mundo. É um recuo de décadas, aquele que se viveu no espaço [neste último ano].
Este é, no entanto, um “mundo moldado pela guerra”, na expressão de Margaret MacMillan, cujo livroGuerra – Como moldou a história da humanidade(ed. Temas e Debates, 2021) nos ajuda a melhor entender o que pode também estar em causa nestes dias de início de mais um conflito armado.
Na definição do teórico alemão Carl von Clausewitz, citado pela autora, “a guerra é um ato de violência destinado a obrigar o nosso adversário a cumprir a nossa vontade”. Está aí uma guerra que traduz bem esta definição e, independentemente de pensarmos sobre ela a cores, pode decidir-se a preto e branco (na expressão certeira de Pacheco Pereira), sobre de que lado se está.
[Abra-se um parêntesis pessoal, um pouco longo, para sublinhar o óbvio. Dizer não à guerra, não significa aceitar uma invasão ou, numa forma mais contida, encontrar uma justificação para essa invasão. Questionar a (pertença à) NATO, que é algo que se deve fazer, não significa colocar no mesmo patamar esta organização e um autocrata-agressor-invasor. Entender que os EUA têm um comportamento demasiadas vezes questionável e criticável, como aconteceu na guerra do Iraque (e na falácia montada das armas de destruição massiva), não nos pode levar a aceitar que uma democracia – a quem exigimos sempre mais – seja moralmente equiparada a uma autocracia e ditadura. Querer a paz não é a mesma coisa que aceitar que a culpa da invasão não é do agressor. Feche-se o parêntesis.]
Este livro parece, no entanto, subitamente desatualizado. A “Longa Paz”, como lhe chama a autora, que a Europa – e o mundo dito ocidental – experimentou, depois de 1945, apesar da guerra fratricida da antiga Jugoslávia, tropeçou nas malhas de um imperialismo bafiento dirigido por Vladimir Putin.
Isto da guerra será coisa de um só homem, de um regime ditatorial? Ou os seres humanos carregam consigo esta “mancha escura indelével”, com esta atração pelo abismo? MacMillan defende que a guerra moldou as sociedades humanas, criou os estados atuais, trouxe uma maior organização e uma ordem às civilizações, e socorre-se da História para o exemplificar. Questiona-se Margaret MacMillan se a “propensão” dos seres humanos para “travar guerras” vem da “avidez ou competição por recursos cada vez mais reduzidos”, ou de “vínculos biológicos e cultura partilhada para valorizarmos os nossos próprios grupos, sejam eles clãs ou nações, e temer os outros”. “A guerra é algo que não podemos deixar de travar ou algo que construímos por meio de ideias ou cultura?” Sem respostas consensuais, até hoje, procurar responder a estas perguntas pode ajudar a “evitar conflitos futuros”.
O “paradoxo da bondade”
Hoje, num “paradoxo da bondade”, título de uma obra do antropólogo Richard Wrangham, que MacMillan cita, os homens e mulheres foram ficando mais amáveis mas também melhores a matar e numa escala mais ampla. Apesar do otimismo, sugerido por académicos, de que o homem tem vindo a matar menos (“mesmo tomando em consideração os grandes banhos de sangue das duas grandes guerras mundiais”), há números que continuam a lançar-nos numa depressão grande. E não é preciso estarmos sob os céus da Ucrânia.
A autora deGuerrasublinha que “um projeto de longa data realizado na Universidade de Uppsala, na Suécia, estima que, entre 1989 e 2017, mais de 2 milhões de pessoas morreram em consequência da guerra e, desde 1945, talvez 52 milhões foram obrigados a fugir em virtude de conflitos”. Ou seja, “a prevalência da violência e da guerra no passado e o facto de persistirem no presente suscita a questão incómoda de saber se os seres humanos têm uma programação genética para lutarem entre si”. Parece que esbarramos sempre na impossibilidade da paz (sim, o título deste texto encerra uma provocação).
MacMillan apresenta uma das linhas de investigação, que é a observação dos “nossos parentes mais próximos no reino animal: os chimpanzés e os bonobos”: os primeiros podem ser “brutais”, como definiu Jane Goodall (a famosa estudiosa de primatas), os segundos optam por “fazerem amor e não guerra”.
EmCondenação – A política da catástrofe, o conservador académico escocês Niall Ferguson argumenta que as guerras, artificiais e humanas, juntamente com as pandemias, foram “os maiores desastres da história humana”.
O professor de Harvard (comentador político que apoiou o Brexit, defendia uma colaboração próxima entre Trump, Putin e Xi, e gostava de ver Marine Le Pen na presidência francesa, por esta defender a saída da União Europeia) já tinha apresentado dois pesados volumes sobre a guerra:O Horror da Guerra 1914-1918(ed. portuguesa Temas e Debates, 2018), centrado na I Guerra Mundial, eA Guerra do Mundo – Uma Idade Histórica de Ódio(reed. portuguesa da Relógio d’Água, 2021).
Agora, emCondenação, muito marcado pela pandemia da covid-19, recupera a teoria do indiano Amartya Sen – Nobel da Economia, “pai” do microcrédito e com um reconhecido trabalho de investigação sobre a pobreza – de que as “grandes fomes” foram fruto de “governos impunes” e dos “colapsos evitáveis dos mercados”, e a “melhor cura” para estas catástrofes “era a democracia”. Questiona-se Ferguson, “porquê aplicar a lei de Sen só às fomes?” E ensaia outra abordagem: “Porque não visar a mais artificial e humana das catástrofes, a guerra?”
Citado por Niall Ferguson, Amartya Sen defende que “nunca na história do mundo nenhuma fome aconteceu numa democracia funcional”, porque os governos democráticos “têm de vencer eleições e enfrentar as críticas do público, e têm grandes incentivos para tomar medidas que evitem as fomes e outras catástrofes”. Exemplos não faltam: a “Grande Fome Irlandesa”, no final da década de 1840, as duas grandes fomes na Ucrânia soviética (1921-1923, 1932-1933) ou a fome provocada pelo “Grande Salto em Frente” de Mao Zedong na China (1959-1961).
Democracia não protege um país contra “desastres militares”
No caso das guerras, regista Ferguson, “é paradoxal que a transição dos impérios para os Estados-nação mais ou menos democráticos fosse acompanhada por tanta morte e destruição”. A Primeira Guerra Mundial aconteceu “porque os políticos e os generais de ambos os lados calcularam mal”. E, insiste o académico, “a guerra matou muito mais britânicos no século XX do que o nevoeiro, e ainda mais do que a fome”, para concluir que “é notável que a democracia fosse totalmente incapaz de impedir isso”. Apesar de se tratarem de democracias incompletas, na sua moderna aceção, Grã-Bretanha e Alemanha envolveram-se numa “guerra prolongada e muitíssimo sangrenta”. E as catástrofes nas guerras sucederam-se ao longo do século XX, o que leva Niall Ferguson a concluir que “a democracia pode proteger um país contra uma crise de fome; claramente, não protege contra desastres militares”.
Nos dias de hoje, com a Rússia a atemorizar todos os dias os países democráticos da Europa, recorrendo inclusive à ameaça nuclear, Ferguson parece ter razão. Já Margaret MacMillan argumenta que “o preço elevado de duas guerras mundiais deixou-nos sem vontade de alguma vez voltar a ver tais baixas” e que “poucas centenas de baixas parecem demasiadas, quando outrora aceitámos muitos milhares”.
“E no entanto… o Ocidente é apenas uma parte, e uma parte cada vez menor, do mundo e as suas prestações e valores não são necessariamente universais”, lembra MacMillan, para completar que esta “apreensão” com as perdas de vidas “não preocupou” outros líderes, da China ao Vietname, do Irão e Iraque ou “atores infraestatais”, como a Al-Qaeda ou o Estado Islâmico, noutros conflitos pelo mundo. Agora, muito provavelmente a professora canadiana poderia juntar a Rússia de Putin, a esta lista de quem quer saber pouco das vidas que envolve nos seus jogos de poder e imperialismo.
Se Margaret MacMillan não antecipa emGuerraqualquer movimento de Vladimir Putin, como aquele que o presidente russo provocou nestes dias, a própria justifica-se: “As previsões acerca da forma futura da guerra são como apostar em cavalos ou adivinhar o caminho que a nova tecnologia irá seguir.” Ou o facto de que “as previsões feitas no passado sobre a guerra fornecem-nos uma história rica de pessoas que se equivocaram”, mas (avisada) “não deveríamos presumir que guerras importantes entre Estados já não são possíveis”.
A académica canadiana gosta do seu objeto de estudo – faz mover o mundo, argumenta, e por isso precisamos de estudar esse objeto, para “saber sobre as suas causas, o seu impacto, como lhe pôr termo e como a evitar. E, ao compreendermos a guerra, compreendemos algo sobre o ser humano, a nossa capacidade de nos organizarmos, as nossas emoções e as nossas ideias, e a nossa capacidade tanto para a crueldade como para o bem.” Mas tudo isto com uma certeza: “Não podemos deixar que se esfumem as recordações de guerra. Precisamos de lhe prestar atenção porque ela continua entre nós.”
Se ela está no meio de nós, está cada vez mais assustadora, com “novas armas aterradoras”, e MacMillan assusta-se e assusta-nos. “Não é o momento de nos desviarmos os olhos de algo que poderemos achar abominável. Temos, mais do que nunca, de refletir sobre a guerra.” Este fim do livro questiona-nos: como é?
O discurso pacifista ou em favor da desmilitarização perde terreno e atração. Qualquer possibilidade de refletir sobre a guerra esfuma-se em trincheiras difíceis de manter em tempo de discursos simplistas. O pior serviço prestado por Vladimir Putin e a atual clique dirigente na Rússia é fazer desmoronar as ténues tentativas de iniciar uma desmilitarização da Europa, de caminhar para uma pacificação séria do mundo – a Alemanha quebrou um tabu, ao apoiar militarmente um país estrangeiro, a Suécia e a Finlândia ponderam deixar cair a neutralidade e pedem um maior envolvimento com a NATO. Muitos (como Niall Ferguson) apontam o dedo ao contínuo desinvestimento no Reino Unido e na União Europeia em matéria de defesa e segurança (como se aquilo que se gasta em armamento não fosse sempre exagerado).
Abra-se um novo parêntesis. Na América Latina, a Costa Rica e, bem mais recentemente, o Panamá apostaram numa política de proteger a sua soberania sem forças armadas. Curiosamente, ou talvez não, a Costa Rica é o único país da América Central que não experimentou nunca uma guerra civil ou um crescendo de violência social e política no seu território.
Putin espalhou a insensatez do medo da guerra
Por muito que se defenda a paz, que se questione a pertença à NATO, que se queira a erradicação de forças armadas ou da indústria do armamento, neste momento, que garantias se podem dar a quem é invadido por um estado agressor cujo objetivo é a dizimação do país que atacou (Ucrânia, para já, e talvez outros)? Como se pode pedir a um estado agredido que não aumente também ele o seu armamento? Putin não armadilhou apenas a Ucrânia, espalhou a insensatez do medo da guerra pelo mundo e, em particular, pela Europa.
Uma sondagem muito recente diz que os europeus querem o aprofundamento da cooperação em matéria de segurança na União Europeia –o título é doPúblico. O inquérito realizado pelo Conselho Europeu das Relações Exteriores (ECRF, na sigla em inglês) em 12 países da UE, incluindo Portugal, ainda antes de eclodir a guerra na Ucrânia, “mostra que os cidadãos europeus valorizam a soberania europeia e a sua segurança”.
Os 15 mil cidadãos europeus de 12 estados-membros que foram auscultados consideram como “um ponto fundamental” a cooperação mais profunda nesta matéria de segurança. A paz e a não-violência perdem terreno, perante a ameaça concreta que uma ditadura como a de Putin representa. Apesar da chantagem, a resposta a dar pelas democracias é decisiva. A Cimeira de Versalhes, realizada a 10 de março, determinou um aumento “substancial” das despesas de Defesa dos estados-membros.
Tambémnas páginas doPúblico, o ensaísta António Guerreiro lembrava uma troca epistolar entre Einstein e Freud. O físico questionou o médico sobre se “existirá uma possibilidade de orientar o desenvolvimento psíquico do homem de maneira a torná-lo mais imune às psicoses de ódio e de destruição?”. Freud replicou: “Tudo o que promove o desenvolvimento da cultura, trabalha também contra a guerra.”
