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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Dezembro 22, 2013

Um guia que nos leva até paragens remotas

Miguel Marujo

Pocket Atlas of Remote Islands

Judith Schalansky

Penguin Books

 

 

É uma tremenda injustiça a que cometo ao não escolher da colheita deste ano um qualquer romance, livro de poesia ou viagens, um álbum de fotografias ou banda desenhada e mesmo algo do mundo da ilustração infantil, que merece tantos elogios. Nas nossas viagens pessoais cruzamo-nos sempre com algo que acaba por subir à tona – e ao lembrarmos o ano, acabamos por acostar nesse porto. Por entre o que li e o que nem sequer folheei, acabo por optar pelo conforto de uma descoberta pessoalíssima (e se a edição inglesa deste original alemão é de 2012, só em 2013 o encontrei por estas nossas paragens).

Pocket Atlas of Remote Islands é um pequeno e improvável guia de viagens. A sua autora avisa logo na capa ao que vai – e ao que vamos: “Cinquenta ilhas que nunca visitei nem nunca visitarei”. Embarcamos então numa promissora viagem de descobertas que se cruzam com as nossas (portuguesas) ditas descobertas marítimas. Destas 50 ilhas, destes 50 pedaços de paraíso e inferno, há por exemplo Tristão da Cunha (na foto), Santa Helena e Ascensão, territórios improváveis da União Europeia num longínquo Atlântico Sul, hoje sob a Coroa britânica. Ou Diego Garcia, que pode ter sido achada por um português em 1512-1513, mas deve o nome a um navegador espanhol que serviu a Coroa portuguesa (a globalização é de facto uma coisa antiga).

Ao fazer esta viagem pelos cinco oceanos, os relatos de cada ilha surpreendem pela opção da autora, uma alemã nascida no Leste, antes da queda do muro de Berlim. Nessa altura, viajar para ela estava apenas ao alcance das folhas de um atlas, mas ao criar este, Judith Schalansky não optou pelo lado exótico (e fácil) de páginas de bonitas fotografias e textos encomiásticos. A sua viagem é crua, por vezes humorada e sempre despida de artifícios: regressemos a Diego Garcia, onde o texto começa num bairro de lata da capital maurícia de Port Louis, por aí viverem muitos nativos de Diego Garcia para ali deportados em 1971, para britânicos e americanos instalarem uma base naval no meio do oceano Índico. O óbvio postal de luxuriantes férias fica escondido dos olhares do mundo como área protegida militar.

Este atlas desconstrói a narrativa clássica dos atlas, apesar de cada ilha ser apresentada e desenhada no mapa, com as indicações mais relevantes. Para um atlas de territórios remotos, indica-se também a que distância ficam estas ilhas de outros pedaços de terra. Tristão da Cunha está a 2770 km do cabo da Boa Esperança, a 3340 km do Rio de Janeiro e a 2960 km de Thule do Sul. Longe de tudo, perto de nós – nas páginas deste atlas de bolso.

 

[texto publicado este sábado no QI, suplemento aos sábados do DN, sobre As leituras mais marcantes de todo o ano.]

Dezembro 22, 2013

Quando o anjo negro deixou entrar a luz

Miguel Marujo

Push the Sky Away

Nick Cave & The Bad Seeds

 

 

Sabemos bem quem ele é: o anjo negro que subia ao palco num filme a preto e branco alemão a dizer que não ia cantar sobre uma rapariga e acabava a cantar sobre essa rapariga, é o mesmo (muitos anos depois) que nos surge na capa deste disco a expulsar uma mulher do paraíso. Push the Sky Away marcou o regresso de Nick Cave – depois das explosões de Dig, Lazarus, Dig!!! (2008) e dos dois álbuns com os Grinderman (de 2007 e 2010) – a ritmos mais lentos, a sonoridades que parecem planar pelos céus, mas sem se aproximar de Murder Ballads (1996) ou The Boatman’s Call (1997), referências mais óbvias quando procuramos mares mais calmos na torrente discográfica do australiano.

