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Cibertúlia

Dúvidas, inquietações, provocações, amores, afectos e risos.

Março 04, 2024

Este espelho é pouco meigo. E gostamos disso

Miguel Marujo

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Entre o fadistão e o corridinho, até nesta música há lugar para o filho da mãe, que aqui se chama Dr. Coisinho, e a letra é contrassenha para sorrisos e uma música que renova a linguagem da intervenção. Cara de Espelho é o novo projeto, que se estreou em disco em janeiro e, em palco, no sábado, 24 de fevereiro, em Braga, na bela sala do Theatro Circo, reunindo alguns dos nomes mais importantes da música portuguesa. Seguiu-se Loulé, agora apresenta-se em Lisboa e depois será a vez do Porto.

Cara de Espelho, nome também do disco, é antes de mais um manifesto, nestes tempos de populismos e extremismos à direita, sem medo de jogar com as palavras e as metáforas, onde se reconhecem atores e políticas que ameaçam direitos e liberdades. Sem medos. Corridinho Português canta o óbvio: “Separando o africano do cigano/ Do chinês, do indiano, ucraniano,/  muçulmano, do romeno ou tirolês/ Como vês/ Sobra muito, muito pouco português, ó pá// Separando o cristão do taoista,/ do judeu do islamita, do ateu ou do budista,/ do baptista mirandês/ Como vês/ Sobra muito, muito pouco português, ó pá”.

Sobra muito do que é isto tudo, os portugueses ao espelho, genuínos, como se canta em Genuinamente, “O bacalhau tão soberano/ Afinal vem da Noruega/ Nem batata, nem azeite/ São de origem cá da terra/ E quem canta o nosso hino/ Será que já viu o nome/ Alemão que o compôs/ Ou que o galo de Barcelos/ Um galego inventou/ Reformula então bem isso”. Não há “português de bem” que não fique de orelhas a arder.

Esta música que é de intervenção nas palavras, também se faz no som, com sabores bebidos na pop, na tradição popular e com pitadas do Brasil e das Áfricas, numa reinvenção que nada deve a saudosismos. Não é de espantar: este supergrupo junta gente que esteve nos Gaiteiros de Lisboa, em A Naifa e Señoritas, Deolinda, Ornatos Violeta e Humanos, experiências e projetos que, na medida justa, contribuíram para algumas belas páginas da música portuguesa.

As canções nascem da pena de Pedro da Silva Martins, também na guitarra, o autor do hino da geração lixada pela troika, que foi Parva que sou, dos Deolinda (2011), e logo se percebe de onde vem a verve cáustica e humorada, irónica e crítica, de cada uma das 12 canções do disco (e dos novos temas levados ao palco). Juntam-se o saber e a voz dos instrumentos criados por Carlos Guerreiro, o baixo de Nuno Prata, as guitarras de Luís J. Martins, as percussões de Sérgio Nascimento (a quem se deve a ideia de um grupo assim), e Maria Antónia Mendes, na voz, ela que é das vocalistas que melhor trata a língua portuguesa.

Em palco, o álbum ganha outra solidez (e o que vimos em Braga foi a estreia absoluta ao vivo), com a banda a ensaiar-se em cinco novos temas (D de denúncia, Roda do crédito, Já vou, O que esta gente quer?, e Aldeia fantasma) que mantêm a língua afiada e as canções sintonizadas numa paleta de soluções musicais criativas e, simultaneamente, tão próximas de quem ouve. Um reflexo feliz. “Nós somos os Cara de Espelho e estamos aqui para vos refletir. Sempre”, como atirou Maria Antónia para o público.

Maria Antónia ganha o palco e o público sem maneirismos desnecessários, nem apresentações a mais, tudo no tempo e modo certos, para saciar um público que talvez anseie por quem cante contra ventureiros de falsas ilusões e ódios exacerbados ou que ouve ali, em primeira mão, dignos herdeiros da melhor música de intervenção (sem pudor da palavra) de José Afonso, José Mário Branco, Sérgio Godinho, Fausto ou Adriano Correia de Oliveira, entre outros.

Se cada canção é o reflexo das virtudes ou defeitos, das fraquezas, dos pequenos ou grandes poderes, dos tiques, dos vícios, disto que é ser cidadão ou, no sentido lato, do que é ser humano, como é apresentado este projeto, gostamos de nos olhar ao espelho.

 

 

 

Próximos concertos:
4 e 5 de março, segunda e terça: Lisboa – Teatro Maria Matos
16 de março, sábado: Porto – Casa da Música

[artigo originalmente publicado no 7Margens, a 1 de março de 2024; foto © Adriano Ferreira Borges/Theatro Circo]

Março 01, 2024

A tragédia do autocarro que é a tragédia de dois povos

Miguel Marujo

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Um dia na vida de um pai à procura do filho que seguia num autocarro que sofreu um acidente é uma síntese aparentemente banal de uma história trágica e pessoal. Seria o caso de Um Dia na Vida de Abed Salama, não fosse Abed um palestiniano residente na Cisjordânia, Palestina. À tragédia pessoal de Abed, do seu filho Milad, da sua família e de todos os que têm filhos e familiares naquele autocarro, junta-se uma tragédia maior: a de viverem num território esquartejado por um muro e postos de controlo, entrincheirados ao sabor de bilhetes de identidade que definem por onde circularem, que escolas frequentarem e a que hospitais recorrerem. 

Um Dia na Vida de Abed Salama – Anatomia de uma Tragédia em Jerusalém é uma notável reportagem – da autoria do jornalista americano Nathan Thrall – vertida em livro e que nos leva a percorrer as ruas de angústia, num dia de fevereiro de 2012, de uma forte tempestade, com muita chuva, por entre “um labirinto de obstáculos físicos, emocionais e burocráticos”, na síntese certeira da contracapa do livro. 

Abed está do lado do muro em que todas as coisas se complicam, em que percorrer escassas centenas de metros é um calvário moderno de ódio, racismo ou de fria burocracia a condicionar a vida de todos: na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, no amor e no divórcio. 

Este livro atual, publicado nos inícios de outubro do ano passado (em simultâneo nos EUA e em Portugal) ganhou uma maior acuidade com os ataques do Hamas a 7 de outubro de 2023, lançando para o abismo dois povos vizinhos e inimigos, numa espiral que parece longe de qualquer fim, e mais ainda de qualquer centelha de paz. 

Os dias do livro são os dias das intifadas, a primeira e a segunda, quando os jovens palestinianos lançaram mão de pedras para lutar contra a presença israelita cada vez mais asfixiante nos territórios ocupados da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. 

Nisso, o relato de Nathan Thrall é de uma secura extraordinária: por entre a trágica história particular de Abed, o jornalista americano tece com paciência e muita informação aquilo que é um conflito de décadas. Vai à História para nos dar as histórias do quotidiano de milhões de palestinianos, que vivem uma tragédia coletiva que se repete, num ciclo obsceno de violência. Em abril de 1948, recorda Thrall  ao contar-nos a vida de pessoas que vão surgindo naquele dia do acidente –Milad“bombardearam as casas palestinianas e os mercados da Baixa. Haifa sucumbiu em apenas um dia”. Através da rádio e de altifalantes, foram dadas instruções para uma evacuação imediata. Parece-se demasiado com as notícias daquelas semanas de outubro e novembro de 2023, e que se prolongam por 2024.

O destino de Milad continua suspenso, ao longo de páginas em que se narra a história do seu pai, da família de Abed, de como as terras dos Salama foram sendo ocupadas para ali se instalarem colonos israelitas, de como o jovem Abed amava Ghazi mas casou com Haifa e Asmahan, de como foi militante da Frente Democrática para a Libertação da Palestina (FDLP), a ala marxista-leninista da Organização para a Libertação da Palestina (OLP)  e estas siglas parecem-nos viver numa cápsula do tempo já distante.

Nathan Thrall traça nestas páginas os caminhos sinuosos que vão marcando a vida do povo palestiniano e dos seus vizinhos israelitas, entre a breve esperança dos Acordos de Oslo, o rápido desencanto de uma cada vez mais intensa ocupação, e as circunstâncias das vidas que lutam todos os dias. Também por causa do seu ativismo Abed será preso e torturado, e passa por Naqab, uma prisão onde se amontoam “jornalistas, advogados, médicos, professores, estudantes, sindicalistas, líderes da sociedade civil, defensores da não-violência, membros de grupos de diálogo entre Israel e OLP, que eram ilegais”, num retrato de como todo um país luta contra o opressor. Com pedras na mão, ou bombas, com diálogo ou com a não-violência: todos são metidos no mesmo saco.

Já o pequeno Milad, 5 anos, sonhava com aquela viagem a um parque temático nos arredores de Jerusalém, e implorou aos pais para poder ir na visita. Os pais de Milad acederam, como outros, reticentes à última hora, por causa da tempestade daquela manhã que assustava muito.

A chuva que não parava de cair, não lavou a memória da tragédia. Kayed divorciou-se de Nansy, culpando-a pela morte de Salaah. Todas aquelas famílias ficaram destruídas, enquanto iam e vinham entre os hospitais de Ramalah e Jerusalém, à procura de notícias dos seus filhos. Esta é também a história de Radwan, o motorista do autocarro escolar que ficou com a vida destroçada, ou de Huda, Nader, Eldad, Salem, Dubi, e todos os que convergiram naquela estrada nas proximidades de Jaba – médicos, técnicos de emergência, bombeiros, militares, ou apenas curiosos.

