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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Janeiro 19, 2018

U2 em Lisboa. Vem aí uma lição de rock

Miguel Marujo

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Depois da digressão dos 30 anos do álbum The Joshua Tree, durante o ano de 2017, é tempo de os portugueses ouvirem (por fim!) os U2 com a sua digressão Experience+Innocence, após a reação um pouco mais do que morna a Songs of Experience (2017), o álbum que dividiu a crítica especializada. Será a 16 de setembro, em Lisboa, na Altice Arena (com bilhetes à venda a 26 deste mês).

Há uma verdade incontornável: um concerto dos U2 não deixa ninguém indiferente. Sejam fãs indefetíveis que ouvem sempre a sua música como uma liturgia que se renova nos detalhes ou se transmuta em grandes passos (e assim se podem resumir os quase 40 anos do percurso da banda); ou sejam aqueles que descreem da salvação da humanidade pela música destes quatro rapazes irlandeses, desde The Joshua Tree (1987) ou, pelo menos, desde o díptico berlinense de Achtung Baby/Zooropa (1991/1993).

Uma qualquer concerto dos U2 faz de um imenso estádio uma sala de estar, as colunas no máximo, um grande grupo de amigos à volta de hinos mais ou menos reconhecíveis e que têm marcado gerações.

Esta digressão que trará os irlandeses a Lisboa já andou pela América e pela Europa, numa primeira versão depois da publicação de Songs of Innocence (2014). A Innocence+Experience Tour de então demonstrou o experimentalismo visual que a banda sempre ousa nas suas digressões com um palco único e inovador em 360º.

A tour de 2015 acabou por ficar marcada pelos atentados em Paris, na noite de 13 de novembro desse ano, que atingiram também a mítica sala parisiense Bataclan, onde atuavam os Eagles of Death Metal. Os U2 atuariam em Paris na noite seguinte e o concerto acabou adiado, para uma nova data que contou com os Eagles of Death Metal e Patti Smith, em palco, a celebrar People Have The Power, a 7 de dezembro de 2015. Foi também esse concerto que esteve na origem de uma edição em DVD.

Depois dessa primeira parte, chamemos-lhe assim, os U2 preparavam a edição de Songs of Experience, desde o primeiro momento assumido como uma continuação do álbum de 2014. Só que o mundo mudou — houve o brexit e Donald Trump chegou onde ninguém acreditava — e a banda irlandesa preferiu olhar para esse mundo em vez de se enfiar numa concha (a dose de risco que, ao fim de quase quatro décadas de estrada, nem muitas bandas mais novas arriscam).

Primeiro, suspenderam a edição do álbum, que foi lançado no passado mês de dezembro, e depois lançaram-se para uma outra digressão, a comemorar os 30 anos de The Joshua Tree, sem ponta de nostalgia, numa imensa lição de rock e humanismo, como se de uma grande produção de Hollywood se tratasse e onde torcemos pelo final feliz, numa síntese certeira do jornalista e crítico musical Vítor Belanciano.

Para 2018, promete-se uma atualização desse palco para um cenário com múltiplos palcos e um sistema de som inovador, com um novo ecrã de elevada resolução — nove vezes maior que o de 2015. Pelo meio tivemos também o ecrã único de Joshua Tree no qual se mergulhava no deserto americano, como se não estivéssemos num estádio, como testemunhou o DN em julho passado em Londres.

Agora, o alinhamento destes concertos (que só se pode especular) incluirá algumas das canções mais fortes de Songs of Experience, para além de revisitar o repertório clássico da banda. Nisso, Bono, The Edge, Adam Clayton e Larry Mullen são exímios na arte de equilibrar entre os hinos que todos sabem de cor e salteado e as canções que muitos provavelmente nem reconhecerão.

Na sexta visita a Portugal, os U2 vão apresentar aquele que é, no seu rock mais reconhecível, provavelmente o melhor conjunto de canções da banda irlandesa deste século XXI. Sabe a pouco, para muitos. Mas uma coisa é certa: teremos uma verdadeira lição de rock.

AS OUTRAS CINCO VEZES EM PORTUGAL
360º TOUR, 2010
Foi em Coimbra, no estádio da cidade, que os irlandeses tocaram pela última vez em Portugal, em duas datas de outubro, perante 42 mil fãs. Os bilhetes esgotaram numa hora. Entraram em palco ao som de Space Oddity, de David Bowie.