Este álbum é também um recomeço para Nick Cave, o primeiro sem o seu companheiro de todas as outras 14 aventuras, Mick Harvey, que optou por semear a sua música a solo. Este álbum é também a minha escolha num ano de regressos que podiam ser também escolhidos como o que melhor se fez, seja David Bowie ou Arcade Fire ou The National.

Quando deixamos de voar e começamos a escavar as palavras que formam cada uma destas nove canções, percebemos que a turbulência da música de Nick Cave (e os seus companheiros de tantos anos, os Bad Seeds) afinal permanece lá, indelével, como a fé de muitos.

Há sereias, há Deus, ou um deus muito pessoal deste australiano, que apesar de toda a expiação e possível redenção, permanece sempre mergulhado na tristeza de despedidas, de amores impossíveis e carnais.

Só por momentos conseguimos achar que “We No Who U R”, “Higgs Boson Blues” ou “Jubilee Street” – provavelmente a mais bela canção do ano – nos transportam para paisagens sonoras reconfortantes. Os poemas, os apontamentos soltos que Nick Cave foi compilando num pequeno bloco-notas ao longo de um ano, nasceram também de curiosidades que o músico e também escritor foi googlando ou consultando na Wikipédia. Martin Luther King ou Miley Cirus são personagens de uma mesma história, nove histórias de aparente descrença, que retratam estes tempos de desesperança.

Ouvido o álbum, escutadas as canções, podemos olhar de novo para a capa e ver aquele anjo negro a deixar entrar a luz para o quarto, iluminando o corpo despido dessa mulher. Talvez, como nesta foto, este seja também um álbum de enganos. Empurrado o céu para longe, a esperança são as pessoas. Sem necessidade de esquecer, porque sabemos bem quem ele é, este anjo negro.

[texto publicado este sábado no QI, suplemento aos sábados do DN, sobre Os discos que contam a banda sonora do que ouvimos em 2013.]

Dezembro 20, 2013

Quem se mete com a estiva, leva

Miguel Marujo

Fui mimado hoje com um direito de resposta do Sindicato dos Estivadores no DN (edição papel) muito indignado por ter escrito uma notícia factualíssima com o título "trabalhadores portuários sem cortes nos salários", que se refere aos despachos de dois secretários de Estado sobre essa dispensa de cortes. Num segundo texto refere-se que os sectores aeroportuário e dos portos tinham mantido um longo braço de ferro com o Governo, indesmentível facto. Factos - falamos deles. Único erro: na capa (que não é minha responsabilidade), fala-se de "estivadores", quando o texto se referia a trabalhadores dos portos.

Os senhores estivadores não gostaram de serem assim olhados como privilegiados. E meteram ERC, que acolheu a queixa do sindicato. E queriam que o jornalista falasse com eles, quando a notícia não era sobre eles, como eles protestam (coerência, claro). E o sindicato aproveita o direito de resposta para insultar, imputando-me (ler a partir daqui com sonora gargalhada) a motivação da notícia como "manipuladora da opinião pública e inserida na brutal campanha que vimos assistindo desde há largos meses contra os estivadores portugueses".

Os senhores estivadores transformam-se em vítimas numa notícia que só penaliza o Governo. Helder Rosalino, que despachou favoravelmente a exceção de cortes aos trabalhadores portuários, deve rir-se hoje. Não admira que saia cansado do Governo.