A morte daquelas crianças e professores chocou de frente com o ódio instalado: houve jovens israelitas, miúdos, que espalharam pelas redes sociais comentários de alegria e sarcasmo, celebrando a morte de dez palestinianos, quase todos crianças pequenas. “É só um autocarro cheio de palestinianos. Nada de especial. É pena que não tenham morrido mais.” Este livro é uma ferida aberta. Obrigatório para entender a tragédia de dois povos.

 

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Um Dia na Vida de Abed Salama – Anatomia de uma Tragédia em Jerusalém
de Nathan Thrall (tradução de Sara Veiga)

Livros Zigurate
outubro de 2023
208 págs

 

Artigo originalmente publicado no 7Margens, a 25 de fevereiro de 2024. Foto de Abed Salama a segurar um retrato do filho Milad, de Ihab Jadallah / Nathan Thrall, in People's World.

Fevereiro 28, 2024

A interrupção voluntária do diálogo

Miguel Marujo

Em dezembro de 2006 (!!!), eu, a Ana Berta Sousa, o José Manuel Pureza​, a Marta Parada​ e a Paula Abreu​ escrevemos este texto no jornal Público. Hoje, quase 20 anos depois, recupero-o, porque há sempre setores de uma certa Igreja (sempre os mesmos, e sempre ligados a determinados partidos) prontos a atirar-nos para trás, ignorando o que a lei da interrupção voluntária da gravidez trouxe em termos de saúde, nomeadamente, na diminuição do número de abortos, e de mortes de mulheres. E ignorando a defesa da vida.

 

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"Somos católicos e assistimos, inquietos e perplexos, à reiteração de uma lógica de confronto crispado por parte de sectores da Igreja Católica — incluindo os nossos bispos — no debate suscitado pelo referendo sobre a despenalização do aborto. Frustrando as melhores expectativas criadas pelas declarações equilibradas de D. José Policarpo, a interrupção voluntária do diálogo volta a ser a linha oficial. E o radicalismo vai ao ponto de interrogar a legitimidade ao Estado democrático para legislar nesta matéria. É um mau serviço que se presta à causa de uma Igreja aberta ao mundo.

A verdade é que a despenalização do aborto não opõe crentes a não crentes. Nem adeptos da vida a adeptos da morte. Não é contraditório afirmarmo-nos convictamente «pela vida» e sermos simultaneamente favoráveis à despenalização do aborto. Porque sendo um mal, não desejável por ninguém, o recurso ao aborto não pode também ser encarado como algo simplesmente leviano e fácil. As situações em que essa alternativa se coloca são sempre dilemáticas, com um confronto intensíssimo entre valores, direitos, impossibilidades e constrangimentos, vários e poderosos, especialmente para as mulheres. Ora, mesmo quando, para quem é crente, a resposta concreta a um tal dilema possa ser tida como um pecado, manda a estima pelo pluralismo que se repudie por inteiro qualquer tutela criminal sobre juízos morais particulares, por ser contrária ao que há de mais essencial numa sociedade democrática.

Por isso, não nos revemos no carácter categórico e absoluto com que alguns defendem a vida nesta questão, dela desdenhando em situações concretas de todos os dias: a pobreza extrema é tolerada como "inevitável", a pena de morte "eventualmente aceitável", o racismo e a xenofobia é discurso vertido até nos altares. A Igreja Católica insiste em dar razões para ser vista como bem mais afirmativa "nesta" defesa da vida do que nos combates por outras políticas da vida como as do emprego, do ambiente, da habitação ou da segurança social. Além de que, no caso do aborto, a defesa da vida deve sempre ser formulada no plural. Estão em questão as vidas de pelo menos três pessoas e não apenas a de uma. Por isso, quando procuramos — como recomenda um raciocínio moral coerente mas simultaneamente atento à vida concreta das pessoas — estabelecer uma hierarquia de valores e de princípios, ela nem sempre é fácil ou mesmo clara e não será, seguramente, única e universal. Nem o argumento de que a vida do feto é a mais vulnerável e indefesa das que se jogam na possibilidade de uma interrupção voluntária da gravidez pode ser invocado de forma categórica e sem quaisquer dúvidas.

É de mulheres e de homens que se trata neste debate. E também aqui, o esvaziamento do discurso de muitos católicos e sectores da Igreja relativamente aos sujeitos envolvidos nos dilemas de uma gravidez omite a recorrente posição de isolamento, fragilidade ou subalternização das mulheres, para quem o problema poderá ser absoluto e incontornável, e reproduz a distância que sustenta a sobranceria e condescendência moral de muitos homens (mesmo que pais). A invocação do direito da mulher a decidir sobre o seu corpo é um argumento que, bramido isoladamente, corre o risco de reproduzir de uma outra forma a tradicional atitude de desresponsabilização de grande parte dos homens perante as dificuldades com que se confrontam as mulheres na maternidade e no cuidado de uma nova vida. A defesa da autonomia da mulher, da sua plena liberdade e adultez é indiscutível e será sempre tanto mais legítima e forte quanto reconhecer e atribuir ao homem os deveres e os direitos que ele tem na paternidade. Ignorá-lo é mais uma vez descarregar apenas sobre os ombros das mulheres a dramática responsabilidade de decidir sobre o que é verdadeiramente difícil. A Igreja tem, neste aspecto particular, uma responsabilidade maior. As suas preocupações fundamentais com a família exigem uma reflexão igualmente apurada sobre as responsabilidades conjuntas de mulheres e homens na concepção e cuidado da vida.

Infelizmente, pelas piores razões, o discurso oficial da Igreja está muito fragilizado para a defesa de abordagens à vida sexual e familiar que acautelem o recurso ao aborto. A moral sexual oficial da Igreja — e, em concreto, em matéria de contracepção — fecha todas as alternativas salvo a da castidade sacrificial. É um discurso que não contribui, de modo algum, para a defesa de uma intervenção prioritariamente preventiva, em que ao Estado fosse exigível um sistemático e eficaz serviço de aconselhamento e assistência no domínio do planeamento familiar e da vida sexual. Pelo contrário, o fechamento dos mais altos responsáveis da Igreja a uma discussão mais séria e aberta sobre a vivência concreta da sexualidade denuncia um persistente autismo, que ignora a sensibilidade, a experiência, o pensamento e a vida das mulheres e dos homens de hoje.

Em síntese, o recurso ao aborto é sempre, em última análise, motivo de um grave dilema moral. E é nessas circunstâncias de extrema dificuldade que achamos ter mais sentido a confiança dos cristãos na capacidade de discernimento de todos os seres humanos, em consciência, sobre os caminhos da vida em abundância querida por Deus para todos e para todas. Optar por uma reiteração de princípios universais, como o do respeito fundamental pela vida, confundindo-os com normas e regras de ordenação concreta das vidas é, além do mais, optar por uma posição paternalista, de imposição e vigilância normativas, e suspeitar de uma postura fraternal, de confiança e solidariedade, com os que, de forma autónoma, procuram discernir as opções mais justas. Partir para este debate com a certeza de que a despenalização do aborto é porta aberta para a sua banalização é abdicar de acreditar nas pessoas, em todas as pessoas, e na sua capacidade de fazer juízos morais difíceis. Não é essa abdicação que se espera de homens e mulheres de fé."

Ana Berta Sousa, José Manuel Pureza, Marta Parada, Miguel Marujo e Paula Abreu
[artigo originalmente publicado no Público, em 21 de dezembro de 2006; foto © Agnès Varda — Portugal, Póvoa de Varzim, 1956 (Sophia Loren Poster)] 

 

Fevereiro 17, 2024

Em defesa da vida. Porque se calam os bispos contra o Chega?

Miguel Marujo

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Este texto podia ir beber a um outro, de Henrique Raposo, no Expresso (8/1/24), no qual, quase para começo de conversa, o cronista nos dizia que um católico não podia votar no Chega “porque um católico no Chega é como um bloquista na especulação imobiliária: é uma contradição nos termos”. E explicava-se: “A obsessão nacionalista com os “portugueses de bem” ou com o “Portugal invadido” é a direta negação do bom samaritano e do Pentecostes, é a negação do discurso universal e humanista do Evangelho. O Evangelho está construído contra a imanência do sangue, contra o tribalismo, contra os totens de classe e de nação fechada. Acolher e integrar o estrangeiro é a essência do catolicismo, que é uma ponte entre classes e etnias; o catolicismo não é um muro, muito menos um castelo para defender numa lógica de seita de puros fechada ao mundo.”

Podia lançar mão de mais umas quantas palavras deste cronista, que já em 2019 tinha afirmado categoricamente, então na Rádio Renascença, ​“nem um voto cristão no Chega”, mas tenho antes que lamentar que estes textos não tenham suscitado qualquer adesão imediata dos membros da Conferência Episcopal Portuguesa, ao contrário de outros temas, sobre os quais os senhores bispos estão sempre muito prontos a dizer coisas.

O que a CEP ou os diferentes bispos diocesanos têm a dizer sobre o voto são formulações vagas sobre a necessidade de escolher quem defende “valores cristãos e evangélicos” (ignorando o atropelo evangélico que são muitas das ideias e propostas do Chega) ou “em defesa da vida” (levando a equívocos sérios, em que se apela ao voto num partido que defende o contrário da vida).

Sejamos claros: um partido que assenta a sua mensagem política no ódio e na divisão, que odeia o Outro e ataca os outros em função da sua pele e da sua origem, que defende a pena de morte ou a castração química, numa clara violação da defesa intransigente da vida, incluindo aos que falham gravemente, sem possibilidade de perdão, é um partido profundamente anti-evangélico, à luz da Bíblia e de qualquer texto essencial da Igreja Católica. E, no entanto, os bispos calam-se e não levantam a sua voz contra o apoio de católicos ao Chega. Pior: calam-se, perante a invocação sistemática, hipócrita e falsa que Ventura faz de Deus, da Bíblia ou da Igreja.