VERTIGO TOUR, 2005
A 14 de agosto, nova incursão em Alvalade, para encerrar a digressão Vertigo, num concerto com 52 mil espectadores. Antes de subirem ao palco, os U2 foram condecorados com a Ordem da Liberdade pelo presidente Jorge Sampaio.

POPMART TOUR, 1997
Levaram a Alvalade, a 11 de setembro, um alinhamento rico em clássicos como I Will Follow, Pride, New Year's Day, Desire, With Or Without You ou Mysterious Ways.

ZOO TV TOUR, 1993
A 15 de maio, Bono e companhia subiam ao palco do estádio de Alvalade pela primeira vez, com a escala portuguesa da Zoo Tv Tour, iniciada em fevereiro. Foi a primeira grande digressão da banda com efeitos visuais. Tinha como base o álbum Achtung Baby. Durante a tournée, sairia Zooropa.

VILAR DE MOUROS, 1982
Os irlandeses tocaram na primeira edição do Festival Vilar de Mouros, com o álbum October recém editado. O bilhete custava 400 escudos (2 euros) e os U2 tocaram a 3 de agosto. O cartaz incluía nomes como The Stranglers, Echo & The Bunnymen e Durutti Column.

[artigo publicado originalmente no DN de 17 de janeiro de 2018]

Janeiro 18, 2018

O mesmo desopilanço 20 anos depois

Miguel Marujo

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Vinte anos depois parece que nada mudou: Lust For Life abre a banda sonora de Trainspotting 2 (T2 para os amigos), mas tal como o filme a canção de Iggy Pop ganha uma nova roupa made in século XXI, numa remistura de Prodigy que acelera o desopilanço do tema original e dá o mote para esta nova coletânea de canções.

"Nostalgia: é por isso que estamos aqui, és um turista na tua própria juventude", atira Sick Boy, a personagem de Jonny Lee Miller - e 20 anos depois nada mudou mesmo, apesar de os Underworld estrearem Slow Slippy, que é no fundo uma revisitação nostálgica e bem mais romântica de Born Slippy, o hino eletrónico adotado como uma das imagens eufóricas da trip que foi o filme de Danny Boyle em 1996.

Somos turistas da nossa juventude, por isso se regressa a Iggy Pop, mas também a (mais ou menos) clássicos como Frankie Goes To Hollywood, The Clash, Run DMC, Queen ou Blondie, equilibrados na sua exuberância e ritmo com novas propostas, que inclui três temas dos Young Fathers (que vimos no ano passado nalguns dos melhores momentos do concerto dos Massive Attack em Lisboa), um trio escocês-nigeriano-liberiano que é das propostas mais interessantes no hip-hop atual. Aliás, Boyle apontou Only God Knows como a nova Born Slippy, com a mesma dose de adrenalina — e os pés começam a bater e o corpo fica a pedir para se mexer.

Neste T2, não há Brian Eno ou New Order, nem a brit pop tem espaço como tinha em 1996, com os Pulp, Blur e Elastica (vivemos tempos de triunfo do hip hop). Mas há Lou Reed, de novo com o seu Perfect Day, que se ouve só no filme num versão em piano que o disco deixou de fora. Seria a cereja no topo de um bolo que se ouve com prazer, mesmo que o tempo pareça não ter passado por aqui. Nem sempre é mau ser-se turista na própria cidade, mais ainda com os sons da própria juventude. Desopilemos, pois.

[artigo originalmente publicado no DN a 23 de fevereiro de 2017]

Janeiro 12, 2018

Do pequeno restaurante com alpendre para o mundo

Miguel Marujo

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A pequena casa verde na E Broad Street, logo depois da esquina com a Wilkerson Street e imediatamente antes da ponte sobre o rio Oconee, na cidade de Athens, no estado americano da Georgia, tem um pequeno alpendre com duas mesas e bancos corridos de madeira. O letreiro de fundo branco anuncia nas suas letras pretas Weaver D’s Delicious Fine Foods - e por baixo o slogan da casa de restauração pronta a comer: "Automatic for the people", mote para um serviço "pronto, rápido e eficiente para as pessoas".