A paz será então possível, uma utopia demorada, apesar da provocação do título deste texto, e a inevitabilidade da guerra não tem de ser permanente, apesar da armadilha montada por Putin. Afinal, basta pensar nisto: António Guerreiro, na referida crónica, também recupera a “bem conhecida” resposta que Einstein deu, em 1948, quando lhe perguntaram como seria uma eventual Terceira Guerra. “Não sei como se fará a Terceira Guerra Mundial, mas posso dizer-vos o que será usado na quarta: pedras.”
Guerra– Como Moldou a História da Humanidade, de Margaret MacMillan Temas e Debates, 2021 400 pp., 19,90 €
Condenação– A Política da Catástrofe, de Niall Ferguson Temas e Debates, 2021 552 pp., 24,90 €
A guerra escreve-se de muitas maneiras. O jornalismo na sua arte maior pinta-se de imagens e palavras que nos transportam numa fração de segundos e numa frase única para aquele instante. É ver as 11 reportagens que valeram o prémio Pulitzer em Serviço Público a quatro jornalistas da Associated Press, e percorrer cada uma delas, nos seus textos, fotografias e vídeos, realizadas durante o cerco de Mariupol, cidade ucraniana, medievalmente atacada pelo exército russo de Putin.
De muitas fotos, tropecei nesta, da reportagem com o título 'Why? Why? Why?' Ukraine's Mariupol descends into despair, na qual dois jovens pais choram a morte do filho de 18 meses, num bombardeamento a um hospital (quem pode ainda justificar a invasão de um país e uma guerra, sempre imoral e violenta?). Ao longo destas reportagens, descobrimos muitas outras imagens, de uma guerra óbvia, brutais, violentas, dolorosas (como se pode ainda justificar a invasão de um país e uma guerra, sempre imoral e violenta?): há estilhaços, escombros, mortos, cobertores e sangue, há tanques e armas e ferimentos. E há sempre gente.
Esta reportagem até começa com uma descrição chocante (à falta de melhor palavra): "The bodies of the children all lie here, dumped into this narrow trench hastily dug into the frozen earth of Mariupol to the constant drumbeat of shelling." Mas esta fotografia, em concreto, desvela em todo o seu pudor (a porta entreaberta, o abraço de mãos dadas) a violência da guerra. A legenda aparenta uma fria factualidade, e no entanto sobressalta-nos tanto: "Marina Yatsko and her boyfriend Fedor comfort each other after her 18-month-old son Kirill was killed by shelling in a hospital in Mariupol, Ukraine, Friday, March 4, 2022. (AP Photo/Evgeniy Maloletka)"
Não sabemos mais sobre Marina e Fedor, mas nesta quase pietá moderna, há uma marca indelével: Kirill foi vítima de uma guerra injusta e injustificada. Como todas as guerras. Sabemos que a guerra escreve-se de muitas maneiras: aqui, em forma de espanto e pudor, pela câmara de Evgeniy Maloletka.
Junto às águas do Tejo, uma voz cristalina, exótica e lânguida, umas vezes sussurrada, outras solta, invocou espíritos em volta, as tágides vizinhas, xamãs e deidades de outros continentes, espíritos da floresta ou os deuses Bochica, Bachue e Furachogua, e a deusa-Lua Chia ou o deus-criador Chiminiguagua, resgatados a terras colombinas.
Lucrecia Dalt — é dela a voz da sacerdotisa — regressou a Lisboa (a 3 de abril) para encher com a sua sonoridade um mistério maior que é Ay!, o seu mais recente e espantoso disco, pretexto para a digressão que começou por cá (primeiro, nos Açores, Coimbra e Braga, e depois no palco lisboeta do B.Leza). Se Ay! foi o pretexto, Lucrecia navegou também pelas águas de discos anteriores, numa tensão crescente que dificilmente se fecha em categorias formatadas, entre a pop e o jazz, o experimentalismo e o ambient.
No concerto, Dalt juntou programações e teclas à voz, e a bateria e percussões de Alex Lázaro. Talvez fosse a proximidade da água, mas naquele palco o que se viu foi um concerto levantado do chão, também literalmente: o baterista e percussionista, praticamente sentado, emergia do palco, por entre uma árvore de instrumentos, enquanto Lucrecia abria socalcos em volta, entre Atemporal ou No tiempo, e criava tremores nos corpos que escutavam a música.
É desta mesma massa que se faz Ay!, o álbum de 2022, que descobri por um acaso de algoritmos — e que aprofunda as linguagens de discos anteriores como Anticlines ou No Era Sólida ou da banda sonora The Seed. Em Ay! há uma marca visceral que percorre estrias e canções, palavras e sons, em que a colombiana nos convoca para um transe encantatório. Foi assim no palco do B.Leza, é assim no seu mais recente disco. Há rituais para os quais gostamos de ser chamados.
Há quem goste de fazer crítica assim: somam-se nomes, uns mais conhecidos que outros, mas de preferência relativamente obscuros, citam-se uns quantos géneros musicais, classificações sempre elaboradas e intrincadas, como o shoegaze ou neo-psychedelia, que nos remete para uma textura sónica e atmosférica (não inventei, está na wikipedia) — e já está. Brinco, um pouco a sério, mas não resisto ao exercício.
Comecemos por meter numa qualquer mesa de mistura The Sundays, Cocteau Twins, Mazzy Star, His Name is Alive ou Lana Del Rey e talvez descubramos “um dos mais curiosos nomes da nova vaga de dream pop californiana”, como li numa breve apresentação promocional do novo álbum de Winter, What Kind of Blue Are You?, o seu quarto longa-duração, lançado a 27 de janeiro, e segundo com o selo da Bar/None. E podemos colar a shoegaze ou neo-psychedelia a estas dez canções que não vai mal para a crítica de referências (o Spotify já se antecipou, constato mais tarde, e arruma Winter numa lista de “shoegaze now”).
Winter atira-nos para fins de tarde de verão, ou esta primavera quente, em que os corpos pedem praia mas o mar é de inverno e todos os cuidados são necessários: as correntes puxam mais do que os olhos veem, há mais agueiros traiçoeiros, que sabemos que é preferível a onda ao mar enganadoramente calmo, e as águas de abril ainda não fecharam o inverno.
A biografia ajuda a perceber esta misturada: Winter é Samira Winter, de Curitiba, filha de mãe brasileira e pai americano, que foi viver para Los Angeles e criou uma banda com o nome invernoso em Boston.
Afinal de que tons azuis se fazem os nossos dias? Entre a delicadeza das guitarras de wish i knew (a canção de abertura e os temas dos disco vão todos escritos em minúsculas), a alegria contida de atonement (com a colaboração de Hatchie) ou as distorções delicadas de good (a meias com SASAMI), e a voz que se lhes cola, mais ou menos deliciada, como em sunday ou lose you, e temos aquele mar de inverno a fazer-se de verão.
Dream pop? Confere: é a própria Winter que se apresenta como daydreamingwinter no seu site. Fez-se um bonito verão esta Winter.
Na hora da morte, as palavras tornam-se acessórias: duas datas num fundo de tonalidades cinzentas, 17 de janeiro de 1952 – 28 de março de 2023. E uma imagem que sobressai depois, um piano carcomido pelo tempo, deixado ao abandono, as teclas em sobressalto, gastas, velhas, partidas. E sem som algum a acompanhar – o silêncio é música, também na hora da morte.
Ryuichi Sakamoto morreu na terça-feira, dia 28 de março, soube-se no domingo, 2 de abril, e o anúncio foi feito daquele modo simplesnas suas páginas das redes sociais. Já se esperava: em 11 de dezembro, o compositor e músico japonês tinha dado um concerto para 30 países emstreaming, antecipando a sua última prestação “ao vivo” e um disco, anunciado para 17 de janeiro, data do seu aniversário.A doença minava-o.
Nesse dia, foi divulgado12, o nome do que é afinal o seu testamento, um novo disco de 12 canções, uma obra de quem sabia que a sua vida vivia o ocaso mas continuava a espantar-se e a espantar-nos com a beleza das coisas.
O disco pede recato, paciência e silêncio (como nesta hora do ocaso), numa “impressionante tapeçaria de teclados, elétricos e acústicos, misturando [música] ambiental e clássica”, “um soberbo ensaio introspetivo”, no qual Ryuichi “examina a morte”,como definiu o crítico daQobuz Magazine. O silêncio sempre a cair sobre este disco.
Este é um registo que mora bem mais próximo do que se espera da sua obra para cinema ou dos registos pop – da Yellow Magic Orchestra a discos comoNeo GeoouBeauty.Sakamoto é, para muitos, o piano e a composição deFeliz Natal, Mr. Lawrence, com David Sylvian a cantarForbidden Colours, uma das mais belas pérolas da pop, mas também o compositor de parte da banda sonora deO Último Imperadore das composições deUm Chá no Deserto/The Sheltering Sky, dois filmes de Bernardo Bertolucci.
Entre discos em nome próprio e bandas sonoras, o japonês também colaborou com muitos outros músicos, instrumentistas e compositores, como o músico alemão Alva Noto, com quem partilhou vários discos (notáveis), David Sylvian, com quem gravou um conjunto de canções extraordinárias (e já falámos deForbidden Colours), Virginia Astley, que reuniria Sylvian e Sakamoto no belo discoHope in a Darkened Heart, ou Jaques e Paula Morelenbaum, com quem partilhouCasa, um projeto com música de Tom Jobim (e Jaques também se junta a Sakamoto em1996eThree).
Muitos outros passaram pelo radar e pelos discos do japonês, como Robert Wyatt, Youssou N’Dour ou os Talking Heads – e todas estas referências são curtas.AoPúblico, em 2006, admitia: “Às vezes as colaborações são mais inspiradoras. Trabalhar com outros coloca-nos em confronto com aspetos de nós próprios que muitas vezes estão ocultos. É mais surpreendente.” Afinal, “compor para filmes, encetar colaborações ou criar álbuns a solo é o mesmo”.
O francês Claude Debussy era a sua influência, o seu “herói”, e disse-o até ao fim. “A música asiática influenciou fortemente Debussy, e Debussy influenciou-me fortemente. Assim, a música dá a volta ao mundo e fecha o círculo”,explicou-se em 2010. E com esta ideia o próprio foi definindo a sua música. Ao ouvir-se Ryuichi, nota-se que há uma forte curiosidade no seu percurso, há muita música do mundo, de vários mundos, há muitas vozes de tantas partes do globo, e o que se ouve é, na sua longa discografia, uma música que soube escutar e absorver sonoridades e foi ganhando um corpo próprio e uma voz única, fosse a solo, em orquestras,ensemblesou colaborações a dois.
Namesma entrevista aoPúblico, questionado sobre se o excesso de música no espaço público se tinha tornado no seu principal inimigo, dizia que era “possível”. E acrescentava: “No nosso estilo de vida, a música é mais um produto de consumo. O excesso de música faz com que estabeleçamos com ela uma relação de quase indiferença. Pelo excesso, nivelamo-la de igual forma – a boa e a medíocre. Precisamos de silêncio, como na peça [4’33”] que John Cage compôs nos anos 50. Não sei se estamos próximos desse espírito, mas há sombras de Cage a atravessar a nossa música. Temos que reaprender a ouvir. Saber estar no silêncio, é o princípio.”
Talvez tenha sido esta ideia, de reaprender a ouvir, que levou Sakamoto a abordar ochefde um restaurante japonês em Nova Iorque, onde ia com muita frequência quando vivia na cidade americana, para lhe sugerir que ele próprio faria aplaylist(sem cobrar por isso) do restaurante em Murray Hill, por não suportar o que ouvia durante as refeições.Ben Ratliff contou a história nas páginas doNew York Times, em 2018, e escrevia que não era tanto o facto de a música estar alta que incomodava Ryuichi, mas que a mesma “era irrefletida”.
Na descrição do jornalista, não havia temas de Sakamoto. Havia solistas de piano, “de várias tradições indistintas; algumas melodias que poderiam ter sido composições de bandas sonoras de filmes; um pouco de improvisação”. E acrescentava: “Onde havia voz, geralmente não era em inglês. Reconheci uma faixa do discoNative Dancerde Wayne Shorter, com Milton Nascimento, e uma pianista que soava como Mary Lou Williams, embora não tivesse a certeza. Não era uma música que estabelecesse uma marca, ou do tipo que dá vontade de gastar dinheiro; representava o profundo conhecimento, a sensibilidade e as idiossincrasias de um cliente dedicado. Eu senti-me espantado e acolhido com sensibilidade. Senti-me em êxtase.”
