Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Dezembro 02, 2017

As canções de tempos sem inocência

Miguel Marujo

sfe.jpg

 

Os U2 não chegam hoje de Berlim com a revolução de Achtung Baby e Zooropa, mas o seu 14.º álbum, que conhece este dia 1 de dezembro a sua edição mundial, traz-nos no seu rock mais imediatamente reconhecido um repositório de canções que é, provavelmente, o melhor da banda irlandesa deste século XXI. E traz-nos um Bono a descobrir que a morte é uma certeza.

Bono, The Edge, Adam Clayton e Larry Mullen Jr apresentam este Songs of Experience depois da digressão que comemorou os 30 anos dessa outra obra prima que é The Joshua Tree e que acabou por adiar o lançamento deste novo álbum. Verdade seja recordada: a culpa foi de Trump. Com a eleição de Donald Trump para a presidência dos EUA, os U2 quiseram fazer um compasso de espera e recuperar o álbum de 1987, para num fechar de círculo melhor cantarem a distopia do tempo em que vivemos.

Para chegar aqui é preciso olhar ainda um pouco mais para trás, para Songs of Innocence, o álbum anterior, de 2015, que foi lançado com a promessa de um segundo tomo (o álbum que é hoje lançado) e que em determinados momentos assoma à porta de canções deste Experience: American Soul, que conta com Kendrick Lamar a abrir este hino contra a política de Trump, começa onde terminava Volcano; e a fechar o álbum 13 (There Is a Light) é uma reinterpretação de Song for Someone

A pausa foi produtiva entre um e outro disco, com a digressão pelo meio, explicou Bono nas páginas da revista americana Rolling Stone. “A pausa no nosso álbum deu-nos a oportunidade de tocar ao vivo no estúdio estas canções, despindo-as até ao essencial, sem qualquer truque de estúdio, para ver o que realmente tínhamos. Foi um excelente presente para o álbum.”

Não é, ainda assim, um disco para cativar detratores de sempre ou miúdos que só os ouvem a encher estádios, mas também não se acomodam a revisitar a matéria dada sem ponta de novidade. O letrista e vocalista escreveu estas novas canções como uma coleção de cartas dirigidas à família, amigos e à América. Por isso, a intimidade de 13 (There Is a Light) resgata a luz de alguns bons momentos dos U2.

É por Love Is All Have Left que se inicia esta experiência, num tom quase místico de vozes sintetizadas e cordas a vibrarem nas palavras de um Bono que nunca deixa as coisas por menos: Nothing to stop this being the best day ever/ Nothing to keep us from where we should be, avisa, para início de conversa. E depois de Lights of Home entra-se na sequência das canções já mostradas ao mundo, com You’re The Best Thing About Me, Get out of Your Own Way e American Soul. Se na primeira, Bono sabe que The best things are easy to destroy, em American Soul é Kendrick Lamar que nos narra que Blessed are the bullies/ For one day they will have to stand up to themselves/ Blessed are the liars/ For the truth can be awkward

Também mais à frente, The Blackout — outra das canções já reveladas — regressa à América de hoje. Bono confessou que este tema “começou por ser mais sobre um apocalipse pessoal”. E explicou-se em setembro na Rolling Stone: esta canção é sobre “alguns eventos na minha vida que me recordaram da minha mortalidade mas seguiu depois para a distopia política para onde estamos a caminhar”. E é o próprio que cita os versos da canção que melhor retratam esta canção: Dinosaur, wonders why it still walks the earth/ A meteor promises it's not going to hurt would — e com humor acrescenta que “seriam versos divertidos sobre uma velha estrela de rock, mas têm menos piada quando estamos a falar sobre a democracia e antigas certezas, como a verdade”. É por isso que os versos seguintes vão diretos ao que está em jogo no mundo, neste momento, como defende Bono: Statues fall, democracy is flat on its back, Jack/ We had it all and what we had is not coming back, Zac/ A big mouth says the people they don't want to be free for free/ The blackout, is this an extinction event we see?

Na capa, os dois jovens fotografados pelo colaborador de sempre, Anton Corbijn, são os filhos adolescentes de Bono e de The Edge. E quando em The Little Things That Give You Away se ouve The air is so anxious/ All my thoughts are so reckless/ And all of my innocence has died, melhor percebemos que a inocência ficou para trás e é a maturidade de uma obra como esta dos U2 que nos ajuda também a ouvir melhor os dias de hoje.

[publicado originalmente no DN, em 2 de dezembro de 2017, com o título original de "A inocência ficou para trás. Os U2 estão mais experientes"]