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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Fevereiro 20, 2017

Um ensaio. O Irão e o Holocausto aos quadradinhos

Miguel Marujo

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publicado originalmente no Q.I. — Quociente de Inteligência,
suplemento do Diário de Notícias, a 26 de maio de 2012

 

MOSTRAR OS PULSOS, rir alto, ter um walkman. Ou pintar-se, lábios e olhos. Pequenos gestos quotidianos, quase banais, mas que nas ruas de Teerão, finais dos anos 80, são um ato de resistência. Marjane tem 19 anos, regressou ao Irão dos ayatollah, depois de viver quatro anos na Áustria. Está em casa, mas não se sente em casa, uma ocidental no Irão, uma iraniana no ocidente. 

Adolescente, os pais quiseram proporcionar-lhe o bem maior usurpado por um regime de barbudos: a liberdade. "Eu e a tua mãe decidimos mandar-te para a Áustria", anuncia-lhe o pai. "Amamos-te tanto que queremos que vás", justifica-se. E a mãe confessa à filha que "é melhor para ti estares longe e feliz do que perto e tão triste". 

Perto e triste é o país de Marjane, onde rapazes e raparigas são enviados para fora, para fugir à ditadura dos guardiães e à Guerra Irão-Iraque. No aeroporto de Mehrabad, "havia uma fila enorme. Muita gente estava a deixar o país. Especialmente rapazes. Considerados futuros soldados, estavam proibidos de sair do país depois dos 13 anos". 

Anos depois, Marjane Satrapi (1) contou a sua história. Persépolis – A História de Uma Infância e a História de Um Regresso é o resultado aos quadradinhos que, nos escaparates das livrarias portuguesas, reúne num só livro aquilo que começou por surgir em dois volumes autónomos. 

Esta banda desenhada desvela o horror de uma ditadura quase contínua — do regime do xá iraniano (de 1941 a 1979) ao estado fundamentalista da revolução islâmica (desde 1979), num traço quase ingénuo. Mas não há qualquer infantilização na forma e no conteúdo do texto e do traço de Marjane Satrapi, mesmo que a infância seja o mote para este retrato de um regime cruel — aquele que subjuga ainda hoje o povo iraniano. 

A família expia a memória. Também com Art Spiegelman (2), na sua obra-prima Maus, dois volumes que desapareceram do mercado português arrastados pela falência da sua editora (agora já reeditados num único tomo). É à infância que Spiegelman também vai buscar o início da sua narrativa. Em Nova Iorque, 1958, Artie magoa-se a brincar. É no pai que procura consolo, enquanto chora pelos amigos que fugiram. "Amigos? Teus amigos? Se os fechares juntos numa sala durante uma semana, sem comida… logo verás o que são os amigos!…" O pai fala do que viveu na pequena cidade polaca, nos guetos da guerra, no campo da morte de que Auschwitz é nome próprio. Ao filho de 10 anos escapa-se-lhe esta vida.

A família é o pretexto para este autor de comics, judeu, já se vê, nascido em Estocolmo em 1948, se embrenhar na Alemanha nazi e no terror do Holocausto. Mas Maus é também um ajuste de contas com a memória que Art guarda da mãe que se suicidou e do pai que lhe narra a história. Uma memória assombrada pelo "irmão-fantasma", Richieu, morto durante a guerra, uma memória de sobrevivência. A História de Um Sobrevivente (subtítulo da obra) não é apenas o relato literal de um sobrevivente de Auschwitz mas também a narrativa de uma família que se sobrevive. "Se não consigo entender a minha relação com o meu pai… como é que poderei entender Auschwitz?… ou o Holocausto?", angustia-se Art Spiegelman. 

A provocação é nossa. Cruzar num texto, este texto, as histórias de dois povos que se temem e se guerreiam nas palavras dos seus líderes. Histórias de opressão e morte, nos olhos e nos dias de duas famílias. Uma no Irão do xá e dos mulás. A outra judaica, na Polónia, dos dias de chumbo que antecedem a Segunda Guerra Mundial, e depois no calvário longo até à morte anunciada dos campos nazis. 

Houve quem só olhasse para Maus por este lado familiar, como se o Holocausto fosse apenas um pormenor para um desenhador ajustar contas edipianas. Como em Persépolis, Maus centra-se na família para colocar no centro da narrativa o que, só na aparência, passa em pano de fundo — as ditaduras iranianas, o Holocausto. O autor questiona-se, como Marjane o faz em Persépolis ("Era uma ocidental no Irão, uma iraniana no ocidente. Não tinha identidade. Já nem sabia porque continuava a viver." — e Marjane tenta suicidar-se e expõe perante nós, leitores, essas tentativas, esses fracassos: "Cheguei à conclusão que não era feita para morrer."). 