“A adesão ao populismo de muitos católicos privilegiados que compõem o sector fariseu”, como bem nota Raposo, devia ser combatida com discernimento e clareza pelos bispos (e padres e religiosas e religiosos). E não é.

Aliás, há maus exemplos que vêm de dentro, com setores ultraconservadores ditos católicos a insistirem que a defesa da vida se faz com posições como a “vida por nascer”, a “rejeição [da] eutanásia”; a “liberdade de educação”; a “oposição [à] ideologia de género”; a “proibição [de] barrigas de aluguer”; e o “combate à prostituição”.

Uma mistura de alhos com demasiados bugalhos para, mais uma vez, não ajudar a discernir, antes confundir. Como se a defesa das escolas católicas fosse primordial perante o ataque racista ao imigrante, que foge da guerra e da pobreza e apenas procura o nosso país para trabalhar e ter uma vida melhor – apesar de invisíveis. Como se alinhar na mentira desbragada de casas de banho únicas nas escolas (já agora: ninguém do Chega usa casas de banho nos comboios?) fosse mais importante que retirar apoios a quem quase nada tem (é disso que se trata, por exemplo, no rendimento social de inserção).

É assustador ver como os bispos se calam perante o desmando diário de falsidades, insultos e incêndios ateados por aquele partido, e sem merecer uma palavra de condenação, vivo repúdio, genuína repulsa por parte dos católicos, muitos dos quais ditos praticantes, e que batem tanto no peito. São autênticos vendilhões do templo, como bem descreve Raposo: “É por isso que o mais bíblico dos papas recentes, Francisco, causa tanto desconforto. Então não está no centro do evangelho a ideia de misericórdia para aqueles que estão nas margens? Está. Então porque é que causa tanta celeuma a empatia de Francisco para com os recasados, com os homossexuais, com os trans, com mães solteiras, etc, etc. etc.? Um católico que vota no Chega é um traidor do Evangelho.” Ámen.

 

Declaração de interesses: trabalho, conjunturalmente, como assessor de comunicação no atual Governo. Não me retira qualquer legitimidade, mas também por isso me socorri de alguém insuspeito como Henrique Raposo.
[Texto originalmente publicado no Sete Margens, a 14 de fevereiro de 2024; foto do Santuário de Fátima, na missa convocada pelos bispos por intenção das vítimas de abusos sexuais, em Fátima]

Fevereiro 16, 2024

Os extremismos são pasto dos fundamentalismos — religiosos e seculares

Miguel Marujo

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Duas notícias publicadas no mesmo dia, 10 de dezembro de 2023, na página inicial do 7MARGENS mostram cabalmente como os extremos continuam a tocar-se, esmagando a possibilidade de um caminho radical para um secularismo e uma laicidade que sejam completamente vividos, sem extremismos. Numa das notícias, o Presidente francês era criticado e atacado por todos – da extremíssima-direita à esquerda – por ter acolhido no Palácio do Eliseu uma cerimónia do Hanukkah, ouvindo o que nunca Maomé terá dito do toucinho. Na outra notícia, o óbvio pedido por um lorde de separação entre a Igreja oficial do reino e a coroa do Reino Unido recebido com sarcasmo e um liminar “não” a qualquer discussão séria.

A excessiva invisibilidade da religião na laïcité da República Francesa abre a porta à torrente de críticas a Emmanuel Macron. O jornal Muslim Times notou a contradição, em tempo de conflito aberto entre Israel e o Hamas: o uso da abaya (um vestido longo, usado por muçulmanas) foi proibido nas escolas francesas, com o [então] ministro da Educação [agora primeiro-ministro] francês a afirmar, sem qualquer nuance, que “a laicidade é a liberdade de emancipar-se através da escola”. Antes, Gabriel Attal tinha dito que ir à escola vestindo uma abaya era “um gesto religioso destinado a testar a resistência da República sobre o santuário secular que deveria ser a escola”. Este secularismo, acusa o jornal publicado no Reino Unido, só não é aparentemente posto em causa quando Macron assiste à missa com o Papa Francisco em Marselha ou acende “uma vela religiosa” no Eliseu — “tudo isto não é muito coerente”. Ou mesmo nada.

No Reino Unido, uma proposta do lorde liberal-democrata Paul Scriven para “desestabilizar a Igreja da Inglaterra” foi acolhida com protestos dos seus pares na Câmara dos Lordes, a câmara alta do Parlamento britânico. Esta lei pretende separar oficialmente a Igreja e o Estado, no país onde o monarca é o chefe da Igreja. Scriven disse o óbvio, para quem vive num país como Portugal: “Numa sociedade moderna, pluralista e secular, é um privilégio religioso bastante arcaico e injustificável” ter uma instituição religiosa “implantada no coração da nossa constituição, no coração da organização e gestão do Estado”. “A separação entre a Igreja da Inglaterra e o Estado já deveria ter sido feita há muito tempo.” Pois já.

O caminho é óbvio: nem tanto ao secularismo, nem tanto à religião. Em Portugal, com a Liberdade Religiosa a ser celebrada nos espaços do Parlamento, sublinha-se o equilíbrio que alguns insistem em desequilibrar: a laicidade do Estado e o secularismo da sociedade não são postos em causa por apoios do Estado a eventos religiosos, nem a religião se vive enfiada na sacristia ou fica fechada no espaço dos cultos.

É óbvio que alguns poucos insistem em apropriar-se da religiosidade no espaço da política, invocando Jesus em debates políticos, quando a sua prática partidária e pública exclui o outro e ataca o pobre, o refugiado, o migrante, o asilado, o homossexual ou o transsexual. Se uma Igreja, como a católica, deve evitar colar-se a partidos, quaisquer que sejam, também deve ser clara e profética: apontando que estes que agora invocam Deus são vendilhões do templo, e apenas procuram o oportunismo do voto. (Sim, falo do Chega, que devia ser denunciado pelos bispos católicos, como fizeram de forma clara os bispos da Baviera, Alemanha, em relação aos neonazis da AfD.)

E também é óbvio que há outros que invocam uma espécie de neutralidade “enverhoxhista” (lembrando o antigo ditador albanês que consagrou o ateísmo como “religião” de estado), como se a liberdade de expressão religiosa estivesse diminuída no espaço público.

A conclusão é necessária. Se a França laica e secular convivesse saudavelmente com as religiões, não berrava contra uma cerimónia religiosa no Eliseu, porque haveria pluralidade. (Assim, houve apenas um aproveitamento político de apoiantes de uma causa próxima da guerra.) Todos diferentes, e todos iguais — e esse caminho é o que o Reino Unido também devia seguir, recusando uma igreja oficial e oficializando antes a separação entre a Igreja e o Estado. Os extremismos são pasto dos fundamentalismos. Os religiosos e os seculares.

 

[artigo revisto a partir do original publicado no Sete Margens, em 13 de dezembro de 2023]

 

Janeiro 26, 2024

Vichyssoise a mais

Miguel Marujo

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Há pouco mais de um ano, Marcelo virou as agulhas todas contra (é a palavra) o Governo, depois do país inteiro lhe ter caído em cima com a frase demasiado infeliz e ligeira sobre os abusos sexuais na Igreja. A partir daí, insistiu — com uma regularidade conveniente e conivente — num tema alimentado apenas pela direita e por alguns setores socioeconómicos interessados: uma eventual dissolução do Parlamento, como se o Governo não tivesse a legitimidade de uma maioria eleitoral nas urnas.

O Presidente insistia que tinha de avaliar a maioria. E quem avaliaria o Presidente? A sua legitimidade tem a mesma origem da do Governo: uma eleição direta. E a maioria de um é tão legítima como a do outro. Marcelo foi eleito nas presidenciais com 2,5 milhões de votos; o Governo do PS recolheu 2,3 milhões de votos — duas ordens de grandeza muito próximas, que não podem ser postas em causa por sondagens que ouvem umas centenas de pessoas.

Um ano depois, depois de um novo e enorme deslize, agora sobre a guerra entre Israel e a Palestina com uma tirada infantil sobre quem “começou” a guerra, e as suspeitas de uma cunha inaceitável, levaram o Presidente para níveis históricos de impopularidade (medidos por sondagens, que não podem pôr em causa o seu mandato). A fuga em frente manteve-se na oposição ao Governo, com vetos políticos, até em matérias em que o Tribunal Constitucional lhe retirou razão em toda a linha, procurando ser o alimento opositor à falta de líder da oposição.

Valeu-lhe o parágrafo salvífico da procuradora-geral da República, grave no conteúdo, péssimo na forma. A oposição cavalgou uma inadmissível intromissão e ingerência na separação de poderes, com o Ministério Público a ser ligeiro na investigação e pernicioso na política. Exulta a extrema-direita que só sobrevive nos escombros dos regimes.

Agora, com a sua atuação na Madeira, desdiz o que estabeleceu como alegada jurisprudência do seu mandato, desfazendo-se em contorcionismos e alegadas exigências de pureza, numa região governada sempre pelo mesmo partido.

Quando daqui a dois anos o país for chamado de novo a votos, por causa da instabilidade provocada por uma precipitada convocação de eleições, Marcelo ficará definitivamente para a História como o Presidente da instabilidade, e da interferência numa maioria que era e é tão legítima quanto a que o elegeu. Por mais trapalhadas que se apontem, Marcelo tem sido pouco Presidente e demasiada vichyssoise.