Dezembro 16, 2013

Ficar à porta do Advento

Miguel Marujo


[foto MM, Lisboa, dez/13]

Fiquei à porta. Mas a entrada desta igreja a que tantas vezes passei sem nunca entrar, do Sacramento, ali ao Chiado, é suficientemente interpeladora neste Advento. Pela beleza instagramada, que carrega nas cores, como estes dias de excessos e mágoas e silêncios, por entre o tumulto de compras, consumos e mortes que não sabemos respeitar.
Fiquei à porta. Como todos nós ficamos. Hoje, no facebook, li isto: «Em períodos de dificuldade financeira, 47% dos portugueses cortam em comida, leio no Público, que acrescenta que depois de pagarem todas as contas, 39% dos portugueses ficam sem dinheiro para o resto do mês. O El País apresenta-me uma menina de 13 anos, hospitalizada na zona de Sevilha, ficou sem pai, mãe e irmã, todos mortos por intoxicação alimentar. Os vizinhos dizem que morreram de miséria e que ultimamente o pai recolhia coisas do lixo para revender, fica a dúvida se a comida vinha do lixo também. Isto está tudo tão profundamente errado. Que triste.» E esta mesma pessoa remata com um comentário: «também é notícia que nós e eles passámos o "exame da troika"».
É isto. E enquanto permitirmos isto, o Advento fica à porta. Nós ficamos à porta.


Dezembro 14, 2013

Os empregos que já criei

Miguel Marujo

Volta e meia, também vêm aqui perguntar-me, quantos empregos já criei - quando zurzo em maus empresários e péssimos gestores que temos. Sem grande paciência, costumo responder que se este fosse um país de empreendedores ou empresários por conta própria não haveria quem pudesse ser trabalhador por conta de outrém.

O Daniel Oliveira, no Expresso, acrescentou mais alguns argumentos óbvios. Que replico aqui para aqueles que estão sempre muito preocupados com os empregos que (dizem) não criei... «Resumindo: eu, como qualquer pessoa que produz e consome bens materiais ou imateriais, crio empregos. Nem mais nem menos do que qualquer empresário. Um empresário que cria empregos onde não há nem quem consuma o que pode ser produzido, nem quem produza o que pode ser consumido, rapidamente os descria. Falindo. Isto é tão básico, até para o mais empedernido dos liberais, que nem sequer deveria ser explicado. Só que o atual fascínio por empresários, vistos como oráculos da Nação e santos criadores de empregos, obriga-nos a voltar ao princípio.»

Dezembro 05, 2013

"As pessoas podem levar tudo...

Miguel Marujo

... de nós, menos a nossa mente e o nosso coração"




"Percorri esse longo caminho para a liberdade. Tentei não fraquejar; dei passos errados ao longo do percurso. Mas descobri o segredo: que, depois de escalar uma grande montanha, apenas se descobre que há muitas mais montanhas para subir. Parei aqui um pouco para descansar, para deitar uma olhada à vista maravilhosa que me rodeia, para olhar para a distância, de onde vim. Mas posso descansar somente por um momento, porque com a liberdade vêm as responsabilidades - e não me atrevo a demorar-me, pois a minha caminhada ainda não terminou".

Dezembro 04, 2013

Academia de política

Miguel Marujo

Quando um académico chega aos partidos ou ao Governo, logo os aparelhos se unem numa estranha maledicência em que (só neste país) ser-se intelectual é sinónimo de insulto. Mas quando se procura ler a academia que chega ao Governo ou aos partidos, para sublinhar as suas posições, confrontando-as (a palavra é esta, mas não soa a guerra nem a contradições) com o pensamento da estrutura onde está metida, logo se insiste que não há notícia. Pena que a academia prefira enclausurar-se.

Dezembro 02, 2013

Pobreza de números

Miguel Marujo

O Governo e a maioria argumentam contra as pensões de sobrevivência invocando que são pagas indistintamente a ricos e pobres. Ora, no caso das pensões mínimas este mesmíssimo argumento é esquecido, quando a situação é igual. Por isso, o contentamento que mostram governantes por supostamente ajudarem os mais necessitados esbarra na realidade crua. Até 2010, houve uma diminuição da pobreza (apesar de congeladas essas pensões nesse ano), que voltou a subir entre os mais idosos desde 2011. E a culpa tem um nome: os cortes cegos e cada vez maiores no complemento solidário de idosos.