No caso de Artie sobrevive-se à culpa de um pai que sobreviveu muitas semanas, meses, anos, enfiado numa "sala" sem comida. "De certa forma ele assemelha-se à caricatura racista do velho judeu miserável", lamenta-se o filho perante a madrasta. Vladek, o pai, é inteligente no jogo do rato e do gato. E é disso que se trata em Maus ("rato" em alemão), a magistral metáfora que Art Spiegelman encontrou para nos trazer uma vez mais a narrativa do Holocausto. Os ratos são os judeus, os gatos os alemães — e há os porcos que são polacos. "Spiegelman transformou a Alemanha nazi numa monstruosa ratoeira", constatava a Associated Press sobre Maus (originalmente publicado em 1986). 

No caso de Spiegelman sobrevive-se ao peso dos seis milhões de judeus mortos pelos nazis. Sobre uma pilha de cadáveres, sentado à secretária, ele conta-nos como "o tempo voa". É uma página inquietante esta, a 41 do segundo volume de Maus: o pai morreu em 1982, ele desenha a página no final de fevereiro de 1987, ano em que ele e a mulher esperam um bebé. Pelo meio, vivemos outros meses: "Entre 16 de maio de 1944 e 24 de maio do mesmo ano, foram gaseados em Auschwitz mais de 100 000 judeus húngaros." Oito dias. "Em setembro de 1986, depois de 8 anos de trabalho, a primeira parte de Maus foi publicada. Foi um sucesso de público e de crítica. Estão a sair pelo menos quinze edições estrangeiras, Tive quatro importantes ofertas para adaptar o meu livro à televisão ou ao cinema. (Não quero.) Em maio de 1968 a minha mãe matou-se. (Não deixou nenhuma mensagem.) Ultimamente tenho-me sentido deprimido." 

Regressa-se a Persépolis. A mesma banalidade e o horror que irrompe no dia a dia. "Estava a falar com a minha criada. Contou-me que estão a recrutar crianças para a frente [de batalha]. É verdade?", pergunta a mãe de Marjane. E o pai que confirma. "É horrível, todos os dias vejo chegarem autocarros cheios de crianças. Vêm das zonas pobres, vê-se logo… primeiro convencem-nos de que a outra vida é melhor do que a Disneylândia, depois põem-nos em transe com aquelas canções... É de loucos! Hipnotizam-nos e atiram-nos para o campo de batalha. É uma autêntica carnificina." Vira-se a página: há corpos miúdos a voar, estilhaços, chaves ao peito. "As chaves do paraíso eram para os pobres, milhares de rapazes, a quem tinha sido prometida uma vida melhor, rebentaram nos campos de minas com as suas chaves à volta do pescoço." O paraíso não morava ali. 

O pai de Marjane é um herói para a filha pequena. Mas há momentos em que a criança duvida. "O meu pai não é herói — se tivesse estado preso…", quando confrontada com a história do pai da amiga Laly, torturado na cadeia. "Aquelas histórias deram-me novas ideias para brincadeiras. 'Quem perder, é torturado'." 

Este jogo não é do gato e do rato, é de miúdos e miúdas que brincam com os dias que lhes apresentam sem futuro. É a mãe que a sossega depois de ficar "devastada" com o jogo de torcer braços, puxar bocas, engolir lixo, "As pessoas más são perigosas, mas perdoar-lhes também é. Não te preocupes, há justiça no mundo", diz-lhe a mãe. O consolo maior é outro, para Marjane: "Não sabia o que era a justiça. Agora que a revolução acabara de vez, abandonei o materialismo dialético da banda desenhada. O único lugar onde me sentia segura era nos braços do meu amigo." 

Deus aparece. Em Persépolis é um velho barbudo; mas diferente dos barbudos do regime. É um velho que Marjane abraça, acarinha, a quem pede ajuda, que repudia. Quando o seu tio Anoosh morre (e a morte de quem nos é querido, é o momento em que tudo vacila), o amigo pergunta-lhe: "Marji, que se passa?" A miúda chora e aponta-lhe o dedo: ''Cala-te! Sai da minha vida!!! Nunca mais te quero ver! Sai!" Abre-se a página: "E então, fiquei perdida, sem nenhum suporte… Haverá alguma coisa pior?" Há. Parece haver sempre, quando se vive numa "sala sem comida". "Marji! Corre para a cave! Estamos a ser bombardeados!" Fecha-se a página: "Era o início da guerra." 

