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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Outubro 20, 2014

esboço sobre a sorte

Miguel Marujo

O euromilhões preenchido na mesa do café é exercício demorado. As folhas gastas de uso, arrumadas em aparente ordem, um clip a juntá-las, dizem da demora no preenchimento do jogo da sorte - há ali cálculo, previsão, raciocínio: números emaranhados em colunas e linhas, sublinhados a cores ou com círculos em volta. Nada parece ser ao acaso, como é suposto na sorte e no azar. O fato é largo, sem gravata, os 70 vincam as mãos e o pescoço, na pasta cinzenta arruma-se a sorte, escondem-se os cálculos, o telemóvel é enfiado no bolso, não há chamadas nem mensagens. Como é aquele dito sobre o amor e a sorte?

Outubro 18, 2014

esboço para o inverno

Miguel Marujo

Ela vem sem aviso, espreita, sabemos que espreita o telemóvel, tira uma foto na feira ali montada, repete outra. Apenas intuímos os momentos, os passos em volta, a avenida percorrida, os olhos que amam de raiva e o olhar deixado triste. Aqui sentados a adivinhar, chega-nos o relato da bola do carro parado na praceta, mas não interessa a vozearia, o sol põe-se, já viram como o sol se põe cada vez mais cedo?

Outubro 18, 2014

BES, o Novo Banco nascido de uma Caza de Câmbio

Miguel Marujo

 

Aos 19 anos, José Maria dedicou-se ao “comércio de lotarias, câmbios e títulos”. A partir daí foi criando várias casas de comércio bancário que estiveram na origem do Banco Espírito Santo. Uma história de donos disto tudo.

«A porta está fechada, os vidros das montras sujos e o correio acumula-se no chão à entrada da loja. Estamos no número 91 da Calçada do Combro, por onde o elétrico 28 passa a levar turistas acima e abaixo pelas colinas de Lisboa. Uma folha afixada na porta conta-nos que ali se fazia e vendia “encadernação, douração, material de encadernação, decoração, artesanato”, outro pequeno cartão identifica o nome da empresa. Não terá resistido aos anos de crise a Boutique A. Fernandes – em 2009, o Google Maps ainda fotografou a loja de portas abertas, mas vazia de clientes naquele instante e a funcionária na entrada a ver quem passava. Longe, muito longe do ano de 1869, ali naquele mesmo número, quando José Maria do Espírito Santo e Silva abriu a sua Caza de Câmbio, tinha 19 anos, para exercer diversas operações financeiras, dando início a um império que, depois de muitas denominações e empresas associadas, chegaria a 2014 como Banco Espírito Santo. Também não resistiu ao que se sabe: o BES é agora o Novo Banco.

No século XIX, José Maria começou por dedicar-se ao “comércio de lotarias, câmbios e títulos”, antes de fundar várias casas de comércio bancário – nem todas com o seu nome, mas sempre como sócio maioritário. Quando morreu em 1915 está à frente da J.M. Espírito Santo Silva & Cª., e já deixara há muito a “caza” da Calçada do Combro (desde 1880), no limite do Bairro Alto onde nasceu. Os seus herdeiros – com o filho José Ribeiro à cabeça – formam a Casa Bancária Espírito Santo Silva & Cª., em 1916, e quatro anos depois o Banco Espírito Santo. No mesmo dia 9 de abril de 1920 em que nasce este primeiro BES, abre também uma agência em Torres Vedras. Estava definido o objetivo de “levar cada vez mais perto dos clientes os serviços bancários”.

A empresa é, 50 anos depois de fundada, nos anos 1920, uma sólida instituição bancária, como descreve o próprio Centro de História do Banco Espírito Santo. Ninguém teria cunhado ainda a expressão “dono disto tudo”, que os portugueses descobriram como cognome de Ricardo Salgado. E que certamente poderia ter sido o cognome de Ricardo Ribeiro Espírito Santo, um dos filhos do jovem cambista da “caza” da Calçada do Combro. Ricardo sucedeu ao irmão José, em 1932, e cinco anos depois promoveu a fusão do seu banco com o Banco Comercial de Lisboa (fundado a 25 de fevereiro de 1875, com um capital de “2000 contos de réis”). Nascia assim o Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa (BESCL, denominação que se manteria até 1999). Nos anos 1950, Ricardo tornou-se “num conselheiro especial de Salazar para todos os assuntos relacionados com economia política, diplomacia e artes – e acabou por se tornar também um dos melhores amigos do presidente do Conselho”, como conta Pedro Jorge Castro no seu livro Salazar e os milionários (Quetzal, 2009).