 

[foto: GBC Kitchen]

Janeiro 24, 2024

No meu radar do Spotify, versão 2023

Miguel Marujo

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No radar do meu Spotify para 2023 (que os senhores insistem em divulgar um mês antes do final do ano) faltam dois nomes obrigatórios desse período: Lana Del Rey e Virginia Astley. Ouvi-as insistentemente em vinil, no caso de Lana, e pelo Bandcamp, no belo regresso de Virginia em outubro. São dois dos melhores discos que ouvi em 2023.

Mas também faltam Björk, A Garota Não, The Breeders, Carlos Maria Trindade, Talk Talk, Nuno Canavarro, The Pogues, to name a few, que fui ouvindo por causa de um concerto, reedições ou trabalhos novos, também noutros suportes, com o vinil a regressar em força à estante e ao gira-discos e o streaming a ajudar a compor o muito que me falta sempre. Os meus discos do ano, aqueles que mais ouço – e não apenas uma mera lista dos “melhores de” –, são sempre de vários anos, ao sabor da descoberta e da redescoberta, ou daqueles que verdadeiramente nunca desaparecem do meu radar pessoal.

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Com o seu wrap, a que só agora dou corpo neste texto, o Spotify (como em muitas outras descobertas, à conta do algoritmo) ajuda-me a perceber aquilo que mais insistentemente ouvi ou procurei: The Ballad, do belo novo disco dos Blur, foi a canção mais escutada, e Ryuichi Sakamoto, que lançou um disco inédito no seu dia de anos, a 17 de janeiro de 2023, dois meses antes de morrer, foi o músico com quem mais tempo passei.

Nas novidades, para além da canção dos Blur, há ainda canções de Weyes Blood (It’s Not Just Me, It’s Everybody, do álbum And in the Darkness, Hearts Aglow), Sigur Rós (Blóðberg, de Atta) e Peter Gabriel (Four Kinds of Horses – Dark-Side Mix, de i/o). Todos estes regressos inscrevem-se na lista dos melhores álbuns de 2023, sem pestanejar.

Das cinco canções mais ouvidas, apenas uma antiga se intromete nas cinco mais ouvidas, daquelas que volta e meia gosto de revisitar: Spirit, geniais 1’48” dos Waterboys nesse grande disco que é This is the Sea (1985).

É nos artistas mais ouvidos que o antigo mais se manifesta: Ennio Morricone, porque regresso sempre às suas composições; os U2, com a reinterpretação tanto conservadora como ousada das suas canções em Songs of Surrender a servirem de mote para audições antigas; e John Sheppard, uma absoluta surpresa para mim, ao descobrir que a escuta regular do álbum Renaissance - Music For Inner Peace deste compositor inglês o colocou no meu top 5.

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À cabeça desta lista estão os já referidos Ryuichi e Gabriel. Não admira: 12 é um fantástico testamento que Sakamoto nos legou – e a sua morte encaminhou-me a revisitar outras criações fantásticas; e i/o, o regresso aos álbuns de originais por Peter Gabriel, cerca de 21 anos depois de Up (2002), que foi sendo divulgado a cada lua cheia ao longo do ano de 2023.

2023 foi o ano em que o vinil voltou a trazer-me aos ouvidos 3 Feet High and Rising, dos De La Soul, e aquele jogo de palavras, rimas e batidas continua a ser do melhor que o hip-hop já nos deu; When God Was Famous (A Tribute To Poetry), por Samy Birnbach & Benjamin Lew, um mar de tranquilidade feito de poesia; e os Hugo Largo, que apenas com dois discos (Drum e Mettle) deixaram uma marca indelével e perene da música dos finais de 1980. E também se ouviram muito aqueles que cito a abrir e que o Spotify não apanhou no seu radar.

No wrap do streaming classificam-me como “Vampiro”, por ser “uma fascinante criatura das sombras… até quando ouves. Preferes ouvir música emotiva e atmosférica.” O português é fraquinho e o resumo muito afunilado. Eu prefiro ouvir música, ponto.

 

Janeiro 22, 2024

As prendas proibitivas de governantes: o fato árabe, o alaúde, o drone, os relógios e as joias

Miguel Marujo

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Em Goa, Índia, em janeiro de 2017, António Costa recebeu o prémio da diáspora. Por se tratar de uma distinção pessoal, este prémio não está incluído nas ofertas que o primeiro-ministro tem à guarda do Estado. 

 

Um fato árabe, várias gravatas de marca e uma mola de gravata, botões de punho, relógios e joias. O leitor não se engane: não abrimos nenhum armário e gavetas de um qualquer príncipe saudita. Trata-se apenas de uma pequena amostra das prendas que foram recebidas por membros do Governo e que estão guardadas num cofre do Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE).

Estes presentes guardados naquele cofre - e noutros locais dos diferentes ministérios - são o lado visível da resolução do Conselho de Ministros n.º 53/2016, que descodificada se traduz no "código de conduta do governo" (e saltou de novo para a ordem do dia com a sua alegada violação pelo ministro Vieira da Silva no "caso Raríssimas"), no qual se "esclarece em que condições e até que valores os membros do Governo ou dos respetivos gabinetes podem aceitar ofertas ou convites de entidades privadas".

Como gato escaldado de água fria tem medo, o Governo resolveu arrefecer eventuais suspeitas na aceitação de ofertas - depois de serem conhecidas as viagens pagas pela Galp, ao Euro de futebol, a três secretários de Estado - com a aprovação deste código a 8 de setembro de 2016.

No artigo 10.º, que se refere a "convites ou benefícios similares", refere-se que "os membros do Governo abstêm-se de aceitar, a qualquer título, convites de pessoas singulares e coletivas privadas, nacionais ou estrangeiras, e de pessoas coletivas públicas estrangeiras, para assistência a eventos sociais, institucionais ou culturais, ou outros benefícios similares, que possam condicionar a imparcialidade e a integridade do exercício das suas funções".

Quem diz convites, também diz bens. No artigo 8.º repete-se quase textualmente a mesma fórmula, reportando-se a ofertas "de bens, consumíveis ou duradouros, que possam condicionar a imparcialidade e a integridade do exercício das suas funções". E logo aí se diz que "entende-se que existe um condicionamento da imparcialidade e da integridade do exercício de funções quando haja aceitação de bens de valor estimado igual ou superior a 150 euros", valor idêntico para os convites.

Há exceções de prendas que podem ser aceites, admitidas pela lei. Mas esses bens acabam confiados ao Estado. "Todas as ofertas" superiores a 150 euros, "que constituam ou possam ser interpretadas, pela sua recusa, como uma quebra de respeito interinstitucional, designadamente no âmbito das relações entre Estados, devem ser aceites em nome do Estado".

Manda a educação e a diplomacia que não se recusem estas prendas, mas o seu destino (neste pouco mais de um ano de aplicação do código) é o depósito num cofre ou num armário, com usos pontuais: a exposição numa vitrina num átrio de edifícios ministeriais; uma ou outra peça decorativa em gabinetes.

No edifício da Presidência do Conselho de Ministros (PCM), um simples armário de escritório guarda os 30 artigos oferecidos (até 27 de outubro) aos membros do governo integrados na PCM "ou a quem esta presta apoio", como o gabinete do primeiro-ministro. A maior parte destas prendas foram dadas a António Costa. E há de tudo: um alaúde dourado que Marrocos entregou numa caixa; um serviço de jantar para 12 pessoas, oferecido pela República da Colômbia; um cubo forrado a azulejo, com o título "Comunidade das Bandeiras", da autoria de João Henrique, dado pelo Brasil; há peças decorativas de cerâmica de Sargadelos de Dom Quixote e Sancho Pança, que o reino de Espanha ofereceu a António Costa; mas também há um faqueiro Cutipol para quatro pessoas que a Câmara Municipal de Guimarães deu ao primeiro-ministro, do modelo Goa Blue Gold.

O reino do Qatar tem uma predileção especial por relógios: ofereceu vários de marcas luxuosas aos membros do gabinete de Costa, enquanto para o primeiro-ministro ofertou uma caixa com um relógio de secretária. Estão guardados nas respetivas caixas no armário do edifício da Gomes Teixeira.

Uma escultura de figura humana de madeira preta, de artesanato moçambicano, decora o gabinete da ministra da Presidência e da Modernização Administrativa, Maria Manuel Leitão Marques, a quem foi oferecida pela República de Moçambique. Um tabuleiro de xadrez ofertado pela República do Paraguai a António Costa já esteve exposto na entrada do edifício da Presidência do Conselho de Ministros.

As ofertas utilitárias não têm, por enquanto, utilidade - há um telemóvel enfiado no armário. Só no caso do drone Phantom 3 Advanced já foi atribuído um destino: a Polícia Marítima vai recebê-lo em breve, para auxiliar na sua tarefa de fiscalização e policiamento. As duas prendas têm origem chinesa.

No caso de bens perecíveis, são encaminhados para instituições de solidariedade social. O Centro Social Paroquial São Francisco de Paula, em Lisboa, nas proximidades do Palácio das Necessidades, recebeu um cabaz de Natal que o consulado honorário de Portugal em Palm Coast, na Florida, ofereceu ao secretário de Estado das Comunidades Portuguesas.

Os embaixadores em Lisboa gostam de oferecer gravatas: o ministro Augusto Santos Silva recebeu uma Hermès do representante do Koweit (que também deu idênticas peças ao secretário de Estado da Internacionalização e ao chefe do Protocolo) e uma outra Salvatore Ferragamo do representante diplomático italiano.