Sakamoto preferia o silêncio, ou fugir dos sítios onde não gostava da música que ouvia. No seu caso, dois cancros na última década – um primeiro, na garganta, de que recuperou, e um segundo no intestino – foram prolongando os seus tempos de silêncio. O disco que ouvimos em janeiro (e terá edição física nas próximas semanas) nasceu de quase um acaso, um esforço mais do compositor e músico, com os 12 temas a receberem o nome dos dias em que foram gravados.
“Depois de finalmente ‘voltar para casa’, para o meu novo alojamento temporário após uma grande operação, dei por mim a pegar no sintetizador. Não tinha intenção de compor algo, só queria ser inundado de som”,confessou. E inundou-nos de vida.Arigatō, Ryuichi.Sayōnara.
Esqueça o cliché da Veneza portuguesa, ainda que haja canais e barcos únicos. Não se queixe da dieta, ainda que haja ovos moles e muitos doces. Lembre-se que isto é património da humanidade, ainda que a UNESCO ande distraída.
Este texto de 2012 propunha um roteiro para 24 horas, ou mais, e está obviamente datado nas recomendações mais práticas - de restaurantes e bares, por exemplo, e até de empreitadas duvidosas que se anunciavam, mesmo que a cidade esteja ainda esburacada no Rossio para um parque de estacionamento ruinoso e a Avenida tenha sido tomada de assalto por obras de Santa Engrácia e dona estragação. Boas novas: a Maria da Apresentação já está posta também ao lado da Costeira. E há mil e uma outras coisas boas a fazer.
Ovos moles, caramujos e cartuchos, castanhas de ovos, lampreia de ovos, tripa de ovos ou com chocolate. Tome nota: 24 horas em Aveiro têm de incluir estes doces. Não se queixe da dieta que as calorias gastam-se a pedalar. O passeio que agora está a começar é de buga, que é como quem diz a bicicleta gratuita que o leva a (quase) todo o lado deste roteiro de um dia só. A cidade dos canais também pode ser vista de barco — mas falta-lhe a dimensão épica de Veneza, onde a água se intromete em todas as vielas e cantos - ou percorrida a pé, tarefa facilitada numa cidade plana.
Para chegar à terra de cagaréus e ceboleiros, o melhor é o comboio que permite ver logo à chegada a Estação da CP, edifício que em 1916 foi decorado com os azulejos que o tornaram um dos cartões de visita de Aveiro. Depois desça a pé "a Avenida", que não precisa de outro nome, até chegar ao antigo Cine-Teatro Avenida, onde a Oposição Democrática à ditadura de Salazar saiu à rua. É hoje um bingo.
Está perto da loja das bugas, onde pode recolher a bicicleta para passear. Para os ouvidos, banda sonora também há: a "Menina da Ria" que "encheu de elegante alegria" o baiano Caetano Veloso.
Depois já sabe, trilhe os seus roteiros. O das pastelarias, com montras de comer e chorar por mais. Na Avenida, que os aveirenses também chamam de Ramos, pare, veja e coma: cartuchos e caramujos. Há quem fique cheio só de olhar. Na Costeira, compre uma barrica de ovos moles, enquanto não chega à fábrica deles — nas ruas da Beira-Mar, antigo bairro de pescadores e marnotos — a de Maria da Apresentação e herdeiros, cujas partilhas se traduzem desde 1882 nas castanhas, nas broas e nos obos móis, também em hóstias com que, diz a lenda, a freira castigada por gula embrulhou os ovos e o açúcar.
Leve a bicicleta pela mão e perca-se até à Praça do Peixe, local a que voltará à noite - é aí a movida noturna aveirense, com bares de todas as bebidas e feitios, que transbordam para a rua. (Atenção ao Bucha e Estica, onde os copos como Laurel e Hardy engordam ou emagrecem.) Não estranhe que por aqui se meta em atalhos e tropece nos canais em que a ria namora a cidade. O Cais dos Botirões, a desaguar na praça, é o mais emblemático - nas cores refletidas na água.
Está próximo do Canal de S. Roque, por onde correm antigos barracões de sal, os salineiros ali encostados pela pouca serventia, que o sal hoje definhou, e os moliceiros que levam turistas sem o moliço que antes alimentava as hortas das populações anfíbias.
Vai acabar por chegar ao Rossio e ao Canal Central, entaipados para uma ponte de duvidosa utilidade e estética. Faça uma pausa para uma tripa (de ovos ou chocolate ou mista; não pergunte o que são: coma!), na casa delas.
Mora ali também a Casa Major Pessoa, belíssimo objeto de arte nova (e museu), em que Caetano também notou.
A arquitetura da cidade não se reduz a este e mais alguns exemplares vizinhos de arte nova. O campo universitário é uma montra dos nomes maiores da arquitetura. Siza Vieira, Souto Moura, Carrilho da Graça, Gonçalo Byrne, Alcino Soutinho e muitos outros. Um catálogo vivo que se deita junto à ria que foi durante séculos vida e morte de Aveiro.
Esse é mesmo o último roteiro a fazer: explorar as redondezas, a ria de Norte a Sul, ver a obra de engenharia que foi a barra do porto, na Praia da Barra (e o seu Farol, o maior do país), a praia da Costa Nova e os seus palheiros às riscas, e São Jacinto das dunas.
A jornada pede alimento. Recomendações locais indicam O Batel ou O Marujo (declaração de interesses: não é da família), La Mamaroma ou a Pizzarte (ai os crepes de ovos moles!) e o hambúrguer do Ramona (fama local que merece o mundo). A noite pode ainda acabar no Olaria, um bar na antiga Fábrica Campos, de cerâmica. Se não derem 24 horas, use mais tempo. A UNESCO anda distraída, mas Aveiro é património da humanidade.
Em 1992, José Tolentino Mendonça assinou um manifesto que abalou a política e a Igreja da Madeira, na altura de João Jardim, esteve numa iniciativa contra a troikae achava que "o catolicismo sem uma inscrição à esquerda perde uma potencialidade profética que lhe é absolutamente indispensável". Recupero este texto de 2019, quando Tolentino foi elevado a cardeal.
Poeta e padre, teólogo e biblista, como tantos apresentam o novo cardeal português, José Tolentino Mendonça irrompeu com estrondo na política madeirense em 1992, quando um grupo de jovens padres da região - que incluía também o atual líder do PCP regional e ex-candidato presidencial, Edgar Silva - publicou um texto muito crítico do poder da época. Alberto João Jardim era então o senhor todo-poderoso da Madeira e Teodoro Faria o bispo tantas vezes acusado - como foi o caso desses padres - de acolitar o poder laranja.
Por entre as palavras que dão sentido à vida e fé de Tolentino Mendonça, esta é uma dimensão que nunca esteve ausente do seu discurso, mesmo que de forma discreta. O arcebispo, filho de pescador, que hoje é o arquivista e bibliotecário do Vaticano, colocou-se no lugar de fazedor de perguntas, em fevereiro de 2017, para questionar onde anda um "catolicismo de esquerda".
Num colóquio do Centro de Reflexão Cristã (que se assume como espaço de diálogo entre cristãos de diferentes sensibilidades e entre cristãos e não cristãos) sobre "católicos à esquerda", o novo cardeal preferia lançar dúvidas. "O meu papel é o de formular a pergunta. O que é hoje ser católico à esquerda em Portugal? E por que é que é tão difícil, tão rara, a presença pública de um catolicismo à esquerda, que também ajude a equilibrar a própria prática eclesial", apontava.
A preocupação tem uma razão de ser, na leitura de Tolentino: "Fazendo um diagnóstico da Igreja portuguesa, sente-se claramente um certo vazio, uma ausência de atores que possam trazer para o interior do debate eclesial um conjunto de questões que normalmente, geneticamente, estão associadas à esquerda, e essa ausência provoca um fechamento da Igreja ou um alheamento da Igreja em relação ao debate público."
Falando de Alfredo Bruto da Costa, ministro da Coordenação Social e dos Assuntos do governo de Maria de Lourdes Pintasilgo (em 1979), que se destacou no estudo da pobreza, como uma referência sua, também política, Tolentino é assertivo: "Acho que o catolicismo sem uma inscrição à esquerda perde uma potencialidade profética que lhe é absolutamente indispensável."
Se esta intervenção é de 2017, o tema permanece atual. Dizendo-se apenas uma "antena" que "fareja" a realidade, Tolentino Mendonça nota que, "sociologicamente, o catolicismo português é arrumado à direita" e, "quando se fala de uma sensibilidade católica", essa é "imediatamente" tida como "um alinhamento à direita, salvo raras exceções que são identificadas como aves raras no panorama político ou cultural".
Para o futuro cardeal, que será nomeado em 5 de outubro, isto é "um problema": "Parece que o catolicismo português contemporâneo está a gerar uma monocultura [em que] o alinhamento intelectual e político da maior parte do corpus dominante dos católicos vai à direita e que a esquerda se tornou um lugar esporádico de inscrição de cristãos e de cristãs, que possam fazer a partir daí um caminho de compromisso político e de diálogo com a sua fé. Os católicos à esquerda entraram numa espécie de clandestinidade - são clandestinos."
"Há uma nova geração que é capaz de uma militância à esquerda", regista, mas não sente "essa vitalidade à esquerda". "Acho que francamente é pena."
José Tolentino Mendonça diz que se há debate instalado com o atual Papa é este e estranha "que, na sociedade portuguesa, este debate ainda não tenha acontecido", apesar de notar que, à esquerda, há "uma aproximação ao Papa Francisco, uma citação permanente das suas palavras no espaço público", enquanto, num "certo setor colocado à direita", existe "um incómodo muito grande" com o bispo de Roma "e uma necessidade de estar sempre a traduzir o seu magistério, como se ele não falasse claro e fosse necessário mitigar o impacto do seu posicionamento e do seu magistério".
Entre as aves raras que intervêm à esquerda, de que fala o arcebispo, pode incluir-se Edgar Silva, que deixou o exercício sacerdotal em 1997 para se dedicar à política. Da Madeira, onde anda em campanha para as eleições regionais de 22 de setembro, Edgar Silva recorda ao DN o vínculo que Tolentino mantém com a região. "Ele sente muito esta necessidade de regressar sempre ao chão a que pertence, a este chão vulcânico."
"Sermão ao Jardim dos pecados"
Edgar Silva recua a 1992 para contextualizar o manifesto Mais Democracia, Melhor Democracia, que indispôs Alberto João Jardim e o bispo do Funchal, Teodoro Faria. "É um documento que faz parte de uma sequência de documentos, ainda éramos estudantes de Teologia e depois padres", explica.
Aquele que hoje lidera o PCP madeirense lembra que todos os anos esse grupo de dez jovens, às vezes mais, se juntava, em julho ou agosto, no Porto Santo ou no Funchal, para uma semana de reflexão, onde discutiam a "realidade regional, a situação social, política e cultural, o estado da Igreja e os desafios para a Igreja". De cada uma dessas semanas de verão foram saindo documentos, "preocupações com a situação pastoral" da Igreja local ou "desafios que o Concílio [Vaticano II] colocava à diocese do Funchal".
Nesses anos, Edgar Silva identifica três textos "de teor mais político", incluindo o de 1992, que bebia na doutrina social da Igreja e na realidade social concreta da região. "Foi o que teve maior impacto político e mediático", aponta. O Expresso (22-8-1992) apelidava-o de "sermão ao Jardim dos pecados".
Alberto João não gostou, enviando recados ao bispo. O então presidente do governo regional disse, lembra-se Edgar, que "esta gente não tem perdão", questionando o que faria o prelado aos dez padres. "A pressão foi muito forte e o bispo chamou um conjunto de subscritores para os inquirir individualmente." Teodoro Faria aproveitou as movimentações pastorais para "tentar dispersar ao máximo o grupo", colocando alguns em paróquias mais afastadas ou difíceis. Alberto João dizia, no Telejornal regional, que o desenvolvimento "tem de ser feito com medidas económicas e não com poesia".
Os jovens padres pediam que "o debate seja estimulado e não evitado; que os direitos de oposição e de discordância sejam considerados aspetos essenciais da democracia; que, em consequência, a unanimidade não seja erigida em valor ou objetivo final de uma sociedade democrática". A poesia era de facto outra aos ouvidos de Jardim.
Tolentino Mendonça estava em Roma, a estudar, mas assinava o documento, juntamente com Edgar Silva, que também já tinha seguido para Lisboa, onde acompanhava o Movimento Católico de Estudantes, e outros oito padres, incluindo Francisco Caldeira, Paulo Silva e Rui Nunes de Sousa.