Ricardo Espírito presidia ao BESCL, liderava a petrolífera Sacor (que esteve na origem da Galp), controlava a companhia de seguros Tranquilidade e duas sociedades agrícolas em Angola e Moçambique. Às oito da noite de domingo, o ditador recebia o banqueiro e falavam de tudo. Também das viagens que Ricardo fazia – e Salazar via o mundo também pelos olhos dele. “É difícil encontrar um grande investimento que não tenha sido escrutinado e, mais do que isso, aprovado nestes encontros rotineiros de domingo à noite”, lê-se no livro. Noutra ocasião, em março de 1953, o presidente do Conselho recebia o ministro dos Negócios Estrangeiros e o banqueiro para discutir a prenda que no dia seguinte António Salazar iria dar a Franco, num encontro com o ditador espanhol. Uma hora depois, saía o ministro e ficava o banqueiro para mais uma hora de conversa. Ricardo Ribeiro Espírito Santo era também um dono disto tudo. Até à sua morte em 1955.

 Em 1972, o banco internacionaliza a sua atividade, criando em 1973 o Banco Inter-Unido em Angola. A atividade privada desta instituição é interrompida em 1975, quando os bancos são nacionalizados. O regresso do Grupo Espírito Santo a Portugal começa a ganhar forma ainda nos anos 1980, com a criação do Banco Internacional de Crédito (BIC) e, por fim, com a reprivatização do BESCL em 1991. O regresso ao nome mais curto de Banco Espírito Santo (BES) é no fim do século XX. Em maio de 2009, o presidente da Administração Ricardo Espírito Santo Salgado sublinhava – numa entrevista à newsletter interna do banco – que “a confiança é a trave mestra do sistema financeiro” e que, “quando há uma quebra de confiança, o sistema ressente-se imediatamente”. E Ricardo Salgado lembrava de passagem a falência do Lehman Brothers em 2008, nos EUA.

O ex-dono disto tudo antecipava o seu próprio fim: em 2014, a confiança na sua presidência esboroou-se e o império finou-se, 145 depois da caza de câmbios na Calçada do Combro. Só o correio não se acumula no chão. Do BES nasceu o Novo Banco. Hoje, a marca “equilibra elementos de património (como a cor verde) e de novidade”, explicou em setembro ao Dinheiro Vivo a sua diretora de marketing Rita Torres Baptista. “Potencia a familiaridade e proximidade dos seus clientes, ao mesmo tempo que incorpora o compromisso de renovação e superação para voltar a ocupar a posição de liderança que o mercado sempre lhe reconheceu.” Por quanto tempo mais, é a incógnita que se desenha.»

Miguel Marujo [reportagem publicada no âmbito dos 150 anos do Diário de Notícias; foto de cima (Global Imagens): A fachada do balcão do Saldanha com a nova imagem do Novo Banco para substituir o nome do Banco Espírito Santo (BES), uma mudança que se iniciou em setembro passado mas ainda não chegou a todas as agências; foto de baixo (arquivo JN): No dia 25 de abril de 1974, uma multidão acorreu a um dos balcões do então BESCL, no Porto. Em março de 1975, o banco seria nacionalizado, como toda a banca portuguesa. A reprivatização só chegaria em 1991.]

Outubro 03, 2014

À luz da peculiar família de Nazaré – o Sínodo sobre a família

Miguel Marujo

“O amor de Deus resplandece de maneira peculiar na família de Nazaré, ponto de referência seguro e de conforto de cada família. Nela refulge o amor verdadeiro para o qual todas as nossas realidades familiares devem olhar para haurir luz, força e consolação.” É este o remate da Instrumentum Laboris de preparação do Sínodo dos Bispos. São 58 páginas sobre “Os Desafios Pastorais da Família no Contexto da Evangelização” – que sintetizam os resultados do inquérito lançado há quase um ano pelo Papa Francisco sobre a família, a sexualidade e a Igreja – mas também parecem ficar aquém da família de Nazaré. A seu modo, era ela também peculiar: uma mãe que “não conhecia homem”, um pai que assumia um filho que não era seu e um filho que chamava Pai a Deus. A seu modo, esta família de Nazaré espelha também “todas as nossas realidades familiares”, que o documento sinodal tenta abordar.

