«Denunciamos a ambiguidade do discurso do Magistério da Igreja sobre homossexualidade que contribui objectivamente para a discriminação social dos homossexuais. Afirmamos que os homossexuais não são cidadãos de segunda e que têm portanto igual dignidade e direito a ver reconhecida a sua diferença.»1
As denúncias que vieram a público sobre D. Carlos Azevedo, sobre um alegado caso de assédio sexual com cerca de 30 anos merecem dois comentários: um, circunstancial, sobre a luta intestina de poder, por um apetite muito terreno pelo cargo de patriarca de Lisboa, que se iniciou há mais de dois anos com a anunciada resignação de D. José Policarpo (por limite de idade); outro, mais estrutural, por algo que, quanto a mim, não pode ser mais escondido e varrido para as sombras de confessionários pelos bispos e padres - desta Igreja Católica Apostólica Romana - o da moral sexual. Sobre o primeiro apenas posso lamentar que haja bispos a entregar-se a um jogo mesquinho de interesses, numa teia de que ninguém sairá bem na fotografia num futuro próximo. É no segundo que se tem de centrar o debate (aberto e transparente) no interior da Igreja.
Há quase 20 anos, uma centena de jovens do MCE aprovou um texto amadurecido ao longo de vários anos, jornadas de reflexão e encontros diocesanos e nacionais. Não era uma reflexão nascida do nada, em dias e noites quentes de verão, era o remate lógico de um trabalho intenso de debate que cruzou duas gerações de militantes do Movimento Católico de Estudantes (das III Jornadas de Universitários Católicos, sobre "A ética e o labirinto dos desejos", em 1990, às IV Jornadas dos "Diálogos sobre a Afetividade e Sexualidade"2, em 1992). A este Documento sobre Moral Sexual, como ficou conhecido, a comunicação social daria alguma atenção semanas mais tarde, entre o choque e o pavor dos bispos reunidos na Conferência Episcopal Portuguesa (CEP). O texto falava sobre sexo, contraceção, homossexualidade, relações prématrimonais, como muitos católicos viviam e experimentavam. Mas o texto ousava dizer em público.
A coordenação nacional do MCE foi chamada à pedra, em reuniões sucessivas com os bispos que acompanhavam de perto o trabalho dos movimentos de leigos, com a necessidade de explicar o desvio sério e acentuado ao discurso vigente do Vaticano - e dos bispos portugueses. Jovens na casa dos 15-25 anos, batemos o pé ao que era outro pecado maior que nos apontavam: o texto não tinha tido a aprovação prévia, o imprimatur episcopal, saindo - então por fax - para a comunicação social (como qualquer outro documento aprovado em Conselho Nacional) antes de os bispos o conhecerem. A partir daí, durante uns dois anos, o movimento esteve sob uma espécie de vigilância reforçada dos bispos. E o processo foi doloroso, para muitos, questionados porque tínhamos pensado alto e em bom som sobre sexo.
O sexo não era ali era tratado como coisa de anjos. E isso afligiu muitos bispos, bastantes padres. Foram poucos os interlocutores que foram pastores junto dos militantes do Movimento. Faço este desvio pelos anos de 1990-1994 (caramba! há 20 anos) para apontar o dedo aos bispos (e padres) portugueses, o j'accuse que pedi emprestado para o título. Tomo partes pelo todo, por facilidade, admito. Mas o debate que então poderia ter sido feito na Igreja acabou inquinado por padres e bispos que não quiseram refletir a seriedade do documento, procurando antes arrumá-lo como exceção num rebanho ordeiro que não contestava as normas de Roma.
E trago esta história, portanto, para denunciar a enorme hipocrisia que é, nos dias que passaram, ouvir os responsáveis do Magistério falarem sobre o caso do bispo Carlos Azevedo. Já no texto, se apontava que «ao Magistério caberia, segundo pensamos, enquanto autoridade fundamental no interior da Igreja, apontar caminhos, valores, princípios gerais de orientação do comportamento dos Homens. No entanto, não é a isto que estamos habituados no domínio da Moral Sexual. Aqui, regra geral, confrontamo-nos com um discurso sabre aspectos particulares e questões pontuais, com pretensões de universalidade, perenidade e de quase infalibilidade, dificultando o acesso aos valores e princípios que diz pretender afirmar. Não raras vezes este discurso é baseado numa assim chamada sabedoria do humano supostamente detida pela Igreja sem nos revelar a sua fundamentação. [...] A inoperacionalidade deste discurso oficial da Igreja advém da sua desarticulação com o real e portanto da sua inaplicabilidade. Resulta daqui a sua ausência de credibilidade tanto junto da comunidade cristã como perante a sociedade em geral. Mais ainda, entendemos que a utilização deste tipo de discurso, que tira partido das inseguranças e fragilidades das pessoas na sua vivência da sexualidade ao insistir em prescrições particulares, é uma manifestação de vontade de poder profundamente imoral.»
Para além do triste comunicado da CEP, o que pudemos ouvir foram notas sobre o conhecimento que bispos e padres tinham sobre a homossexualidade de D. Carlos Azevedo, quando em público continuam a fazer um discurso culpabilizador desta orientação sexual, como se ela transportasse um qualquer pecado mortal. Nas linhas cuidadosas do texto de 1993, o MCE refutava este discurso. Bispos e padres não quiseram levar o debate ao centro do que interessava: as pessoas. Atropelando-se pessoas, achincalhando opções, agredindo homens e mulheres com um preconceito "profundamente imoral" sobre a sexualidade de uns e outras.
Na hora de discutir este caso concreto, não posso deixar de lamentar que a forma de o encarar seja mandar para Roma o suposto prevaricador. Se houve crime de assédio, essa é outra matéria - de foro criminal. Tivesse a Igreja encarado estes temas de outro modo e estaríamos só a discutir um eventual crime de poder, que é o de assédio, não a homossexualidade de alguém que por acaso é bispo. Mais: ao colocar o debate na sexualidade, temos de enfrentar de uma vez por todas o tema do celibato, imposição tardia de uma igreja medieval que esboroa qualquer argumento teológico para a sua sustentação, em detrimento da responsabilidade de cada um - consigo e com quem se relaciona.
A sexualidade de todos os homens e mulheres (incluindo os ordenados) tem de ser vivida de forma descomplexada e natural, sem fazer dela um bicho de sete cabeças. Ou arma de arremesso na hora de escolher patriarcas e papas.
1 - do texto aprovado no XIV Conselho Nacional do Movimento Católico de Estudantes, em Aveiro, Setembro de 1993, incluído em “A História nunca pode ser travada 1980-2000: 20 anos do Movimento Católico de Estudantes” (volume I), 2000.
2 - escrevo de memória datas e títulos...