Sir Ban Yas, do Abu Dhabi, surge identificado no registo de ofertas consultado pelo DN no MNE como o ofertante do fato árabe (uma túnica) ao ministro dos Negócios Estrangeiros. Percebe-se que esteja arrumado sem que se lhe dê uso. Também guardados estão os botões de punho e a mola de gravata Cartier que o ministro dos Negócios Estrangeiros do Azerbaijão ofertou ao seu homólogo português. Como na Presidência do Conselho de Ministros, no cofre do Instituto Diplomático, há ainda peças de escultura e estatuetas, quadros, jarras e jarrões.

Num futuro, estas peças poderão fazer parte do espólio de um eventual museu diplomático, mas por enquanto a ideia está no papel.

Para já, não é possível ver ao vivo estas ofertas, que por vezes parecem ter uma carga política. Numa altura em que as relações entre Lisboa e Luanda conhecem momentos tensos, o governo angolano ofereceu a Santos Silva uma estatueta de madeira do rei Ekuikui II, "símbolo da bravura e da coragem contra a ocupação colonial portuguesa". Subtilezas da diplomacia, só redimidas com a oferta de uma árvore à secretária de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Cooperação.

 

[artigo originalmente publicado no Diário de Notícias, a 25 de dezembro de 2017; na foto, relógio Maserati oferecido pelo Qatar, do arquivo Global Imagens]

Dezembro 18, 2023

E se celebrássemos o Natal como neste funeral?

Miguel Marujo

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As imagens que nos chegaram da Igreja de St. Mary of the Rosary, em Nenagh, Irlanda, deste dia 8 de dezembro, merecem que as guardemos: há aquelas de Nick Cave sentado ao piano, com a companhia de outros músicos, a cantar A Rainy Night in Soho, há um outro momento em que Glen Hansard e Lisa O’Neill interpretam Fairytale of New York, entre sorrisos e danças na plateia. E palmas, muitas palmas, num e noutro momento.

 

 

O funeral de Shane MacGowan, que morreu no dia 30 de novembro, foi uma festa, emotiva, como se ouve no piano e na voz de Nick Cave, e uma verdadeira celebração da vida, quando se vê a alegria de quem chora um dos seus na mais bela canção de Natal que é Fairytale of New York. Este funeral do vocalista da banda irlandesa The Pogues, que tinha nascido no dia de Natal de 1957, só podia ser assim: a vida celebrada pela música e pela dança. Um bonito tempo de Advento.

 

 

Já sabemos como é: este tempo que antecipa o Natal leva-nos a uma correria por entre as luzes, compras, jantares, fogareiros de castanhas, demasiados carros e a inevitável chuva. E em cada esquina, cada canto, cada loja, tropeçamos numa torrente de canções de Natal, debitadas muitas vezes em decibéis desproporcionados.

O mais difícil no Advento é conseguir escapar a All I Want For Christmas is You, a canção de Mariah Carey que nos apanha desprevenidos na rádio ou no shopping – e há concursos pela net a ver quem está mais tempo sem ouvir este tema de 1994. No meu concurso pessoal junto outra canção, já de 1984, Last Christmas, dos Wham!, e aqueles versos iniciais que me fazem sair do sítio onde estou: Last Christmas I gave you my heart/ But the very next day you gave it away/ This year, to save me from tears

Desculpem-me os fãs, mas para nos safarmos de lágrimas, este ano, podemos mesmo recuperar o exemplo do funeral de MacGowan e alinhar em escolhas menos óbvias para uma playlist que fuja a Mariah ou aos Wham!.

 

 

Podemos começar por recuperar os Pogues e dançar com Fairytale of New York. E para ouvirmos os clássicos de Natal, como Silent Night, Amazing Grace, o Holy Night, Let it Snow ou Jingle Bells, e tantos outros, o melhor cartão-de-visita é a irreverência de Sufjan Stevens, que em tempos publicou duas caixas com cinco discos, cada uma, e cerca de 100 canções, nas quais o americano ofereceu ao mundo o que já tinha dado aos seus familiares e amigos. Cansado de prendas sem sentido, fez o que sabe melhor: gravou temas de Natal em produções caseiras com que presenteou os seus e em 2006 e 2012 reuniu os discos para quem quisesse ouvir (é possível fazê-lo nos serviços de streaming). Como escreveu então a BBC, Sufjan Stevens tornou o Natal ainda melhor, entre polifonias e sussurros, no meio de explosões de alegria ou de um tempo melancólico, em que o tradicional encontra a mais estranha das excentricidades, como definiu um crítico.

Também o Vince Guaraldi Trio pegou nos clássicos e tocou-os como sabe tão bem em A Charlie Brown Christmas (1965). Sem excentricidades, mas também sem reverências, os Peanuts são conduzidos pelos ritmos do jazz num álbum que é uma pérola de Natal, recuperada em vinil nos anos mais recentes.

 

 

Regressando à pop, procuremos outra pérola: A Very Special Christmas (de 1987) propõe-nos sonoridades que vão do rock ao rap, trazendo-nos leituras mais ou menos reverenciais, como Santa Baby, um fascinante exercício pop de Madonna, os Run D.M.C. a dispararem Christmas in Hollis, os U2 a despacharem Christmas (Baby Please Come Home) ou Bruce Springsteen e a sua E Street Band a desejarem Merry Christmas Baby.

Se a música salva, o Natal não tem de ser um funeral de má música. Shane deixou-nos um belo testemunho, com Fairytale of New York, e com a alegria das suas cerimónias fúnebres.

 

[artigo originalmente publicado no Ponto SJ, em 15 de dezembro de 2023]

Dezembro 14, 2023

Tolentino Mendonça, aquele que foi bibliotecário do Vaticano

Miguel Marujo

Em julho de 2018, José Tolentino Mendonça foi nomeado bibliotecário e arquivista do Vaticano. Hoje é cardeal e prefeito do Dicastério para a Cultura e Educação, também no Vaticano. Em entrevista ao DN, o padre e poeta português - que já tinha orientado o retiro quaresmal do Papa, em fevereiro desse ano - recusou então a "lógica das influências" e falava da sede que desinstala. Hoje, quando é anunciada a atribuição do Prémio Pessoa 2023 a Tolentino Mendonça, recuperamos essa conversa de 2018.

 

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José Tolentino Mendonça estava convencido que orientava o retiro quaresmal do Papa - estávamos em fevereiro [de 2018] - e voltava ao seu trabalho em Lisboa. Mas Francisco desinstalou-o e chamou-o a Roma, agora, para ser o responsável da Biblioteca Vaticana e do Arquivo Secreto da Santa Sé, dando-lhe a dignidade de arcebispo.

Depois de ser o primeiro português a pregar os exercícios espirituais ao papa, Tolentino chegará a Roma recusando qualquer influência especial junto de Francisco. "Um retiro tem outra natureza, bem distante da lógica das influências. A voz que aqueles que fazem um retiro procuram não é certamente a do pregador. E mais. De uma forma despojada, nem é sequer a sua própria voz. A única voz importante é mesmo a de Deus que ressoa no silêncio do coração. Tudo o resto é acessório", confessou ao DN.

É esta lógica despojada com que responde sobre a sua nomeação. "Eu estava convencido que fazia o retiro e voltava ao meu trabalho em Lisboa, de que gostava muito."

O poder é uma tentação, notou o padre e poeta, no retiro de fevereiro, publicado em livro em abril (Elogio da Sede, ed. Quetzal). "O culto do poder faz do poder um ídolo, qualquer que ele seja", pregou Tolentino, apontando que é "um risco enorme" quando esse poder "deixa de ser claramente um serviço aos irmãos e se torna o delírio da autoafirmação e da autorreferencialidade". E recordou ao Papa e bispos que o ouviam nesse retiro: "Não devemos esquecer que Jesus se recusou determinantemente a ajoelhar-se perante Satanás, mas ajoelhou-se voluntariamente diante dos discípulos para lavar-lhes os pés."

Tolentino Mendonça foi à metáfora da sede para melhor "descrever a vida espiritual": a sede, respondeu ao DN, "volta sempre, desinstala-nos continuamente, faz de nós caminhantes em busca de uma fonte".

"A fé não é um estado de autossuficiência, mas pelo contrário: é uma aguda e por vezes dramática consciência da nossa pobreza, da nossa escassez que nos atira em confiança para a escuta de Deus", acrescentou. Para melhor olhar para o que tem sido este pontificado: "o Papa Francisco diz recorrentemente que um dos maiores perigos para a Igreja é a autorreferencialidade. Ele tem-nos desafiado a todos a tornarmo-nos sedentos, a vivermos com fome e sede de justiça, de misericórdia, de humanidade... E creio que este é um dos traços que tornam a sua figura tão marcante e inspiradora: percebermos rapidamente que ele faz da sua sede o seu tesouro. Onde é que o Papa alimenta e amplia essa sede? Não tenho dúvidas que a oração para ele é uma máquina de criar sede, mas também o é a leitura que ele faz dos sinais dos tempos ou a sua fidelidade à escuta dos pobres e das periferias."

O telefonema que comoveu o poeta

O modo de atuar de Francisco é de alguém que escuta, que tem sede de ouvir. "Ele é um Papa que defende muito a prática da sinodalidade. Seja com os bispos. E, por exemplo, no sínodo da família, o primeiro pedido que ele fez aos bispos foi que falassem e discutissem abertamente todas as questões. Seja com os fiéis, a quem estimula a uma participação mais ativa. Seja com as periferias sociais e existenciais, cuja voz ele tem a solicitude por escutar e trazer para o centro da reflexão", notou Tolentino.

A reflexão do padre português chegou a todos através da publicação do livro, abrindo a porta a que outros se aproximem desta fonte, um caminho que Francisco também tem proposto. "Tenho uma amiga que tem uma livraria, que é completamente agnóstica, e que, há dias, me surpreendeu. "Quero dizer-te uma coisa" - disse-me ela. "O Papa Francisco é a única voz verdadeiramente humana que hoje se faz ouvir no mundo". Não há dúvida que o Papa Francisco é um grande mestre de humanidade, num tempo em que os mestres escasseiam. E é muito escutado também fora do espaço eclesial", concordou Tolentino.