Hoje, como em 1992, Tolentino Mendonça "acompanha de forma muito direta a situação da sua terra", sempre "de forma muito contextualizada", confirma Edgar Silva, que o vai encontrando na ilha. "É um dever de fidelidade, e ele tem isso presente, é quase identitário."
É a atenção de quem "tem um gosto particular em fazer pontes", que o faz estar "com pessoas que não têm as mesmas convicções ou a mesma visão do mundo", como o definiu Pedro Mexia ao DN. Tudo somado, não espanta que Tolentino tenha participado, em 2013, numa conferência à esquerda contra o governo PSD-CDS, falando sobre "A situação da Cultura em Portugal".
Eram tempos de troika e os seus subscritores denunciavam "as opções, os conteúdos e as consequências de uma orientação política que vem arrastando o país para uma dependência crescente, avolumando injustiças e desigualdades, hipotecando as suas possibilidades de crescimento, estrangulando o presente e comprometendo o futuro das jovens gerações". Tolentino também esteve lá.
PERFIL
O cardeal português é um reconhecido poeta, biblista e teólogo. Desde 5 de outubro de 2019 tem lugar no Colégio Cardinalício.
O MADEIRENSE José Tolentino Mendonça nasceu em 15 de dezembro de 1965, no Machico, na ilha da Madeira. Cresceu no Lobito, Angola, onde viveu com a família até aos 11 anos e onde o pai era pescador.
O POETA O novo cardeal é um homem das letras desde muito novo. Escreveu textos no antigo DN Jovem, no qual antecipava: "Não quero ser escritor, quero ser feliz." Mas é poeta, escritor e ensaísta, autor de mais de 20 livros desde Os Dias Contados (1990).
O PADRE Ordenado padre em 1990, estudou Ciências Bíblicas em Roma. Regressou a Lisboa, foi capelão e, mais tarde, vice-reitor na Católica, dirigiu o Secretariado da Pastoral da Cultura. Chegou ao Vaticano como consultor do Conselho Pontifício da Cultura. Elevado a arcebispo titular de Suava, é bibliotecário e arquivista da Santa Sé desde 2018.
Nós os vencidos do catolicismo que não sabemos já donde a luz mana haurimos o perdido misticismo nos acordes dos carmina burana
Nós que perdemos na luta da fé não é que no mais fundo não creiamos mas não lutamos já firmes e a pé nem nada impomos do que duvidamos Já nenhum garizim nos chega agora depois de ouvir como a samaritana que em espírito e verdade é que se adora Deixem-me ouvir os carmina burana
Nesta vida é que nós acreditamos e no homem que dizem que criaste se temos o que temos o jogamos «Meu deus meu deus porque me abandonaste?» Ruy Belo, Nós os vencidos do catolicismo
Roubo o título para este texto ao poema de Ruy Belo e a um livro de memórias de João Bénard da Costa, que nos tumultuosos anos 1960, num país mergulhado numa guerra injusta e obscena e amarrado a uma ditadura podre e miserável, perderam a fé (Ruy Belo) ou apenas a esperança (Bénard da Costa), vencidos por uma Igreja velha, autoritária e que ia de mãos dadas com o mais obscuro e imoral regime, o Estado Novo. Deixaram de lutar, perderam-se na luta da fé. Talvez como eu, sim, nestes tempos mais recentes, que me sinto soçobrar nesta incredulidade que toma conta de todos, uma revolta que se instala.
Nas últimas décadas, íamos ouvindo com crescente apreensão os relatos, os números e as denúncias de casos de abusos sexuais na Igreja, vindas de outras partes do mundo, na Irlanda e nos Estados Unidos, na Austrália e no Chile, em França e Espanha, na Itália e na Alemanha. Era lá longe, acreditávamos que haveria uma qualquer exceção portuguesa. Não havia, nem nunca houve – e tivemos alguns alertas num passado recente, como o caso do padre Frederico na Madeira, no qual o bispo do Funchal de então não teve qualquer pudor em comparar a prisão do seu secretário pessoal à prisão e morte de Jesus Cristo. Outro tipo de ocultação, numa clara manifestação de um autoritarismo clerical.
Os casos lá fora destaparam uma realidade ignóbil, absolutamente oposta ao Evangelho. A defesa da vida que tantos bispos, padres e leigos gostam de bater no peito, batia de frente com a maior afronta à vida. A comunicação social avançou com investigações que forçaram aquilo que muitos bispos não queriam assumir, mantendo um discurso (por vezes patético, como algumas das declarações do bispo do Porto, Manuel Linda, por exemplo) de excecionalidade.
A necessidade de varrer a história, as sacristias, os confessionários, perscrutar abusos, romper com um ciclo imoral, encontrou eco na corajosa decisão (e honra seja feita ao homem que a impôs, o bispo José Ornelas) de constituir a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica, que produziu agora um relatório demolidor: 4815 crianças foram identificadas como vítimas de abusos na Igreja entre 1950 e 2022, e este é o número mínimo. Terão sido muitas mais.
O que sobra desta montanha de escombros é a necessidade profunda de rever esta Igreja (ia a escrever que somos, mas sinto-me vencido, como aqueles católicos dos anos 60). A Comissão Independente deixa importantes propostas para o futuro, para a Igreja e para a justiça. Eu prefiro insistir no óbvio, na necessidade de recuperar uma pequena centelha na credibilidade de uma comunidade que me acompanha desde sempre. Para não me sentir um vencido para toda a vida.
A revisão da formação nos seminários é um dos caminhos apontados, mas esta é, por si só, curta e inconsequente. Nunca será suficiente retirá-los da redoma em que vivem e na qual crescem. A sexualidade tem, de uma vez por todas, de ser vivida de forma totalmente diferente, aberta, sem condicionantes nem celibatos, sem pecado e sem estigma. Pecado e estigma é tudo isto que agora nos foi apresentado. E a moral sexual que o Magistério nos tenta impingir há décadas está não só ultrapassada pela prática da grande maioria dos católicos (graças a Deus), como permanece fechada num armário de perversão, omissão e pecado, sem qualquer ligação à vida concreta das pessoas, à responsabilidade individual de cada um dos indivíduos, homens, mulheres, jovens, crianças, em que a igualdade de género e a forma como se vive a sexualidade é motivo de acolhimento e partilha, nunca de exclusão.
Há já 30 anos, em setembro de 1993, um grupo de mais de uma centena de jovens católicos estudantes criticou substantivamente a doutrina da Igreja no campo da moral sexual. Ali não se falava desta dimensão tenebrosa que nos atinge por estes dias, mas antecipava-se o óbvio em matéria de sexualidade, do corpo e do desejo. “A inoperacionalidade [do] discurso oficial da Igreja [sobre moral sexual] advém da sua desarticulação com o real e, portanto, da sua inaplicabilidade. Resulta daqui a sua ausência de credibilidade tanto junto da comunidade cristã como perante a sociedade em geral. Mais ainda, entendemos que a utilização deste tipo de discurso, que tira partido das inseguranças e fragilidades das pessoas na sua vivência da sexualidade ao insistir em prescrições particulares, é uma manifestação de vontade de poder profundamente imoral.” Confrontámo-nos sempre “com um discurso sabre aspetos particulares e questões pontuais, com pretensões de universalidade, perenidade e de quase infalibilidade, dificultando o acesso aos valores e princípios que diz pretender afirmar”.
Hoje, confrontados que somos com esta “ponta do icebergue” (quase cinco mil crianças, em 70 anos, o número mínimo), gostávamos de ouvir mais do que um mero pedido de perdão. Lembrando que a formação de padres e religiosos se faz numa idade crucial para o crescimento pessoal, para a formação individual de cada um, impor a castração de uma vida sexual, plena e adulta, com um celibato forçado e artificial é perigoso. Já sei que há quem diga que não é o celibato que leva ao abuso de menores, mas viver um celibato imposto em idades centrais do desenvolvimento social e pessoal é distorcer essa vida, é introduzir uma anomalia e uma não-experiência que também ajuda à disfunção. Acabar com o celibato obrigatório é apenas um caminho, mas é necessário.
Ressalva importante: há muitos que experimentam e vivem um celibato consciente e sério, sendo assumido de forma muito válida para quem o deseja de coração.
As disfuncionalidades que encontramos na forma como se vive a sexualidade também se podem esconder por detrás do celibato, não sendo devidamente escrutinadas no tempo de formação. Uma vida celibatária – cujas implicações nem sempre são conscientes para o próprio – não pode ser validada, simplesmente, porque a pessoa está disponível para não ter relações sexuais e há uma superficialidade com que muitas vezes estes temas são tratados na formação. E, neste campo, o facto de tanto ser pecado e proibido, não ajuda a afrontar com claridade estas questões.
Outras estruturas de poder, como as das igrejas protestantes e evangélicas, não são minadas por tamanhos sismos. Dizem os números (e a ele se agarram muitos que protegem o celibato) que 80% dos casos de pedofilia e abuso de menores acontecem na família ou por próximos da família. Aqui podemos associar uma ideia que é muito cara à própria Igreja – a de comunidade, uma família ampla – onde as coisas se vivem em partilha, onde a autoridade clerical e eclesial (para incluir também professores de religião e moral, catequistas, chefes de escuteiros, etc.) se mantém muitas vezes intocável, apesar do Vaticano II, onde nos disseram que o bispo era tantocomo o leigo.
A dimensão desta tragédia explica-se ainda por uma cultura instalada de poder autoritário, em que a impunidade se instalou de forma obscena, uma expressão abjeta em que o padre é visto como a voz de deus – de um Deus que não é o dos cristãos. Esta autoridade insana é também terreno fértil para semear uma sexualidade pervertida.
Ouvir os testemunhos das vítimas não pode significar apenas uma comoção passageira, uma raiva servida em hora de telejornal. As pessoas que foram atormentadas por este pecado tremendo merecem mais. Merecem que a Igreja reformule a sua teoria e prática da sexualidade e do corpo, em que um certo discurso de defesa da vida se restringe apenas a uma motivação ideológica e partidária, sem cuidar que estas vidas destruídas o foram em nome de uma autoridade que desfez a comunidade que nos ensinaram que éramos. Nesta vida é que nós acreditamos e no homem que dizem que criaste se temos o que temos o jogamos «Meu deus meu deus porque me abandonaste?»
Este texto contou com a leitura atenta e crítica de fr. Carlos Maria Antunes, José Manuel Pureza e Nuno Alves. Originalmente publicado no SeteMargens, em 18 de fevereiro de 2023. Imagem: Infância. Abusos. Série “Childhood Fracture” (V), de Allen Vandever. Reproduzido de Wikimedia Commons.
Há 50 anos, aquele instante em que disse "peço a palavra" mudou a sua vida?
Sim, em alguma medida sim. Terá mudado a vida da gente da minha geração da Universidade de Coimbra porque foi o desencadear de uma grande e grave crise académica em Coimbra. Foi um momento tão forte na universidade. No fundo é uma greve às aulas e greve a exames, num momento de grande pressão política e simultaneamente de grande consciencialização política, numa altura e numa situação, em 1969, em Portugal, em que a Guerra Colonial tinha começado oito anos antes, estávamos num país pobre, subdesenvolvido, desigual, o grau de analfabetismo da ordem dos 33%, com uma Guerra Colonial, com uma ditadura.
Foi um momento muito forte da academia de Coimbra. Obrigou a mudar a vida de todos nós porque as opções que foram feitas - da greve às aulas, a greve a exames... Esta, por exemplo, tem uma coisa única: foi um momento coletivo, mas era um momento que implicava uma opção de natureza individual, e fazer a greve a exames implicava a perda de ano, eventualmente a incorporação militar, a perda de bolsas de estudo nalguns casos, os estudantes das ex-colónias com a perda das bolsas de estudo e eventualmente a impossibilidade de continuar os estudos em Portugal, aos brasileiros também...
E ir contra a vontade dos pais, em muitos casos.
Exatamente isso. O estudante não tem autonomia financeira e económica e dependia da vontade dos pais. Há um traço interessante em Coimbra... Coimbra é uma cidade universitária, 15% dos habitantes na altura eram estudantes universitários, nós éramos nove mil. Tudo o que se passava em Coimbra tinha muita força, mas um dos fatores que contribui para aquilo que foi único na vida da resistência à ditadura na universidade portuguesa - uma greve a exames -, foi o facto de 70% dos estudantes da Universidade de Coimbra serem de fora da região. Havia três universidades na altura, Porto, Lisboa e Coimbra - Lisboa tinha 13 mil na Universidade Clássica, uns dez ou oito mil no Técnico, Porto era mais pequeno, tinha uns oito mil. Contrariamente a Porto e Lisboa, que eram da ordem dos 50%, em Coimbra 70% eram de fora, o que lhes permitia ter uma maior distância em relação às pressões familiares, pressões sociais do meio em que estavam inseridos. E isso foi um fator muito importante, julgo eu, na decisão da greve a exames.