Talvez as expectativas tenham sido exageradas: a novidade que o magistério de Francisco tem trazido – a cada dia, a cada semana, há gestos e palavras que parecem, pelo menos, apontar caminhos diferentes – também foi sublinhada com a notícia do inquérito promovido junto das comunidades cristãs, em novembro de 2013. Os jornais pegavam então pelo lado óbvio do Vaticano querer saber, junto dos leigos e párocos, sobre o divórcio, a contraceção ou o casamento homossexual. Sobre quem vive no dia a dia estas questões. Quase um ano depois, as respostas não são ainda conhecidas. A Instrumentum Laboris dá pistas do que poderá ser o caminho a seguir pelos bispos no seu Sínodo – e aí uma linguagem cifrada (sem a análise exaustiva das respostas ou a publicitação estatística dessas respostas) não abre porta a grandes novidades.

Tome-se o exemplo da contraceção, em que a prática vive a anos-luz do ensinamento do magistério. A Encíclica Humanae Vitae (HV) do Papa Paulo VI é apontada pelo seu “significado indubitavelmente profético” por aí se “confirmar a união inseparável entre o amor conjugal e a transmissão da vida”. Sabendo-se hoje que a Comissão Pontifícia sobre a População, Família e Natalidade (criada pelo Papa João XXIII, a 27 de abril de 1963, seis meses depois do começo do Concílio Vaticano II) se pronunciou por clara maioria, já no pontificado de Paulo VI, para que fosse revista a doutrina tradicional da Igreja Católica nas questões da contraceção, é de estranhar que este novo documento, apresentado em 2014, sublinhe que do “ponto de vista pastoral as respostas” dos bispos, “em numerosíssimos casos, indicam a necessidade de uma maior difusão – com uma linguagem renovada, propondo uma visão antropológica coerente – do que se afirma na Humanae Vitae, sem se limitar aos cursos pré-matrimoniais, mas inclusive através de percursos de educação para o amor”. Concede-se a “linguagem renovada”, mas insiste-se (citando “algumas respostas”) “que a apresentação dos métodos de regulação natural da fertilidade tenha lugar em colaboração com pessoas verdadeiramente preparadas, tanto do ponto de vista médico como pastoral”.

O Papa Paulo VI rasgou o parecer da Comissão Pontifícia sobre a População, Família e Natalidade. Mas os bispos sinodais terão pela frente um texto que alerta que “já Paulo VI, publicando a Carta Encíclica Humanae Vitae, estava consciente das dificuldades que as suas afirmações poderiam ter suscitado naquela época” e o próprio bispo de Roma admitia então que era “de prever que estes ensinamentos não serão, talvez, acolhidos por todos facilmente: são muitas as vozes, amplificadas pelos meios modernos de propaganda, que estão em contraste com a da Igreja. Para dizer a verdade, ela não se surpreende de ser, à semelhança do seu divino fundador, ‘objeto de contradição’; mas, nem por isso ela deixa de proclamar, com humilde firmeza, toda a lei moral, tanto a natural como a evangélica” (HV 18).

O objeto de contradição percorre ainda assim as páginas da Instrumentum Laboris. Mas sempre a medo. Afinal, “algumas Conferências Episcopais observam que o motivo da resistência aos ensinamentos da Igreja sobre a moral familiar é a falta de uma autêntica experiência cristã, de um encontro pessoal e comunitário com Cristo, que não pode ser substituído por apresentação alguma, mesmo se correta, de uma doutrina”. E depois sintetiza-se o que falha, por “unanimidade nas respostas”, para explicar os “motivos de fundo das dificuldades na aceitação do ensinamento da Igreja”.

Façamos a longa citação: “As novas tecnologias difusivas e invasivas; a influência dos mass media; a cultura hedonista; o relativismo; o materialismo; o individualismo; o crescente secularismo; a prevalência de conceções que levaram a uma excessiva liberalização dos costumes em sentido egoísta; a fragilidade das relações interpessoais; uma cultura que rejeita escolhas definitivas, condicionada pela precariedade, pelo provisório, típica de uma «sociedade líquida», do «usa e deita fora», do «tudo e já»; valores apoiados pela chamada «cultura do descarte» e do «provisório», como recorda frequentemente o Papa Francisco.” Esta “unanimidade” choca de frente com razões mais fundas de muitos leigos, na forma como vivem a sua sexualidade, como lidam com o corpo, como se relacionam com a contraceção, mesmo numa vida de um casal.