As pregações reunidas em livro também já têm edição em italiano, que o Papa já viu. "Bem, Elogio da Sede começou por ser uma espécie audiolivro (risos), pois reúne as meditações que o Papa ouviu no retiro da quaresma passada. Mas, sim. Enviei a edição do livro em italiano ao Papa Francisco e ele telefonou-me depois a agradecer, coisa que muito me comoveu."

Tolentino começará em 1 de setembro [de 2018], nas suas novas funções. O 48º bibliotecário espera aprender com os seus trabalhadores. "Estou entusiasmado. Não nos faltará que fazer."

 

[artigo originalmente publicado no DN, em 1 de julho de 2018, com o título "Tolentino Mendonça: O 48.º bibliotecário do Vaticano"; foto de Ricardo Perna/Família Cristã]

Dezembro 04, 2023

Há bar aberto nos céus da música

Miguel Marujo

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Dois nomes maiores irlandeses da música deixaram-nos em 2023. Depois da morte de Sinéad O’Connor, em julho, agora foi Shane MacGowan, o poeta de dentes podres e de voz inconfundível que, entre copos de whiskey, cerveja preta e muitos cigarros, compôs com a sua banda The Pogues belas canções rock de travo folk irlandês, como Dirty Old Town, Rainy Night in Soho, The Band Played Waltzing Matilda, If I Should Fall from Grace with God, ou a mais bela canção de Natal, Fairytale of New York, num dueto com Kirsty MacColl. A lista peca por muito incompleta.

Nascido a 25 de dezembro de 1957, Shane MacGowan morreu esta quinta-feira, dia 30 de novembro, às 3h30, com 65 anos, depois de um longo período doente. Foi a mulher Victoria que o anunciou nas redes sociais. “Shane será sempre a luz que tenho diante de mim e a medida dos meus sonhos e o amor da minha vida… Sinto-me abençoada, para lá das palavras, por tê-lo conhecido e o ter amado e por ter sido tão infinita e incondicionalmente amada por ele”, escreveu.

Os Pogues de Shane MacGowan foram um punk feito poema de amor, inspirando-se em influências maiores nos inícios dos anos 80, dos Clash a Tom Waits, ou no ativismo político e social de um Billy Bragg, e inscrevendo-se numa linhagem de músicos que souberam revitalizar a tradição musical irlandesa, como Van Morrison, The Dubliners — com quem também gravaram juntos Irish Rover ou Whiskey in the jar, entre outros temas — ou The Chieftains. Mas Shane imprimiu nos seus poemas uma dose saudável de literatura, mitologia e Bíblia, como descreveu Laura Snapes, no jornal The Guardian, sem nunca abdicar de uma forte leitura política e social.

Remexeram nas raízes, puxaram da raiva e da emoção e deram de beber a um público acomodado na pop, explicava-se Shane, à New Musical Express, em 1983, citado no artigo do Guardian. Daí uma sonoridade de banjos e harmónicas, gaitas de foles e acordeões, que pedia sempre festa e muitos copos, com piscadelas de olho a outras geografias, como em Turkish Song of the Damned ou no delírio acelerado de Fiesta.

Dos sete discos de originais da banda (os dois últimos já sem Shane), Rum, Sodomy and The Lash é a obra essencial de uma genial discografia, que se foi afundando na adição cada vez mais descontrolada de Shane no álcool e nas drogas. Os relatos de concertos em Lisboa e Porto, de finais dos 1980, demoram-se na descrição de equilíbrios improváveis em palco e de um anel desaparecido.

Despedido da sua banda, no início dos 1990, MacGowan ensaiou regressos com os The Popes, sem a lucidez e o sucesso dos Pogues, ou em duetos e participações especiais. Em 1992, Nick Cave estendeu-lhe a mão para uma versão deliciosa de What a Wonderful World, num single acompanhado de duas versões de Lucy e Rainy Night in Soho. E em 1994, Sinéad juntou-se a Shane e aos Popes para cantarem Haunted. “I want to be haunted by the ghost/ of your precious love”, diziam um ao outro. Assombrados pelo fantasma de um amor precioso e maior — a música que fica, neste caso.

 

P.S. — Depois de ter escrito este texto, tropecei numa carta em que, interpelado por um leitor dos seus Red Hand Files, Nick Cave evoca Sinéad e Shane: "Sinéad disse uma vez sobre Shane: ‘Ele é um anjo. Um anjo de verdade’. Se é esse o caso ou não, quem é que pode dizer? Mas Shane foi abençoado com um espírito incomum de bondade e um profundo sentido do que é verdade, que foi estranhamente amplificado na sua fragilidade, na sua humanidade. Podemos dizer dele com toda a certeza: ‘ele era amado na terra’, e de Sinéad também — ambos verdadeiramente amados e de quem temos muitas saudades."

 

[artigo originalmente publicado no 7Margens, a 1 de dezembro de 2023; foto de Andrew Catlin, publicada no site oficial de Shane]

Novembro 29, 2023

Muito lá de casa

Miguel Marujo

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Sozinho em palco, Francisco Sassetti pega em Home, o seu primeiro trabalho a solo, e conta-nos a ideia de cada tema, a imagem que acompanhou o compositor e pianista na feitura de cada música, um céu estrelado, como em Nocturne I, ou um salão de baile em fim de festa, com os copos vazios pelas mesas e um homem ali sozinho, em Goodbye.

Home (o tema-título) é um regresso à casa em que nos sentimos de facto em casa, e no palco e no disco, Sassetti faz isso mesmo, mete-nos dentro da sua sala de estar, a ouvir as gargalhadas da mulher, o filho a libertar a princesa das garras de um dragão, por entre uma floresta tenebrosa, e os sonhos da filha.

No disco há também assumidamente Bernardo Sassetti, o irmão de Francisco que morreu em 2012: Inocência I e Inocência II recuperam composições de Bernardo, para uma citação que vai mais além, com Francisco a notar a profunda tristeza desta última versão, que (no concerto) dedicou às mães palestinianas e israelitas e aos pais russos e ucranianos, que veem morrer os seus filhos na guerra. “Podia chamar-se Desolação…”

“Na realidade, a maioria dos temas já tem cerca de dez anos. Depois da morte do meu irmão, em 2012, comecei a compor compulsivamente, quase como se quisesse continuar a obra dele, tão tragicamente deixada a meio. Era uma forma de lamento e, também, um espaço de paz e silêncio. Por outro lado, o exigente trabalho como concertista e professor (na Escola Superior de Música de Lisboa e na Orquestra Metropolitana, entre outras instituições) não me deixava muito tempo para terminar as composições, o que, entretanto, consegui”, revelou Francisco Sassetti.

Este disco – apresentado numa versão mais curta numa breve digressão de quatro datas com o belga Wim Mertens e que será revelado brevemente, na íntegra, em Lisboa – é mais do que aquilo que se ouviu em Leiria (e em Lisboa, Porto e Espinho). Há um espaço de paz e silêncio que se reconhece nos fraseados que Francisco traz neste disco, que (pasme-se) é a sua primeira obra a solo. Há novas composições a serem trabalhadas, promete Sassetti, mas por agora é em casa que nos sentimos com este Home.

 

Foto: Rita Carmo (disponibilizada no site oficial de Francisco Sassetti). Artigo originalmente no 7Margens, em 22 de novembro de 2023.

Novembro 21, 2023

Um senhor calhamaço para melhor compreender o país

Miguel Marujo

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O peso deste O Essencial da Política Portuguesa não se fica pela sua dimensão. É de facto uma obra essencial para compreender Portugal quando a democracia já tem mais anos de vida do que a ditadura e se prepara para cumprir 50 anos. (Foto © Miguel Marujo)

 

 

É essencial este livro do “essencial da política portuguesa”, um senhor calhamaço de 934 páginas, com organização de Jorge M. Fernandes, Pedro C. Magalhães e António Costa Pinto. Trata-se da edição portuguesa do Oxford Handbook of Portuguese Politics, que em boa hora a Tinta-da-China trouxe à estampa em língua portuguesa, com a contribuição de 68 investigadores.

O peso deste livro não se fica pela sua dimensão. É de facto uma obra essencial para compreender Portugal quando a democracia já tem mais anos de vida do que a ditadura e se prepara para cumprir 50 anos. No prefácio à edição, Gonçalo Saraiva Matias e João Tiago Gaspar, responsáveis da FFMS – Fundação Francisco Manuel dos Santos (que apoiou o projeto), notam que “a democracia portuguesa, tal como a generalidade das chamadas ‘democracias liberais’, enfrenta desafios consideráveis à sua estabilidade e autoridade e, portanto, à sua própria sobrevivência”.

Este livro (48 capítulos, tantos como os anos da ditadura) ajuda a caminhar por entre os desafios que a democracia experimenta, como movimentos e partidos populistas, a participação cada vez menor de cidadãos e a própria erosão dos princípios e valores democráticos, como identificam os autores do prefácio. A estas ameaças, os organizadores de O Essencial da Política Portuguesa somam os “enormes desafios às perspetivas de desenvolvimento de Portugal”, colocando no “centro deste livro” a “economia política e as dimensões políticas subjacentes a estes desafios”.

Não é coisa pouca, e os autores assumem a empreitada como tal: o livro “tem a ambição de se tornar a referência em Portugal e o seu sistema político”, com um alvo mais especializado identificado – “cientistas políticos, economistas, historiadores e sociólogos”.