Naquele momento em que pediu a palavra, na altura ao Presidente Américo Tomás, imaginava que pudesse atear o rastilho que provocou?
Não (risos)! Isso foi absolutamente imprevisível. O ato de pedir a palavra foi decidido coletivamente na noite anterior, pelos meus colegas, foi feita a sugestão de pedir a palavra se houvesse condições para isso. Eu fui-me deitar, dormi mal nessa noite (risos), preocupado... Tinha mais ou menos previsto o que era previsto, com alguma angústia, devo dizer: "O que é que me vão fazer? Vão-me prender? Vão-me bater? Vão-me deixar falar? Vão abafar aquilo que vou dizer?"
Eu tinha decidido pedir a palavra, achava que era uma questão de honra. Tinham dito para pedir se tivesse condições, eu para mim iria criar as condições, estava com essa determinação. Mas a determinada altura comecei a pensar para mim: "Vou fazer isto, o que é que vai ficar deste gesto? Isto vai-se perder, porque é um ato de reivindicação dos estudantes de Direito a intervir na vida da sociedade." Mas entretanto começam a entrar os meus colegas, mil, mais de mil, e então a minha alma subiu. É um momento de grande tensão.
Naquela pausa de discursos, pede então a palavra.
Eu estou num momento de grande tensão, por um lado a imaginar que palavras ia usar. Estou de capa e batina que é para se saber que sou um estudante, a minha condição de estudante ser afirmada logo que me levantasse, saberem que era um estudante que estava a levantar-se... A maior parte daquela gente, os ministros, o Chefe do Estado, os chefes militares, as altas autoridades académicas, eclesiásticas, os pides, ninguém me conhecia.
Eu tinha de pedir a palavra de forma a que não seja uma provocação porque isto tem de ser visto como um exercício de uma legitimidade de pedir a palavra, por parte de um estudante, do presidente da Associação Académica, na circunstância, que é pedir a palavra em nome dos estudantes e quer fazê-lo de uma forma solene, firme, rigorosa, mas respeitando as regras da urbanidade, que era forçoso respeitar, era isso que eu queria.
Eu tinha a consciência de que os setores mais retrógrados, mais ultras, o fascismo mais duro, iam tentar colocar aquilo como uma arruaça, e eu tinha de pôr aquilo como um gesto de legitimidade do uso da palavra. Por isso, estou aqui numa grande indecisão de qual é o momento de pedir a palavra: falou o reitor, falou o decano da faculdade e a seguir ia falar o ministro das Obras Públicas, estava a soerguer-se e eu disse bem, "é aqui o meu momento", porque estou entre a universidade e o governo, era mais uma forma de evitar a leitura da provocação...
Quando me levanto, há uma salva de palmas brutal dos estudantes e eu digo: "Neste momento, em nome dos estudantes de Coimbra, peço a palavra a Vossa Excelência", qualquer coisa assim, e fico de pé. Aquela gente levanta-se toda, há uma salva de palmas dos estudantes, dentro e fora da sala, que é uma coisa impressionante, a minha alma voa, porque tinha cumprido a honra da academia, tinha conseguido vencer todas as resistências, o medo. O ambiente era difícil, estávamos em ditadura e o destino estava traçado para quem fizesse uma coisa dessas. Aos aplausos, há gritos de "fora! fora", dos fascistas, há um burburinho.
O Chefe do Estado Américo Tomás tem uma pausa, acho que fala com um ministro, assim um bocado indeciso, e faz-me um gesto e "mas agora fala o ministro das Obras Públicas". Eu sento-me e fico na dúvida se a palavra me seria dada. Nas declarações da PIDE, os tipos ficaram sempre com a ideia de que eu estava a tentar ludibriá-los, mas não era verdade. E depois constatei que muitos professores, no inquérito que foi instaurado, também ficaram na dúvida. E muitos dos meus colegas...
Aquele "mas agora" abre essa dúvida.
Sim, fiquei tanto na dúvida que fiquei a arquitetar mentalmente o que é que iria dizer. Eu tinha umas notas, ia falar dos 33% de analfabetos em Portugal, de uma universidade elitista, onde o número de pessoas que chegavam à universidade era muito pequeno, da degradação do país, de uma universidade arcaica, da juventude do país, era o que eu ia falar...
Estava a arquitetar mentalmente, acaba a falar o ministro e o Américo Tomás sai com toda a comitiva, abruptamente, e aí é que é um coro brutal, "queremos falar! queremos falar!", e eles saem com os pides à cotovelada. A malta estudante ia deixando-os passar mas sempre a dizer "queremos falar! queremos falar!" Eu estou dentro da sala, só ouço "queremos falar! queremos falar!", e depois começam outros ditos, "palhaços, fantoches".
Fico na sala, entram estudantes que dizem para falar e levanto-me, ponho-me de pé... E depois falei. E falou o Carlos Batista, da junta de delegados de Ciências; o Celso Cruzeiro e o Barros Moura, que nós considerámos a verdadeira inauguração do edifício. As autoridades do regime foram para uma sala, mas os altifalantes estavam ligados para o exterior, eles provavelmente ouviram aquilo que não queriam. (risos)
"Quando sou preso, há estudantes que os insultam, 'assassinos', 'fascistas'. E insultos menos adequados à luta política."
Acaba por passar essa noite na prisão?
Sim. Nessa noite eu estava na Associação Académica, estávamos todos muito satisfeitos, tinha sido um grande momento. Eu tinha dormido no dia anterior muito mal, e às duas eu disse que me ia deitar e temos a informação de que a PIDE estava a cercar as portas de saída da Associação Académica, havia agentes em todas as portas. Saem alguns estudantes para ver qual é a reação deles e não acontece nada. E às 02.00 eu saio com muitos estudantes, mulheres e homens, e dirigem-se-me uns sete agentes da PIDE, com um crachá e uma pistola, "é o sô fulano de tal, está preso, acompanhe-me à sede da PIDE" e lá fui. Quando sou preso, há estudantes que os insultam, "assassinos", "fascistas". E insultos menos adequados à luta política (risos) e sou interrogado durante a noite, "quem é que estava por trás", queriam saber...
Com ou sem violência?
Sem violência. A conversa era sobre quem estava por trás disto, que organização tínhamos. Nós não tínhamos organização nenhuma.
Eram os estudantes...
Eram, eram os estudantes.
Cinco dias depois, há estudantes que são suspensos.
São estudantes que eles consideravam os responsáveis. Na PIDE, inicia-se um processo-crime contra mim, um crime de segurança interna contra a honra e a consideração devida ao Chefe do Estado, que de acordo com o Código Penal, se fosse provado - e naturalmente era provado, eu tinha-me levantado em público contra o Chefe do Estado - dava prisão efetiva de um a três anos. Iniciaram logo o processo-crime, por ordem do diretor nacional da PIDE, Silva Pais. A 22 de abril, todos os estudantes da Direção-Geral, o Osvaldo de Castro, o Celso [Cruzeiro], a Fernanda Bernarda, o José Gil [Ferreira], o Matos Pereira, mais o delegado de Ciências, o Carlos Baptista, e o Barros Moura, que tinham falado na sessão - é uma sequência direta dos acontecimentos de 17 de abril.
Isso faz precipitar uma maior contestação?
Na noite em que sou preso, cerca de duas, três centenas de estudantes são barbaramente espancados na sede da PIDE. Coimbra era uma cidade muito noctívaga e, quando sou preso, a notícia correu muito célere, pelas repúblicas, pelas casas de estudantes. Passado um quarto de hora, meia hora, estavam duas, três centenas de estudantes à sede da PIDE e os tipos fazem uma carga violentíssima, com cães-polícias, sem qualquer aviso prévio. Foi muito chocante e revoltou muito a academia e durante a noite foram distribuídos comunicados por Coimbra a dar conta desses factos.
Entretanto, a 22, há essa suspensão desses oito estudantes que dá origem a uma assembleia magna, onde há grande participação de professores. A suspensão tinha sido decidida pelo ministro da Educação: suspensão de frequência das aulas e de todos os atos da universidade até apuramento das responsabilidades. Isto na prática significava a expulsão da universidade.
A assembleia magna decide-se por uma greve às aulas, transformando-as em debates e discussão sobre a situação da universidade. Nós defendíamos uma universidade nova e a greve é estrategicamente radical e taticamente moderada nos meios que utilizamos. A diferença de Coimbra. E daí ter sido a maior greve na universidade portuguesa, é porque foi uma greve de massas, a greve a exames com 85% de adesão dos estudantes da Universidade de Coimbra.
Note-se que se vive um período de transição, estamos em 1969, cai o Salazar e está Caetano e é talvez o primeiro momento em que Caetano acaba por revelar a identidade repressiva do regime [depois da sua posse]. A suspensão que nos é feita é contra mesmo as regras da ditadura, sem contraditório, não ouviram a outra parte, sem processo disciplinar.
Há uma inabilidade do ministro José Hermano Saraiva em lidar com tudo isto ou é apenas a faceta repressiva do regime?
É uma faceta, é a identidade repressiva do regime: ele é um homem autoritário, é um ultra, ele é o "quer, posso e mando". José Hermano Saraiva prestou um grande serviço à luta de Coimbra no dia 30 de abril, quando ao fim de dias, desde 17 de abril, ele vem fazer uma comunicação ao país, num período de ditadura, com censura...
... sem saber do que se passava.
Sem saber do que se passava e ele vem anunciar que a Universidade de Coimbra está desde o dia 17 de abril sujeita a grandes perturbações, agitadores, os estudantes não estudam, as famílias e tal... Vem fazer um apelo demagógico e termina com um ato impositivo, garante aos portugueses que a ordem será restabelecida.
Foi uma declaração de guerra forte. Que teve uma resposta brutal: no dia seguinte, numa assembleia magna, recrudesceu a movimentação estudantil, de tal forma que a greve às aulas continuou e o Saraiva vê-se na necessidade de, em 6 de maio, encerrar a Universidade de Coimbra, um gesto repressivo muito forte. E diz que só quando houver exames é que a universidade será reaberta e isso colocou-se a nós, o que quero fazer.
E decidiram-se pela greve aos exames?
É uma decisão lenta, muito maturada porque havia os que defendiam que se devia fazer um ato de repúdio, de relevo público. Mas tínhamos de garantir uma assembleia magna com muita gente, e tivemos seis mil. E no dia 2 de junho a universidade está cercada pela Guarda Republicana, com jipes com arame farpado, polícia a pé, a cavalo, estudantes a começarem a ser presos e a serem absolvidos no tribunal da comarca, acusados de um crime que era o de perturbarem exercícios fundamentais previstos na Constituição.
No fundo eram os piquetes de greve para evitar as idas aos exames, mas nunca condenaram ninguém porque isso implicava ser preso em flagrante delito. Mas isso nunca se verificou dada a velocidade dos piquetes, quando a polícia chegava (risos). Prenderam uma centena de estudantes. A Direção-Geral acabou por ser presa em agosto... E depois há a incorporação militar de 49 estudantes em outubro.
Pelo meio, há acontecimentos que têm muita importância na cidade de Coimbra: fazemos a operação Flor e a operação Balão, para conquistar a população; não se faz a Queima das Fitas, e explica-se à população porquê. A Queima das Fitas tinha uma importância brutal na vida comercial, nos serviços de Coimbra e nas contratações de artistas.
E temos também a felicidade da final da Taça de Portugal, Académica-Benfica, que é uma vitrina fantástica. Distribuímos 35 mil comunicados, passamos as tarjas no intervalo do jogo, a equipa da Académica, que era constituída esmagadoramente por estudantes universitários, estava de luto, e entraram com as capas em sinal de luto. O Tomás, o governo, os ministros, os secretários de Estado, ninguém apareceu e a TV também não transmitiu.
Depois há um regresso à normalidade?
Há uma delegação de Coimbra que é recebida pelo Chefe do Estado, cai o reitor, que é do regime, ultra, cai o ministro da Educação e vem o Veiga Simão e há um novo reitor, que aliás é um democrata, o professor Gouveia Monteiro. E a Associação Académica é reaberta... E a vida académica continua. Há um recuo brutal do governo, nessa altura.
Cinquenta anos depois há alguma mensagem daqueles dias que permanece?