A vida a dois ocupa também uma longa dissertação do documento que será debatido no Sínodo, mas centrando-se no “tema da lei natural”. É natural que assim seja, quando se estabelece que “no contexto do acolhimento do ensinamento da Igreja sobre matrimónio e família é necessário ter presente o tema da lei natural”, um “vocabulário” que “hoje apresenta dificuldades”. Reconhece-se que “o conceito” é hoje “bastante problemático, ou até incompreensível”, mas insiste-se como “digna de relevo a proposta de situar e aprofundar o conceito, de inspiração bíblica, de «ordem da criação», como possibilidade de reler de modo existencialmente mais significativo a «lei natural»”.

Pôr tudo na ordem: “Das respostas emerge a convicção generalizada do facto que a distinção dos sexos possui um fundamento natural no âmbito da existência humana. Por conseguinte, existe uma força da tradição, da cultura e da intuição, o desejo de manter a união entre o homem e a mulher.” Por oposição ao facto de, a “não consideração do conceito de lei natural tende a dissolver o vínculo entre amor, sexualidade e fertilidade, entendidos como essência do matrimónio”, levando a que “muitos aspetos da moral sexual da Igreja hoje não são compreendidos”. E um assomo crítico a setores da Igreja: “Radica-se sobre isto uma certa crítica à lei natural também da parte de alguns teólogos.” E a prática dos católicos a contestar a lei natural, com a “prática maciça do divórcio, da convivência, da contraceção, dos procedimentos artificiais de procriação, das uniões homossexuais”.

A desordem dos dias de hoje, já se vê, chega também pelas “famílias alargadas”, “sobretudo devido à presença de filhos tidos de diversos partners” [estranha opção esta da tradução portuguesa do documento recorrer a alguns anglicismos desnecessários]. A recomposição das famílias tem diferentes matizes: “Na sociedade ocidental, já são numerosos também os casos nos quais os filhos, além dos pais separados ou divorciados, recasados ou não, se encontram também com avós na mesma situação. E ainda, sobretudo na Europa e na América do Norte (mas também entre os Estados da Ásia oriental), existem casos em evidente aumento de uniões matrimoniais não abertas à vida, assim como de indivíduos que orientam a sua vida como singles. Também as famílias monoparentais estão em evidente aumento. Nos mesmos continentes assiste-se ainda a uma vertiginosa aumento da idade matrimonial. Muitas vezes, sobretudo nos estados da Europa do Norte e da América setentrional, os filhos são considerados como um obstáculo para o bem-estar da pessoa e do casal.”

Das famílias à rejeição das uniões de facto ou casamentos homossexuais vai um passo. “Todas as Conferências Episcopais se expressaram contra uma ‘redefinição’ do matrimónio entre homem e mulher, através da introdução de uma legislação que permita a união entre duas pessoas do mesmo sexo.” Prefere-se antes falar num “equilíbrio entre o ensinamento da Igreja sobre a família e uma atitude respeitosa e não julgadora em relação às pessoas que vivem nestas uniões”. Sem cuidar que são também elas famílias, apesar de se notar “que as reações extremas a tais uniões, tanto de condescendência como de intransigência, não facilitaram o desenvolvimento de uma pastoral eficaz, fiel ao Magistério e misericordiosa para com as pessoas interessadas”.

Mostrar essa “atitude respeitosa e não julgadora em relação a estas pessoas”, apostando numa “pastoral que procure acolhê-las”, não quer dizer – escreve-se no texto sem quantificar respostas –, “que os fiéis estão a favor de uma equiparação entre matrimónio heterossexual e uniões civis entre pessoas do mesmo sexo”. Mais: “As respostas recebidas pronunciam[-se] contra uma legislação que permita a adoção de filhos por parte de pessoas em união do mesmo sexo, porque veem em perigo o bem integral do filho, que tem direito a ter uma mãe e um pai, como foi recordado recentemente pelo Papa Francisco (cf. Discurso à Delegação do departamento internacional católico da infância, 11 de Abril de 2014)”.

“O amor de Deus resplandece de maneira peculiar na família de Nazaré.” Talvez devêssemos antes começar por perguntar quem era essa peculiar família de Nazaré – Maria, José e Jesus.

[texto escrito para a revista Cáritas, a propósito do Sínodo dos Bispos, que se inicia em Roma no domingo.]