Não se assuste o leitor que não vista uma destas camisas. Apesar do tom e do rigor académicos, há (como se aponta) uma “grande diversidade de análises e de dados”, que permitem, também ao leitor “comum”, ler e refletir sobre o percurso exaustivo de uma sociedade que aprendeu a viver a democracia, e em democracia, e fazem deste Essencial… uma obra de consulta obrigatória quando se quer estudar e pensar o país, entre o passado e o presente.

Se hoje a investigação nas ciências sociais portuguesas permite esta “visão abrangente, atualizada e sistemática como nunca”, é pena que a apresentação de cada investigador (com exceção dos três organizadores) se limite a uma linha que explica o lugar académico de origem de cada autor. A diversidade de autores é também política, e vale a pena ao leitor perceber o quadro em que se move o investigador.

Esta é, no entanto, uma falta menor perante a dimensão e a ambição deste projeto, que permite um retrato minucioso (e muito atualizado) nas mais variadas áreas. É, por exemplo, pertinente a abordagem cronológica sobre “as relações entre a Igreja Católica e o poder político em Portugal”, por Madalena Meyer Resende, onde se aponta “a peculiar reserva da hierarquia católica nas suas relações com o campo político”, desde logo “condicionada” pela “sua natureza de instituição religiosa” e também pela sua intensa cooperação e interligação com o Estado”.

As etapas da democratização, a transição para a liberdade religiosa, incluindo a lei de 2001 e a nova Concordata de 2004, a liberalização das leis morais, com a despenalização do aborto, e os cortes de financiamento público nos contratos de associação com o ensino particular, acabaram por traduzir-se num declínio do peso político da Igreja, apesar do apoio social à Igreja e à sua autoridade moral parecerem mais elevados do que noutros países do Sul da Europa.

Este é um exemplo breve (entre os 48 capítulos) da diversidade de leituras sobre a atual sociedade portuguesa. Já se disse: O Essencial da Política Portuguesa é uma obra essencial.

 

O Essencial da Política Portuguesa
Jorge M. Fernandes, Pedro C. Magalhães e António Costa Pinto (org.)
Tinta-da-China, 934 pp., 34,90€

[Texto originalmente publicado no 7Margens, em 29 de outubro de 2023; foto MM]

Outubro 23, 2023

As mães conseguirão fazer-se ouvir?

Miguel Marujo

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Há mulheres, muitas, que marcham, vestidas de branco, lado a lado, sorridentes, em festa – e fazem-no pela paz. São quatro mil, duas mil israelitas, duas mil palestinianas, que caminharam em direção a Jerusalém, para pedirem a paz numa terra a que muitos chamam santa e vive em estado (quase) permanente de guerra e conflito.

Estávamos em 2016, há sete anos, no dia 19 de outubro, e aquelas mulheres tomaram em mãos a vontade de muitas e muitos naquelas terras do Médio Oriente – a de lutar pela paz sem armas nas mãos. Partiram a 4 de outubro de Qasr el Yahud (a norte do Mar Morto) na “Marcha da Esperança”, até Jerusalém.

A cantora e compositora israelita, também ativista por esta causa, Yael Deckelbaum, juntou-se a esse grupo de mulheres, apresentadas como “corajosas”, que se tinham unido no movimento Women Wage Peace, quando em 2014 se registou uma escalada no conflito, com mais um episódio de guerra entre israelitas e palestinianos. A operação militar de então recebeu o nome de Tzuk Eitan, pelo lado israelita – e os objetivos enunciados na boca de políticos foi muito semelhante ao de agora. 

Yael Deckelbaum juntou-se então a essas mulheres – incluindo Lubna Salame, Miriam Toukan, e também Daniel Rubin, nas principais vozes – , para cantar Prayer Of The Mothers (“Oração das Mães”), em hebraico, árabe e inglês.

As marchas foram acompanhadas pela Nobel da Paz, Leymah Gbowee, que conseguiu conduzir a Libéria à paz, pondo um ponto final da guerra civil, em 2003, pela força conjunta de mulheres. Na música, Yael incluiu uma gravação de Leymah, em que esta deixa um veemente apelo à paz.

A mensagem permanece mais atual do que nunca. “Do norte ao sul, do oeste para o leste, ouçam a oração das mães, tragam-lhes paz.” Ouvirão os senhores da guerra este apelo?

 


[artigo originalmente publicado ontem no 7Margens, dia 22 de outubro de 2023; 
imagem do vídeo de Yael Deckelbaum, Prayer Of The Mothers (Oração das Mães)]

 

Outubro 22, 2023

Coração partido: o regresso de Nick Cave

Miguel Marujo

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Nick Cave está de regresso à gravação de um álbum com os seus Bad Seeds, depois de Ghosteen (2019). A notícia foi dada pelo próprio, em The Red Hand Files, o site que alimenta com respostas à correspondência dos seus fãs. Numa carta publicada a 15 de maio, Nick Cave anuncia “algumas semanas de folga” do site por, a partir desse dia, entrar em estúdio e trabalhar “nas músicas do novo disco do Bad Seeds”.

Antecipando que “as músicas estão a soar ótimas”, o compositor, cantor e músico australiano, há muito radicado na Grã-Bretanha, não desvela muito mais sobre como vai ser esse disco. Neste intervalo, Nick não tem estado parado: gravou sozinho, numa emissão ao vivo por streaming, o disco Idiot Prayer (Nick Cave Alone at Alexandra Palace), em plena pandemia (2020), escreveu o libreto para uma ópera de câmara do belga Nicholas Lens, L.I.T.A.N.I.E.S (2020), juntou-se a Warren Ellis, seu companheiro nos Bad Seeds, para gravar um dos grandes álbuns do ano de 2021, Carnage, e acompanhou o mesmo Ellis em três bandas sonoras: La Panthère des neiges (2021), Dahmer — Monster: The Jeffrey Dahmer Story e Blonde (ambas em 2022); reuniu os seus B-Sides & Rarities Part II (2021), com os Bad Seeds; por fim, escreveu e leu Seven Psalms (2022) num disco tão breve quanto intenso. E ainda teve tempo para uma longa conversa em livro, com o jornalista Seán O’Hagan, cujo título é uma perfeita síntese da vida, obra e música de Nick Cave: Fé, Esperança e Carnificina (ed. Relógio d’Água, 2022).  No meio disto tudo, passou por duas vezes no verão do ano passado pelos palcos do Porto e de Lisboa.

Respiremos: este enunciado burocrático quase esconde o caminho que Cave tem feito, nestes anos mais recentes, no qual parece ter pressa em dialogar com Deus. O músico perdeu dois filhos nos últimos anos, e — a partir da morte de Arthur, em 2015, aos 15 anos — a sua criação artística assemelhou-se a uma erupção violenta em que assomam o amor, a dor, a morte e Deus. Se estes eram temas já recorrentes na sua obra, agora Nick Cave sintetiza o que o guia: “Assumi, por razões de sobrevivência, um compromisso com a natureza incerta do mundo. É aqui que o meu coração está.”

No livro Fé, Esperança e Carnificina, o australiano reconhece: “As canções que escrevo hoje em dia tendem a ser canções religiosas no sentido mais lato do termo. Essas canções comportam-se como se Deus existisse. Essencialmente, argumentam a favor da própria crença, pese embora sejam às vezes ambivalentes ou inconsistentes quanto à existência de Deus.”

E que Deus é este, então? Há tempos, na troca de correspondência com os fãs, à pergunta “o que é Deus?”, a resposta foi assertiva: “Deus é amor”, adiantando que é por isso que sente “dificuldade” em relacionar-se “com a posição ateísta”. E demora-se a explicar: “Cada um de nós, mesmo os mais resistentes espiritualmente, anseia por amor, quer percebamos ou não. E esse anseio chama-nos para sempre em direção ao seu objetivo — que devemos amarmo-nos uns aos outros. Devemos amarmo-nos uns aos outros. E principalmente acho que o fazemos — ou vivemos muito próximos dessa ideia, porque quase não há distância entre um sentimento de neutralidade em relação ao mundo e um amor crucial por ele, quase nenhuma distância de todo. Tudo o que é necessário para passar da indiferença ao amor é ter os nossos corações partidos. O coração parte-se e o mundo explode diante de nós como uma revelação.”

O coração partido revela-se de muitos modos. E neste caso salva — como a música, já se sabe. “Para mim, a canção de amor existe, em última análise, para preencher o silêncio entre nós e Deus, para diminuir a distância entre o temporal e o divino.”

 

Texto originalmente publicado no Ponto SJ, a 2 de junho de 2023. Fotografia: Raph_PH (NickCaveCroydon040921 (4 of 41) | Raph_PH | Flickr)

Outubro 19, 2023

Os artifícios dos artífices

Miguel Marujo

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Está instalado o debate – e o medo e a incerteza e a ignorância e a excitação. Tudo à vez, e tudo em separado: a inteligência artificial, que já anda cá há bastante tempo, irrompeu no nosso quotidiano como uma ferramenta ao alcance de todos. Já não é da ordem da ficção, já não é uma coisa de filmes (AI – Inteligência Artificial, de Steven Spielberg, é de 2001), é obra para nos inquietar.

O ChatGPT é uma dessas ferramentas mais reconhecíveis, mas nestas coisas logo se multiplicam que nem cogumelos, e para todos os gostos: os imediatamente comestíveis, aqueles que exigem domínio, nas mais variadas áreas. Filmes, canções, entradas de enciclopédia, até livros ou notícias, eventualmente remissões e orações, são passíveis de criação pela chamada inteligência artificial.