Sim, acho que há muitas coisas: o fim da ditadura, o fim da Guerra Colonial, o fim de um país subdesenvolvido, isso foi alcançado. Agora, uma sociedade desenvolvida, economicamente sustentável, uma dimensão de realização da universidade, dos jovens, do sonho que vivia em cada um de nós, continua por cumprir. Mas isso é a ideia de que o essencial de 1969 foi o que o movimento gerou e esse movimento continua sempre: é o movimento da juventude, do sonho, de uma sociedade mais justa, menos desigual, mais solidária, que de alguma medida nós vivemos naqueles momentos. Que se projetam numa dimensão muito mais ampla, a nível local, nacional, planetário.
E 50 anos depois esta memória é tão presente que só pode ter sido muito marcante para si.
É um momento muito marcante. Tenho a noção de que cada um de nós, que estivemos em Coimbra nessa altura, e que estivemos do lado certo da história, viveu como um momento libertador e um momento galvanizante. E cada um de nós viveu numa dimensão própria. Sendo um movimento coletivo, foi também um movimento interior que nos interpelou muito, que nos obrigou a grandes decisões. Foram momentos duros, difíceis, mas foram também momentos de grande exaltação e de festa.
Quando Miguel Esteves Cardoso ainda não era “o” MEC, que mais tarde faria sucesso nas páginas daRevistadoExpresso, o jovem escrevia crítica musical, ali entre a música de intervenção e o “ar de rock” – e o culto começou aí, apesar de muitos poderem achar o género menor. Quando Esteves Cardoso ainda não nos trazia caracteres sobre azeites e pão, o rock e a pop eram o seu território e a pena cáustica e acutilante já fazia escola.
Escrítica Pop, agora de novo em livro (ed. Bertrand, 2022), é, pois, um acontecimento: recupera a edição original de 1982, publicada pela Editorial Querco, que já só se descobria em alfarrabistas (mais tarde reeditado pela Assírio e Alvim), e junta-lhe um quase ignorado e há muito esgotadoO Ovo e o Novo, de 1981, guia exaustivo sobre os anos 1970. A fechar o conjunto de mais de 630 páginas, o posfácio do crítico Esteves Cardoso, que confessa, 40 anos depois desses dois livros, que perdeu muito tempo “a catrapiscar” músicas más para poder descobrir a boa. “Também deve haver alguma ternura pelo lodo por parte de quem passa a cidade de peneira na mão, à procura de pepitas de ouro.”
Segundo MEC, e socorremo-nos das últimas páginas do seu livro, sem que se estrague a leitura, “para encontrar música nova e boa – esses dois requisitos com tão poucas letras, tão raramente encontrados juntos –, continua a ser preciso uma pá e uma mola de roupa para apertar as narinas”. Exageros de crítico.
É o próprio que o admite numa espécie de prefácio ao livro original (esta nova reedição reproduzipsis verbisa primeira). Em “À maneira de um prefácio à maneira”, MEC baralha e dá de novo: “É claro que já me arrependi de tudo aquilo que escrevi. É claro que já não gosto de nenhuma das bandas das quais disse gostar muito, e que vim a apreciar todas as outras que jurei odiar até à morte. E é claro que deve juntar-se este exagero a todos os outros que cometi; às contradições, às precipitações, às inverdades, às precipitações, aos erros e excessos, às omissões e rotulagens que para toda a vida me hão-de afligir e fazer ruborizar.”
Já percebemos que estestatementde 1982 é, ele próprio, um exercício de estilo – e o posfácio demonstra-o. No miolo do livro, entre estas duas prosas, Esteves Cardoso indica o caminho para que todos possam aprender como exercitar a arte da crítica. Sejamos justos, semspoilers, este é outro exercício do humor cáustico que o país reconheceria em MEC, anos mais tarde,sobretudo com A Causa das Coisas e Os Meus Problemas. Mas entre as primeiras funções do crítico não está ouvir o disco (“Nada podia estar mais longe da verdade”); é preciso, aliás, saber fazer a “crítica de Rock sem audição” (e “com audição”), ter “instrumentos críticos do bota-abaixo” e do “bota-acima”, “métodos de agigantamento sucessivo”, dominar “a fase da redação”, “arranjar um jornal qualquer” ou “um jornal legítimo”, “ter boas relações com as editoras” ou “auferir um bom vencimento”. Um caminho para a glória, que é ser “editor discográfico”, mas sem revelarmos mais pistas.
Os discos hediondos e os que resistem ao tempo
Nesta escrítica, Miguel atira-se sem dó nem piedade à música dos anos 70, emO Ovo e o Novo — (Uma) Discografia duma Década de Rock: 1970-1980. Afinal, 89,6 por cento de todos os discos editados no mundo, argumenta o autor, “são inteiramente hediondos”, socorrendo-se de um alegado e “apurado estudo”, pelo que depois de 50 páginas de uma fantástica viagem pela música do “antes” dos 70 e da década propriamente dita, MEC apresenta-nos curtas leituras de discos com três, quatro e cinco estrelas. Não há lugar para hediondas ou medianas escolhas.
Fixe-se para a posteridade a tradução dessas estrelas, uma classificação “simples, inteiramente subjectiva e [que] não é estática”: “ *** – Bom. Contém boas canções, mas uma ou outra canção indiferente ou medíocre. **** – Muito bom. Contém sobretudo boas canções, com um ou outro deslize de pouca importância. ***** – Excelente, sem reservas.” Sabe-se que o gosto se discute, não se impõe, mas MEC faz notar que os álbuns que têm cinco estrelas devem resistir “ao tempo e ao gosto – mas nem esta reserva está acima de discussão”. E não está (mas é o meu gosto a falar).
Na era dostreaming, na qual o novo é ainda mais efémero, o exercício deste livro é lembrar-nos obras já esquecidas e ignoradas (em 1970, há o disco homónimo dos Fotheringay, com a voz de Sandy Denny, dos Fairport Convention, que pede para ser ouvido) ou arrumadas em estantes que ganharam pó (e resgate-se do mesmo ano,Moondance, de Van Morrison).
De 1970 a 1980, MEC regista os que sobreviveram a essa década de rock, definindo três constelações de estrelas, nomeando 12 nomes que, a esta distância, ainda são algumas das referências maiores da música popular destes últimos 60 anos: Joni Mitchell, Leonard Cohen, David Bowie, Bob Marley (na constelação dos irredutíveis de “qualidade constante e ininterrupta ao longo da década”), Neil Young, Lou Reed, Ry Cooder, Van Morrison (na segunda constelação de “qualidade inconstante, com poucas interrupções de má qualidade”), Robert Fripp, Robert Wyatt, Stevie Wonder e John Cale (na terceira constelação da “qualidade inconstante, com interrupções frequentes de atividade ou de qualidade”).
Aos sobreviventes juntam-se os náufragos, ou seja, aqueles que soçobraram ao longo da década de 1970, na sua opinião, decaindo na qualidade, numa “incapacidade manifesta de lutar contra oconforto”. Elton John, osbeatlesa solo, Paul McCartney, John Lennon e George Harrison (Ringo Starr é reduzido de uma penada a “divertimento simpático”), Crosby, Stills, Nash & Young, James Taylor, Genesis, Pink Floyd, Yes, Emerson, Lake and Palmer e King Crimson são os “náufragos célebres” para MEC – uma lista que pode ferir suscetibilidades.
Limpar os esgotos da década antes
Entrar nos anos 1980, ou seja, emEscrítica Pop, obriga a um exercício prévio: “Antes de mergulhar numa década nova, convém sempre uma lavagem ao depósito onde se acumularam os esgotos da década anterior”, escreve Esteves Cardoso, como se fosse uma epígrafe ao texto “O livro negro da música pop: os piores de ’70”. O texto é uma ode humorada à “música popular verdadeiramente vil e execrável”, dividida em quatro classificações: “uma bosta”, “duas bostas”, “três bostas” e “um balde”, sendo estes “os verdadeiros clássicos” do género “abjeto”.
Ler este capítulo é uma delícia de nomes desconhecidos ou velhas glórias do mau gosto que (pasme-se) também têm merecido serem recuperados por uma certa nostalgia do século XXI, que os impinge a todo o gosto e custo. Os Bee Gees, por exemplo, mas também Cliff Richard, Demis Roussos, Boney M, Kenny Rogers ou… John Travolta. É uma lista e tanto, que é fechada com a entrega do “balde de plástico” a Sylvia com a canção “Y Viva España” que, “como todas as canções verdadeiramente horríveis e debilitantes, nunca se esquece”.
A música má, argumenta MEC, ajuda-nos a ouvir a boa, a valorizar o que é bom depois dos ouvidos sofrerem com verdadeiros baldes. Há exemplares de “Pop-lixo”, um género bem representado, comoKim Wilde, que “é lixo muito bem vestido” (e os adolescentes dos ’80 suspiram), que tem o requinte que falta aos Abba ou a Sandy Shaw – palavra de crítico. Miguel Esteves Cardoso atira-se ainda à “atroz Kirsty MacColl”, a voz feminina que todos aprendemos a amar na mais bela canção de Natal, “Fairytale of New York”, pelos Pogues, por causa do seu álbum de estreia “tão abaixo de cão que está quase no centro da Terra” (e hoje Kirsty MacColl deve rir-se do MEC de 1981). Ou Yoko Ono, a namorada de Lennon, que “não tem” queda para a música. E o próprio John Lennon que morreu em 1980, mas a sua obra tinha morrido antes.
Há amores desmesurados (e certeiros) nestas seis centenas de páginas, como David Bowie, a Factory, os Durutti Column de Vini Reilly, Blondie, que é sinónimo de Debbie Harry, ou a Joy Division e os New Order. Mas nem tudo o que é bom sobreviveu à História para contar – e cantar. Usando a terminologia de MEC, são náufragos, hoje afundados nas profundezas da memória, como as Delta 5, por exemplo, que lançaram o “fabuloso LP” de nomeSee the Whirl. Pode ser que este livro, resgatado a 1982, nos ajude a descobrir música que, ainda hoje, salvará.
Marrocos celebra vitória contra Portugal, no Mundial: “Usar a memória de uma batalha como metáfora para um jogo de bola só serve para o lado da bola, não para o lado da batalha.” Foto via Twitter da Embaixada de Marrocos em Portugal.
Por estes dias, Alcácer Quibir voltou ao imaginário coletivo, por conta de um jogo de futebol, que acabou com (nova) derrota portuguesa às mãos de Marrocos, em terras das arábias. No jargão dos dias, houve quem lembrasse uma suposta vingança da “reconquista cristã” (Marrocos tinha antes eliminado a Espanha), quem aclamasse uma alegada vitória anticolonialista, ignorando o carácter autocrático do regime de Rabat ou a ocupação do território do Sara Ocidental às mãos dos interesses económicos e políticos do reino magrebino. O futebol serve (para) a política, mesmo que a coerência rapidamente tropece nos princípios.
Resgatou-se Alcácer Quibir e o “rei encoberto”, Sebastião que morreu nas terras do Norte de África, mas que tantos esperavam aparecer numa manhã de nevoeiro (desta vez, vestidos de jogadores da bola). E de novo a História tropeçou nos mitos.
André Belo serviu-nosnas páginas do jornalPúblico(ligação exclusiva para assinantes), em 12 de dezembro de 2022, a sua leitura deste Marrocos-Portugal, ao som dos tambores da guerra, num texto sobre Alcácer Quibir, onde aponta que “o problema de usar a memória histórica de uma batalha como metáfora para um jogo de bola entre Portugal e Marrocos é que a metáfora só serve para o lado da bola, não para o lado da batalha”.
Também aFolha de São Paulo,numa prosa notável– antes do jogo de Portugal e já depois do Brasil ter sido também eliminado do Mundial de futebol, no Qatar – dizia-nos que “Marrocos x Portugal já fazia Brasil dançar bem antes de Vinicius Junior existir”. Vinicius é jogador da bola e, nas quatro linhas, parece um dançarino no sambódromo. E tudo isto por causa de Sebastião.
Descrevia aFolhaque “a derrota” do rei “teve consequências fundas – até no fundo do mar, pelo que consta – na história do Brasil, então colónia portuguesa. Abatido Sebastião em Quibir, Portugal ficou eventualmente sem rei e acabou sendo dominado pela Espanha. O que fez o próprio Brasil espanhol. (…) Já Portugal ficou órfão, aguardando a volta do rei para recuperar sua soberania.”