Em Auschwitz, Vladek arranja uns sapatos para o seu amigo. "Deus mandou-me uns sapatos por ti", agradece-lhe o amigo. Dias depois o amigo Mandelbaum desaparece, morto no trabalho forçado do campo de concentração, ou morto sem motivo por um qualquer soldado nazi. "Deus não aparecia por ali. Estávamos todos por nossa conta", resume Vladek. Parecem ressoar as palavras de Bento XVI, quando o Papa alemão tocou o solo deste campo, em maio de 2006. "Num lugar como este, as palavras falham. No fim, só pode haver um terrível silêncio, um silêncio que é um sentido grito dirigido a Deus: Porquê, Senhor, permaneceste em silêncio? Como pudeste tolerar isto? Onde estava Deus nesses dias? Porque esteve Ele silencioso? Como pôde Ele permitir esta matança sem fim, este triunfo do demónio?" 

Os demónios são outros para algum Islão dos dias de hoje, aquele que, mesmo de rosto minoritário, mais assusta e mais se faz ouvir no palco mediático. Um Alá de barbas que provocou rasto de escândalo. O diretor de uma estação de televisão tunisina foi acusado de "ataque aos valores sagrados", já depois da Primavera Árabe no país, por ter permitido a exibição do filme de animação que resultou deste livro (curiosamente, esta longa-metragem chegou a Portugal antes do livro). Nabil Karoui, da Nessma TV, pediu desculpas por ter mostrado um filme cujo pecado maior é esse, ter "exibido" Deus. 

Os demónios só mais tarde assaltam a consciência. A inocência ficou perdida antes, nos véus que velavam os cabelos delas e nas barbas que cobriam os rostos deles. "De início, era um pouco difícil, mas depressa aprendi a mentir." Ou já depois do início da Guerra Irão-Iraque (1980-1988), as meninas alinhadas no pátio da escola de véu e mão no peito. "Também tentei pensar na vida. Mas nem sempre era fácil: na escola alinhavam-nos duas vezes por dia para chorar os mortos de guerra. Tocavam marchas fúnebres e tínhamos de bater no peito." Ou como Marjane ouve da boca da mãe, "quando vem uma onda grande, baixa a cabeça e deixa-a passar!" — "é algo muito persa, a filosofia da resignação". 

Mais tarde, Marjane conhece a história da guerra contada pelos rapazes da sua idade, aqueles que também a fizeram. "— O quê? Mataste pessoas?" "— Sei lá. Quando disparas, não sabes exatamente onde acerta… E também, durante o combate, não tens tempo para divagações. É tudo uma questão de sobrevivência."

É mesmo uma questão de sobrevivência, recorda Vladek. Maus está repleto de exemplos de sobrevivência. Os polícias judaicos que espancam os seus. A economia de guerra em que tudo se transaciona. "Lá podia trocar as joias por marcos e os marcos por alimentos." Os passadores que traem os judeus, denunciando-os à Gestapo. Ou os amigos que ficaram para sempre fora da sala. "Não te preocupes com as tuas amigas. Elas não se preocupam contigo. Podes crer no que te digo. Só se preocupam em obter uma ração maior do que a tua", diz Vladek a Anja, a mulher, já em Auschwitz. 

Nas ruas de Teerão, que se erguem dos escombros da guerra dos anos 80 em muros de intolerância pública e liberdade doméstica — "o nosso comportamento em público e o nosso comportamento em privado estavam em polos opostos. Essa disparidade tomava-nos esquizofrénicos." — Marjane encontra um amigo de infância, que ficou deficiente na guerra ("quase morto"). Kia vive numa cadeira de rodas, mas ri-se, de si e de tudo. "A única maneira de suportar o insuportável é rirmo-nos dele", avalia Marjane no regresso a casa. 

A nona arte é muitas vezes esquecida como objeto de arte maior. Estes dois romances gráficos, de difícil definição, são duas famílias a expiarem memórias, duas famílias que são dois povos e que cruzam-se no retrato impiedoso da tortura, da guerra, da dor. Mesmo que Art ouça do pai, "ninguém pode perceber nada sobre Auschwitz". 

 

 

(1) Marjane Satrapi  nasceu em Rasht, no Irão, a 22 de novembro de 1969, e distinguiu-se com a obra Persépolis. Esta bisneta de um imperador persa vive hoje em Paris, França, onde é ilustradora, escritora de livros infantis e romancista gráfica. O filme baseado em Persépolis esteve nomeado para os Óscares, na categoria de Melhor Filme de Animação. Tem ilustrações publicadas no New York Times e na New Yorker.

(2) Art Spiegelman nasceu em Estocolmo, em 1948. Cofundador e editor de uma revista de banda desenhada Raw, este filho de judeus sobreviventes de Auschwitz casou com uma francesa, Françoise, de quem tem uma filha. Professor de artes visuais, tem trabalhos publicados no New York Times, Playboy e Village Voice.