Foi ao lema do restaurante de Mr. Weaver que Michael Stipe e os seus companheiros foram buscar o nome para o oitavo álbum de estúdio dos R.E.M., lançado a 5 de outubro de 1992, agora celebrado com uma edição especial do 25.º aniversário. Automatic for the People foi o difícil sucessor de Out of Time (1991), que atirou o grupo de Athens para o palco do mundo — e basta nomear Losing My Religion, que todos trauteámos, para nos lembrarmos porquê.

"Verdadeiramente nada mudou", recorda agora o guitarrista Peter Buck, depois de vendidos dez milhões de cópias "ou assim". "Nenhum de nós comprou mansões ou grandes carros ou alguma coisa. Juntámo-nos de novo apenas para ensaiar e gravar."

Do Weaver D’s Delicious Fine Foods para o mundo, a banda repetiu a receita do sucesso com um álbum que o jornalista e crítico Tom Doyle apresenta como o "mais misterioso" de todos dos R.E.M., no libreto que acompanha agora a reedição aniversariante — há ainda uma edição luxuosa, com 3 CD e Blu-ray, com inéditos, incluindo Photograph, tema inédito com essa outra voz essencial da América que é Natalie Merchant. Talvez seja misterioso de facto: a morte percorre as 12 canções do álbum, numa época em que o advento da sida nos anos 80 ainda se fazia sentir no dia-a-dia.

"Out of Time pode ter-nos libertado um pouco para abandonarmos o nosso formato tradicional de guitarra, baixo e bateria", explica o baterista Bill Berry. "Éramos livres de seguir a direção que queríamos." E seguiram: Bill, Peter e o baixista Mike Mills juntaram-se em Athens e ensaiaram primeiro sozinhos. Na sala de ensaios da banda em Clayton Street e no estúdio do amigo de longa data e engenheiro de som, John Keane, a uns quantos quarteirões das suas casas, ainda no outono de 1991, foram gravadas as primeiras demos, sem o vocalista Michael Stipe. "O Peter estava cansado de tocar guitarra e andava a tocar diferentes instrumentos", nota Stipe. "Na verdade, o meu trabalho foi simplesmente tentar construir a partir da base musical que eles me deram. A génese desta grande mudança para algo menos rock realmente começou com estes tipos", conta o vocalista.

Havia uma certa brincadeira que marcou estes primeiros dias de experimentação musical, como recuperou Doyle nas histórias que acompanham a boxset destes 25 anos, mas o álbum é "mórbido", como o classifica Mills, mesmo ouvindo a leveza de The Sidewinder Sleeps Tonite ou o fulgor de Man on the Moon, sobre o humorista Andy Kaufman (uma letra que nasceu no último dia de gravações do álbum, como lembra a Rolling Stone).

É em Nova Orleães, já na primavera de 1992, que prossegue a gravação do álbum. "Sabíamos que este era um disco mais mórbido e vibrante, por isso que melhor local para o gravar que Nova Orleães? É uma cidade muito confortável com a morte", sublinha Mike Mills. É Tom Doyle quem defende que Automatic for the People também nos anima o espírito, como a personagem central de Try Not to Breathe, que se dirige ela própria para a sepultura mas diz ter vivido uma vida cheia e quer que os seus mais próximos e queridos a recordem com amor.

Afaste-se a morbidez, recupere-se a magia e poesia: 25 anos depois sobra o génio de Stipe e companheiros. O sucessor de Out of Time é, depois de todos estes anos, uma obra obrigatória — aliás, qualquer álbum em que se ouça Everybody Hurts é obrigatório.

Automatic for the People é também um disco marcado por baladas como Drive ou Nightswimming; são os arranjos de cordas pelo antigo baixista dos Led Zeppelin, John Paul Jones, em quatro canções; e é também pop de primeira água. Mas os R.E.M. não esquecem o rock em que se formaram desde Murmur (1983). Basta ouvir o concerto ao vivo, que acompanha esta edição de luxo. Radio Free Europe, que abria Murmur, fecha este concerto gravado no 40 Watt Club em novembro de 1992. E é rock de primeira água.

[publicado originalmente no DN de 1 de janeiro de 2018]