“O que é Sebastião no Brasil não cabe neste texto”,acrescenta o articulista do diário brasileiro. “O sebastianismo – ou seja, a espera pelo retorno do rei encantado – percorre a história do país [Brasil] de maneira tão ampla que tem papel verdadeiramente relevante em movimentos como o de Canudos, do sebastianista Antônio Conselheiro. E também ajudou a eleger Jair Bolsonaro.”
Estas citações longas permitem-nos lançar a bola para o campo da literatura e da História, e para terrenos bem mais próximos. Se “Dom Sebastião deixou de ser um mito prioritário para Portugal, novamente independente [e] ganhou novas cores em além-mar, onde até hoje exerce notável e inegável influência cultural”, há todo um manto de ficções criadas deste lado do mar que mantêm viva a influência do sebastianismo.
Morte e Ficção do Rei Dom Sebastião, de André Belo, ajuda-nos, e o nome diz ao que vem, nesta viagem por esses sebastianismos que se esticam até aos dias de hoje, num final de outono em que a bola rolou no Qatar e Bolsonaro continuava entrincheirado no Planalto a digerir a derrota nas presidenciais brasileiras para Lula da Silva.
O livro parte de uma certeza – de que muitos desconfiam (ou até desconhecem): os restos mortais do monarca português estão bem arrumados no Mosteiro dos Jerónimos, depois de trasladações e inumações, sempre devidamente testemunhadas e confirmadas por autoridades, que fixaram para o rei D. Sebastião a sua última morada nesta igreja de Lisboa. Mas, e há um “mas” gigante nesta história, na hora de escrever na pedra o epitáfio do rei morto em Alcácer Quibir, alguém resolveu carregar a dúvida, que já vinha sendo alimentada por interesses políticos. “Este túmulo encerra – se é verdadeira a fama – Sebastião/ Que uma morte precoce levou nos areais de África/ Não digas que se engana quem acredita que o rei vive/ Extinto pela lei, foi-lhe a morte quase uma vida.”
Nestas breves linhas, o autor do epitáfio não coloca em causa a morte do rei (“morte precoce levou nos areais”), mas lança a dúvida sobre se o corpo está ali depositado, ao transformar “em rumor” aquilo “que foi oficialmente certificado nas sucessivas inumações do rei, gravando tal inversão na pedra”, com o uso da expressão “se é verdadeira a fama”. Poderemos sempre aceitar a interpretação cristã, na crença da vida para além da morte, mas foram bem terrenas as dúvidas suscitadas.
Em 1582, Filipe I (II de Espanha) mandara colocar em Belém os restos mortais de Sebastião, procurando assim “inculcar na memória a morte do rei, desmentindo os rumores em circulação sobre a sua sobrevivência”. A trasladação filipina tinha um objetivo político, que o epitáfio de 1682, escrito 100 anos depois, e guias turísticos dos dias de hoje ignoram. Num guia italiano, de 2005, citado pelo historiador, lê-se: “O túmulo de Dom Sebastião está vazio até hoje. O jovem rei nunca voltou da batalha de 1578.”
A seu modo, a obra de André Belo é desconcertante: a sua certeza continua a ser uma dúvida alimentada por anos de descuidada historiografia, necessidades políticas, arroubos nacionalistas e muita ficção.
Logo na primeira parte deMorte e Ficção do Rei Dom Sebastião, o historiador conduz-nos pelas suas perplexidades, incluindo um pingue-pongue com a atualidade que contextualiza a forma tantas vezes ignorante como se trata este episódio da nossa História, num tom que surpreende o mais empedernido dos académicos e resgata essa mesma História de um qualquer lugar chato em que a queiram engavetar. A epígrafe desta parte I é o excerto de uma canção de Miguel Araújo,Fizz Limão: “Não ficamos à espera, não sustemos a respiração/ À espera que o D. Sebastião nos traga a redenção/ O povo não desespera, a gente sabe que ainda há solução/ Porque o Fizz Limão, ai o Fizz Limão, há-de voltar/ Num dia de sol o Fizz Limão há-de voltar.” Um rei pop.
Este livro de História, com o rigor da investigação da disciplina, veste as suas páginas e palavras de uma forma desempoeirada e livre de preconceitos, na linguagem e na forma como nos narra os acontecimentos que se seguiram à morte do rei português em terras marroquinas. (Sim, já se sabe, morreu mesmo.)
Rei morto, rumor posto, a solução sucessória do cardeal Dom Henrique foi apenas um breve compasso de espera antes da subida ao trono do rei espanhol, Filipe II, I de Portugal. E é neste quadro político que germinam as teses sebastianistas. “O primeiro sebastianismo constitui expressão de resistência de parte dos seguidores do prior do Crato no exílio”, e assim passa pelo combate ao domínio filipino, aponta André Belo.
O livro é, de forma fundamentada e documentada, uma viagem por um Portugal sebastianista, onde se mata o rei mas se salva o sebastianismo, “uma lenda maravilhosa”, nas palavras de Afonso Lopes Vieira, “poeta nacionalista e sebastianista”. Aponta André Belo que, “tal como é possível ter ‘lapsos’ reveladores de um impensado sebastianista sem se ser forçosamente nacionalista, é possível reconhecer a morte do rei e ao mesmo tempo querer salvar o seu valor ideológico. Trata-se de ‘matar’ o rei salvando ao mesmo tempo uma ideologia extremamente fértil no campo do nacionalismo português”.
Esse tempo fértil é o Estado Novo, em que a oposição também se faz de combate ao sebastianismo, como na poesia de Manuel Alegre, que proclama que “é preciso enterrar D. Sebastião”, ou a peça de teatro de Natália Correia,O Encoberto, proibida pela Censura, exemplifica André Belo. Com o 25 de Abril e o fim da ditadura, o sebastianismo permanece arrumado em círculos tradicionalistas ou “apenas os aspetos anedóticos ou o impensado de um mistério sobre a morte do rei”, com os historiadores portugueses a virarem-lhe as costas, esgotada “a função ideológica do sebastianismo”. “Este afastamento relativamente à pesada memória de um passado mítico permite também explicar o retorno cíclico de uma forma de amnésia relativamente aos acontecimentos que estiveram na origem da lenda”, anota Belo, para melhor nos antecipar o que vem depois.
Enquadrado pois o desinteresse democrático pelo sebastianismo, saúda-se esta investigação que nos conta também das ficções, que floresceram à volta do rei morto, em particular a impostura de Veneza, que viveria muitos anos depois da “batalha dos Três Reis” (como é conhecida noutras línguas europeias, por terem morrido três reis em Alcácer Quibir).
Por Veneza, durante cinco anos (1598‑1603), passou um “rei” Sebastião que era na verdade um “calabrês obscuro” e cuja “vida itinerante será suspensa nos calabouços venezianos”. Nesse tempo, como se descreve sobre o livro, “Marco Tullio Catizone alimentou paixões anticastelhanas, gerou facções e complexas manobras diplomáticas. E levou a sacrifícios duríssimos, ou não tivesse culminado com a condenação à morte do impostor.”
Este é um outro aspeto interessante: descobrir que estes impostores sebastianistas andaram pelas italianas Veneza e Nápoles, ou em panfletos em cidades francesas e alemãs. “Terminado o caso, porém, o tempo continuou a alimentar a ficção.” Mas não desvelemos ou antecipemos em demasia o que este livro de André Belo descreve tão bem. “A dificuldade de assimilação de uma derrota catastrófica na cultura nacional” impregnou a memória nacional, aponta-nos o autor. E, como se viu no Qatar, até o futebol insistiu em o demonstrar.
Morreu-nos Pelé, e por causa dele também me recordei de Sócrates, o doutor que espalhava magia nos relvados, e da tal tarde quente do verão de 1982, e por entre pesquisas por aqui nesta casa, que chegará aos 20 anos este ano, redescobri um texto espantoso de Drummond de Andrade, que o Ivan Nunes tinha publicado na sua Praia (por recomendação de Pedro Lomba). E resolvi resgatá-lo a um blogue já inativo, para este onde ainda se publicam coisas, daquelas que me interessam. Como aquele jogo de futebol, aqui tão bem contado.
Perder, ganhar, viver
por Carlos Drummond de Andrade
Vi gente chorando na rua, quando o juiz apitou o final do jogo perdido; vi homens e mulheres pisando com ódio os plásticos verde-amarelos que até minutos antes eram sagrados; vi bêbados inconsoláveis que já não sabiam por que não achavam consolo na bebida; vi rapazes e moças festejando a derrota para não deixarem de festejar qualquer coisa, pois seus corações estavam programados para a alegria; vi o técnico incansável e teimoso da Seleção xingado de bandido e queimado vivo sob a aparência de um boneco, enquanto o jogador que errara muitas vezes ao chutar em gol era declarado o último dos traidores da Pátria; vi a notícia do suicida do Ceará e dos mortos do coração por motivo do fracasso esportivo; vi a dor dissolvida em uísque escocês da classe média alta e o surdo clamor de desespero dos pequeninos, pela mesma causa; vi o garotão mudar o gênero das palavras, acusando a mina de pé-fria; vi a decepção controlada do Presidente, que se preparava, como torcedor número um do país, para viver o seu grande momento de euforia pessoal e nacional, depois de curtir tantas desilusões de governo; vi os candidatos do partido da situação aturdidos por um malogro que lhes roubava um trunfo poderoso para a campanha eleitoral; vi as oposições divididas, unificadas na mesma perplexidade diante da catástrofe que levará talvez o povo a se desencantar de tudo, inclusive das eleições; vi a aflição dos produtores e vendedores de bandeirinhas, flâmulas e símbolos diversos do esperado e exigido título de campeões do mundo pela quarta vez, e já agora destinados à ironia do lixo; vi a tristeza dos varredores da limpeza pública e dos faxineiros de edifícios, removendo os destroços da esperança; vi tanta coisa, senti tanta coisa nas almas... Chego à conclusão de que a derrota, para a qual nunca estamos preparados, de tanto não a desejarmos nem a admitirmos previamente, é afinal instrumento de renovação da vida. Tanto quanto a vitória, estabelece o jogo dialético que constitui o próprio modo de estar no mundo. Se uma sucessão de derrotas é arrasadora, também a sucessão constante de vitórias traz consigo o germe de apodrecimento das vontades, a languidez dos estados pós-voluptuosos, que inutiliza o indivíduo e a comunidade atuantes. Perder implica remoção de detritos: começar de novo. Certamente, fizemos tudo para ganhar esta caprichosa Copa do Mundo. Mas será suficiente fazer tudo, e exigir da sorte um resultado infalível? Não é mais sensato atribuir ao acaso, ao imponderável, até mesmo ao absurdo, um poder de transformação das coisas, capaz de anular os cálculos mais científicos? Se a Seleção fosse à Espanha, terra de castelos míticos, apenas para pegar o caneco e trazê-lo na mala, como propriedade exclusiva e inalienável do Brasil, que mérito haveria nisso? Na realidade, nós fomos lá pelo gosto do incerto, do difícil, da fantasia e do risco, e não para recolher um objeto roubado. A verdade é que não voltamos de mãos vazias porque não trouxemos a taça. Trouxemos alguma coisa boa e palpável, conquista do espírito de competição. Suplantamos quatro seleções igualmente ambiciosas e perdemos para a quinta. A Itália não tinha obrigação de perder para o nosso gênio futebolístico. Em peleja de igual para igual, a sorte não nos contemplou. Paciência, não vamos transformar em desastre nacional o que foi apenas uma experiência, como tantas outras, da volubilidade das coisas. Perdendo, após o emocionalismo das lágrimas, readquirimos (ou adquirimos, na maioria das cabeças) o senso da moderação, do real contraditório, mas rico de possibilidades, a verdadeira dimensão da vida. Não somos invencíveis. Também não somos uns pobres diabos que jamais atingirão a grandeza, este valor tão relativo, com tendência a evaporar-se. Eu gostaria de passar a mão na cabeça de Telê Santana e de seus jogadores, reservas e reservas de reservas, como Roberto Dinamite, o viajante não utilizado, e dizer-lhes, com esse gesto, o que em palavras seria enfático e meio bobo. Mas o gesto vale por tudo, e bem o compreendemos em sua doçura solidária. Ora, o Telê! Ora, os atletas! Ora, a sorte! A Copa do Mundo de 82 acabou para nós, mas o mundo não acabou. Nem o Brasil, com suas dores e bens. E há um lindo sol lá fora, o sol de nós todos. E agora, amigos torcedores, que tal a gente começar a trabalhar, que o ano já está na segunda metade?
[Crónica publicada no Jornal do Brasil na sequência da derrota futebolística mais dolorosa da vida de milhões de pessoas, incluindo a minha. Esse fatídico Brasil-Itália de 5 de Julho de 1982, em Barcelona, pode ser hoje integralmente visto aqui. Publico este texto por sugestão do Pedro Lomba, que mo mostrou.]
— foto: Menino chorando retratou o sentimento dos brasileiros naquele instante, de Reginaldo Manente.
Foi um homem de contradições, ortodoxo cardeal que abriu caminhos inesperados como papa, tendo um gesto raro ao renunciar ao pontificado, sem forças para enfrentar o mais grave escândalo de uma Igreja que precisa de ser renovada. Foi um homem usado por ultraconservadores, quando já retirado, como papa de arremesso contra o magistério de Francisco, o homem que veio do fim do mundo para abanar os alicerces da Igreja. Ratzinger morre e deixa um legado, que só o tempo ajudará a avaliar na sua totalidade.
Esta não é a lista dos melhores do ano de 2022 (ainda me faltou muito e muita música). É (continua a ser) uma lista em atualização, nestas semanas, do que mais tenho ouvido e mais tenho gostado ao longo do ano passado, e que pode até ser de outros anos — como é o caso da nova atualização, sons antigos muito ouvidos em 2022. Discos, canções, que por algum motivo passaram pelo meu radar. Para ler e ouvir.
Kate Bush, Running Up That Hill (A Deal With God) e Aerial
E também eu regressei a Kate Bush, em 2022, não tanto por causa de Stranger Things (falta-me ver esta temporada, sim), mas porque regresso muitas vezes a Kate Bush. Apesar da genialidade de canções como Running Up That Hill (A Deal With God), a canção que se ouviu de novo por conta da série da Netflix, Cloudbusting ou do tema-título de Hounds of Love (1985) – opus maior desta britânica que, de repente, foi descoberta por gerações de ouvidos novos – é o álbum Aerial (2005) que mais me acompanha nestes últimos anos, e a que regressei muitas vezes em 2022.
A delicadeza de An Architect’s Dream, o divertimento de Pi (sim, o número matemático cantado tal e qual) ou a voluptuosidade de Aerial são três exemplos do prodígio que é a voz de Kate, mas também das palavras e das composições de Bush, que parecem tecer uma complexa filigrana entre poesia e sonoridade.
Foi uma coisa estranha, esta, ver Kate Bush nos tops (uma coisa tão eighties) com uma canção desses anos 1980, mas abençoada Stranger Things: gosto muito, quando os outros descobrem as coisas fantásticas que me acompanham.
[30/12/2022]
The Gift, Coral
Este Coral arrisca muito. As polifonias não são coisa estranha à obra dos Gift — de que gosto desde a primeiríssima hora, com Vinyl (1998). A banda de Sónia Tavares e Nuno Gonçalves já tinha ensaiado algumas belas abordagens corais, como em Open Window de Primavera (2012). É um risco este disco: a pop viciante de um grupo que sempre se manifestou pela linguagem da dança como cartão de visita, apresenta-se aqui com um conjunto de temas orquestrados e corais — e a abertura com Noir - Adagio Doloroso é um breve arroubo, a antecipar o belíssimo Noir, um tema a incluir (aposto) no cânone giftiano. A eletrónica continua lá, e Cancun, por exemplo, parece talhada para as pistas, mas deixa-se envolver, sem qualquer pudor, fazendo respirar estas polifonias contemporâneas e de registo clássico. (E antes que alguém mais desatento ou apenas maledicente se lembre, não, não há sombra dos Enigma dos anos 1990 nesta aventura.)
A voz de Sónia e as composições dos Gift encontram conforto e amparo num diálogo que é tudo menos cómodo e instalado. Ouça-se Única, um espanto de quase cinco minutos e meio: às vozes masculinas que se impõem no final (já vos falei de Primavera, não já?), por entre os Pauliteiros de Miranda, há sempre o coro de 48 vozes que nos ajuda a construir imagens de uma cinefilia imaginária (e eles também gravaram um disco chamado Film, em 2001). Ouça-se Adagio (outra para o cânone), 7 Vezes ou Passa-se o Tempo, e estamos perante um disco com lugar cativo nos álbuns do ano de 2022.
Para lá dos seus sons de sempre, os The Gift arriscaram muito, mas ouvindo bem há uma beleza sempre presente — e isso é muito deles, de sempre.
* *
Tal como fiz nos álbuns de que já falei, aqui em baixo, sem qualquer obrigação jornalística de contar quase tudo sobre um disco, só depois de escrito este texto, vertido em página quase de rajada depois de audições intensas, fui saber um pouco mais:
— fichas técnicas, para descobrir a presença de três vozes dos Gaiteiros de Lisboa (provavelmente o mais revolucionário projeto folk da música atual portuguesa), José Manuel David, Carlos Guerreiro e Rui Vaz; um coro clássico de 48 vozes; os Pauliteiros de Miranda; e o compositor Bernat Vivancos e o produtor Bogdan Raczynski, colaborador de Björk;
— declarações dos membros do grupo: “O disco saiu sem aviso. Saiu-nos de dentro. Não estávamos à espera. O músico de hoje tem de seguir instintos, mas sobretudo respeitar os impulsos. Nada se organiza com tempo. As coisas saem. Ou se aproveitam, ou não.” E falam de uma folha em branco, e da busca do som. Tudo isso… já se ouviu. [22/11/2022]
Lambchop, The Bible
Há discos assim: na aparência, muito certinhos e arrumadinhos, a prometerem uma música de câmara com uma voz grave, bem postos ao pôr-do-sol enquanto se beberica um gin tónico, mas logo tudo se desarruma, um instrumento a puxar para ali, outro a dizer-nos um novo caminho, com sopros e piano e eletrónicas e coros (quase gospel, muito soul) a comporem uma belíssima salada pop, sem concessões.
Há discos assim: os Lambchop, de Kurt Wagner, trazem-nos com este The Bible o seu livro dos livros, um cântico dos cânticos — e a morte a beber nas palavras (Wagner está nos 64 anos), e os sons a desconstruírem ideias preconcebidas.
E apesar da solenidade que se ouve nos 50 minutos do disco (em A Major Minor Drag, por exemplo), há tudo menos aprumo na forma como se arrumam as sonoridades deste XX álbum de originais dos rapazes (e basta nomear Little Black Boxes e Police Dog Blues para romper com essa solenidade).
Na Pitchfork invoca-se Grouper ou Angelo Badalamenti, na procura de referências para um disco como este, mas quando ouço Wagner a cantar-nos “We are clumsy and may trample too much/ Turn my face to the words/ Were always better, not so sad as foolish”, a fechar a belíssima Every Child Begins the World Again, não preciso de mais nada. O inverno já pode vir: esta Bíblia vai confortar-nos nas noites longas deste hemisfério. [12/11/2022]
The Unthanks, Sorrows Away (2022)
As irmãs Unthanks são uma pedra preciosa que, há quase 20 anos, vêm polindo alguma da melhor música vinda das ilhas de sua majestade. Navegando nas águas da tradição, frequentemente coladas à folk britânica, The Unthanks é antes um projeto em que a palavra ganha uma especial expressão numa musicalidade que, bebendo muito no dito som tradicional, é resgatada para uma modernidade tão cativante como arrebatadora.
Sorrows Away — publicado já neste mês de outubro — volta a ser uma gema rara, de vozes que nos contam histórias mágicas, sopros que enchem os espaços entre a inspiração e a expiração, uma sonoridade tão delicada quanto cuidada, mãos que tecem as redes para lançar ao mar, um amor que é tão apaixonante como à primeira audição.
Nascidas para a música como Rachel Unthank and the Winterset, uma banda exclusivamente feminina ao início, e que teve com Cruel Sister (2005) uma estreia de ouro (melhor Folk Album do ano, para a Mojo), foi com a terceira (excelente) obra, Here's the Tender Coming, de 2009, que as irmãs e companhia (agora não apenas feminina) passaram a publicar como The Unthanks. Atuando ao vivo como uma banda de cinco ou 11 elementos, The Unthanks já nos trouxeram discos dedicados a composições de Molly Drake, a mãe de Nick Drake, ou a canções de Robert Wyatt e Antony & The Johnsons (dois dos cinco álbuns que compõem a série Diversions, com interpretações de diferentes cancioneiros, em estúdio e ao vivo); uma trilogia com canções inspiradas em três perspetivas femininas ao longo do tempo: a escritora Emily Brontë, poetas da Primeira Guerra Mundial e uma pescadora de Hull, Lillian Bilocca.
E este 2022 ficou bem mais bonito com Sorrows Away. [24/10/2022]
"Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: dezassete anos! Há certas idades que são aberrantes, inverosímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter dezassete anos, jamais. Pois bem: verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: ponham-no em qualquer rancho e a sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor. O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se sentir rei, da cabeça aos pés." (Nélson Rodrigues, citado por Rui Frias, no DN)
Em 1995, numa viagem pela Costa do Marfim, fiquei alojado numa instituição que acolhia crianças e jovens deficientes abandonados pelas famílias. Estávamos em Bouaké, bem no interior do país. Ao pequeno-almoço, no primeiro contacto com os que lá moravam, aquela mulher cega, que nunca tinha saído dali (era a única "deficiente" adulta, deixada na rua quando bebé, por ter nascido cega), de riso expressivo e conversa desenvolta, soltou uma gargalhada quando ouviu de onde eu vinha. "Ah, Portugal! Lindá de Suzá! Ouço muito na rádio" — e começou a cantarolar uma canção da portuguesa da "valise en carton". Há malas de cartão que nos deixam marcas, mesmo que na nossa adolescência fossem apenas um nome para piadas fáceis. Entretanto, crescemos.
[texto originalmente publicado na minha página do Facebook]
O Avô Albertino deixou-nos a sua nogueira e, mais do que nozes, a árvore traz-nos memórias — e estas são difusas, ténues: não me lembro da voz, mas dos olhos azuis água, do cabelo branco e de um bigode tão clássico como fora de uso, dos rebuçados que pareciam brotar dos bolsos para os seis netos, do chapéu sempre impecável sobre o cabelo branco. Nasceu na monarquia, morreu na democracia, viveu sobretudo sob a ditadura. O Avô Albertino era homem com ar sério, mas também seria um homem triste, que a esta distância não lhe sei decifrar os olhos azuis água nem os sentimentos, um pai que perdeu dois filhos, num tempo em que essas notícias eram comuns, e ficou viúvo cedo — e os dois tão soturnos no retrato. Aguentou-se no ofício de mestre-de-obras e carpinteiro, e aquela oficina cheia de ferramentas eram uma delícia para olhos miúdos. Há 45 anos, feriado da Imaculada, ouviam-se os sinos da capela da Senhora da Conceição, talvez três badaladas, há sempre um código para o número de badaladas que os da terra sabem, e a Teresa exclamou “morreu alguém”, era o Avô, e na confusão desse dia só me lembro do choro da minha Mãe. E nunca mais tivemos rebuçados vindos daqueles bolsos.
Há 55 anos, na noite de 25 para 26 de novembro, ocorreu uma das maiores tragédias no país, com cheias a provocarem uns 700 mortos, segundo estimativas — os números oficiais foram sempre bem menores. O Portugal de 1967 era uma ditadura onde coronéis riscavam títulos, textos e fotografias dos jornais. A Censura queria limitar a dimensão de uma tragédia de que nunca se conheceu a verdadeira realidade. No terreno, os jornalistas também recebiam instruções sobre o que escrever. "Evita coisas macabras, que o coronel já telefonou." Os textos eram ditados ao telefone, as fotos iam de moto.
A mensagem é curta e chega por telegrama: "Não falar no mau cheiro dos cadáveres." A 29 de novembro de 1967, as páginas dos jornais ainda se enchem de reportagens e notícias sobre as "chuvas diluvianas" da noite de 25 para 26 em Lisboa e nos arredores e a Censura aplica outras instruções aos jornais. "Inundações: os títulos não podem exceder a largura de 1/2 página e vão à CENSURA." O "Dr. Ornelas", capataz do lápis azul, avisa ainda a redação do Jornal de Notícias no mesmo telegrama: "Actividades beneméritas de estudantes - CORTAR." As maiúsculas gritam a ordem.
No Portugal cinzento da ditadura de Salazar, a tragédia tinha de ser limitada e amaciada. "É conveniente ir atenuando a história. Urnas e coisas semelhantes não adianta nada e é chocante. É altura de acabar com isso. É altura de pôr os títulos mais pequenos", escreve o "Tenente Teixeira", logo a 27 de novembro.