Perante este novo mundo, fica a dúvida se será admirável, como descrevia Aldous Huxley em 1932. Antecipa-se a extinção de profissões, uma artificialização da criação. Será assim? Um dos mais estimulantes criadores modernos na música atual, o islandês Ólafur Arnalds, que faz uso abundante de maquinaria e sons eletrónicos, mesmo nas suas produções mais ambientais ou sinfónicas (só para facilitar a leitura), enfrenta a questão, numa conversa no final de um concerto registado na paisagem seca de Hafursey, um inselbergue na Islândia.

Para um compositor que afasta a vontade de se aborrecer a fazer o que faz e ficar amarrado a uma só coisa, a inteligência artificial “começa a tornar-se um problema”. “Já se está a tornar um problema, mas é mais um problema para a indústria do que para mim, enquanto artista.”

Ólafur Arnalds explica aquilo que é a diferença entre cópia e o criador. “A arte não é apenas a música, tem de ter um sentido, tem de ter um propósito. Claro que a inteligência artificial pode copiar a minha música dentro de cinco anos, mas a inteligência artificial não está a tentar dizer-te nada, não tem nenhuma mensagem para ti, é só uma cópia, não há nenhuma originalidade, não há qualquer substância nem nenhum sentido — e isso é o que procuramos na música, é uma ligação humana, do que sentimos através das mensagens e das expressões, do que vivemos, como eu a tocar o piano aqui, é uma ligação entre mim e ti. A inteligência artificial é apenas uma cópia disto tudo.”

(O islandês fala sempre em “AI”, acrónimo para inteligência artificial, sem necessidade de tradução. Até com este artifício, a inteligência artificial parece querer poupar-nos tempo, simplificando…)

Um fã de Nick Cave — e desculpem-me regressar a ele, mas por estes tempos o músico australiano é também um dos mais interessantes a refletir sobre a arte e a criação — propôs-lhe uma letra “à Nick Cave”, feita com recurso ao ChatGPT. Para o frontman dos Bad Seeds, esta letra é “uma porcaria”. Cave notou, nesse texto de 17 de janeiro, que “o ChatGPT está apenas na sua infância, mas talvez esse seja o horror emergente da IA — o de que estará sempre na sua infância, pois terá que ir sempre mais longe e essa direção é sempre para frente, sempre mais rápida. Nunca pode ser revertida ou desacelerada, pois move-nos em direção a um futuro utópico, talvez, ou à nossa destruição total. Quem pode dizer qual?” À sua questão, Nick antecipa a resposta: “A julgar por essa música ‘ao estilo de Nick Cave’, não parece bom.” assume: “O apocalipse está a caminho. Essa música é uma porcaria.”

Mais tarde, em março, numa entrevista à New Yorker, Nick Cave surpreende-se por “haver pessoas inteligentes que acham o ato criativo tão mundano, que pode ser replicado por uma máquina”. “Sinto-me insultado por isso.” Para este artífice da música, os artifícios da criação são outros: “Não há nenhum motivo para se inventar uma tecnologia que possa imitar o ato criativo mais belo e misterioso. Especialmente no que toca a escrever canções. O que há de bom em compor uma canção, é que te diz algo sobre ti que não sabias antes. Não dá para imitar isso.”

Num futuro próximo, já ao virar da esquina, o caminho da criação e da criatividade poderá tropeçar em muita fake art ou em mais fake news. Mas nenhuma inteligência artificial substituirá a visceralidade das composições de Ólafur Arnalds ou Nick Cave, e de tantos e tantos outros artífices. Nada mais óbvio, nada mais humano.

 

Texto originalmente publicado no Ponto SJ, a 15 de setembro de 2023.

 

Outubro 17, 2023

Virginia Astley convida-nos para um passeio no campo. E deixa-nos uma promessa

Miguel Marujo

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O convite chegou por email – Virginia Astley anunciava (para o último domingo, dia 15) uma Listening Party do seu novo disco, apresentado na véspera de surpresa, na sua página no Bandcamp. The Singing Places é o título para um conjunto de composições que encontra fortes ecos na sonoridade encantatória de From Gardens Where We Feel Secure, obra-prima absoluta de 1983. 

Quarenta anos depois, os jardins dão lugar a singing places, um termo que a compositora e música britânica usa “para lugares que têm uma ressonância particular — seja emocional ou acústica, ou ambas!” 

Esta foi uma das breves explicações de Virginia Astley às perguntas que lhe foram sendo colocadas, ao longo da audição do (curto) disco de 26’30”, por fãs visivelmente entusiasmados – com o trabalho atual e, sobretudo, com as memórias de obras antigas. Havia aqueles que diziam estar a preparar-se para dormir, havia quem fizesse o jantar, quem escrevesse de Nápoles, em Itália, ou algures no americano Milwaukee, numa tarde em que a chuva tinha parado momentos antes.

As palavras eram sobretudo de alegria pelo novo trabalho – e a quem perguntou por uma eventual edição física, Virginia Astley prometeu: “Estou a planear lançar The Singing Places em CD e vinil.” A audição conjunta foi uma forma de perceber como reagiam os ouvintes ao novo trabalho, confessou a própria.

Virginia deixou ainda outra promessa, quando questionada por mim sobre se pensa gravar um disco de canções, como o notável Hope In a Darkened Heart (1986), no qual participaram David Sylvian e Ryuichi Sakamoto: “Eu gostaria muito de fazer novamente um álbum de músicas!” 

Na sua serenidade deliciosa, The Singing Places percorre os melancólicos caminhos familiares de From Gardens… Há pássaros que voam, os sinos da abadia de Dorchester, as águas de um rio, a chuva provavelmente gravada em Lechlade – quase se adivinha um outono de folhas caídas, naquelas margens. “As gravações de campo foram feitas em primeiro lugar”, explicou Astley. “A música é então escrita em torno delas.” A primeira gravação no terreno foi realizada em Moulsford, Oxfordshire. O campo impregna-se, por entre a trompa barítono, a harpa da filha Florence ou harmónios. Quando se ouvem pássaros, é Virginia que se entusiasma, explicando aos seus ouvintes: “Os abibes que estão a chegar são de Shifford.”

É também Astley que enquadra a imagem da capa: “A capa do álbum é Kelmscott – foi aqui que [o poeta e romancista inglês] William Morris viveu, o seu paraíso na terra.” Se há um qualquer paraíso na terra, o trabalho de Virginia Astley vai escrevendo parte da sua banda sonora. E o outono mora aqui.

 

Artigo originalmente publicado no Sete Margens, em 16 de outubro de 2023. Foto: “A capa do álbum é Kelmscott – foi aqui que [o poeta e romancista inglês] William Morris viveu, o seu paraíso na terra”, explicou Virginia Astley.

 

Outubro 16, 2023

“Religião & Panque Roque”, entre o palco e o púlpito

Miguel Marujo

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Os gostos discutem-se, não se impõem, que é coisa diferente. Mas, na hora da verdade, acabamos por querer impor os gostos uns aos outros, “tens de ouvir isto” – e gostar, subentende-se. A música tem esta coisa gregária de nos juntar a estranhos e mais ou menos conhecidos, para celebrar, em conjunto, aquelas palavras e aqueles sons. Mas quando ouço falar em música cristã, a minha tentação é de fugir como o diabo da cruz. Não é por mal, é mesmo por gosto.

Nos dias da Jornada Mundial da Juventude, em agosto, pude ir confirmando aqui e ali a minha tese: no palco, havia púlpito a mais, sem rasgo ou criatividade, num aceno a um pop-folk de guitarras dedilhadas e bateria dengosa (e todos, algures, transformaram Simon & Garfunkel e Bob Dylan em baladinhas com poesia de mastigação fácil) ou um rock-fm daquele que acha que os solos de guitarra se fizeram para se estenderem até ao céu, intermináveis. Tomo o todo pelas partes que ouvi, mas facilita ao que venho.

Ryan Tremblay veio a Lisboa, nos dias da JMJ, e diz de si e da música que faz que “é em parte testemunho e em parte convite para quem quiser ouvir”. Em agosto, à Agência Ecclesia, o cantor americano de Nashville confessava-se: “Uma vez um padre meu amigo disse-me: As tuas canções têm mais poder que as minhas homilias. Porque as pessoas não saem a cantar as minhas homilias, mas cantam as tuas canções”, explicava o músico americano. Fui ouvir. As homilias do padre amigo devem ser mesmo muito fraquinhas. Sem pôr em causa a sua entrega: “Rimo-nos frequentemente, temos grande alegria no que fazemos e esforçamo-nos por criar uma atmosfera onde todos os presentes, incluindo nós, se possam lembrar de deixar um pequeno espaço nas nossas vidas para que a graça de Deus nos inunde mais uma vez. Esse é o objetivo de cada apresentação.”

Apesar da transcendência que se sente, a solução não é o regresso ao canto gregoriano, a Bach, Mozart, Monteverdi ou Brahms — ou apenas reutilizar a fórmula de Taizé, que traz uma beleza muito própria. A solução talvez seja mesmo seguir as pisadas de um grupo de gente com raízes em igrejas evangélicas. 

Com a graça de Deus, vários músicos apresentaram-se em pleno século XXI a meio caminho entre o palco e o púlpito: assumidamente cristãos, acolitaram-se na editora FlorCaveira, com o mote “Religião & Panque Roque”, fundada por um pastor batista, Tiago Cavaco, e pelo seu amigo Samuel Úria. A sua carteira de edições é muito respeitável: Tiago Cavaco, que já assinou como Tiago Guillul e integra Os Lacraus e outros projetos, mas também Úria, Jónatas Pires, Manuel Fúria, Diabo na Cruz, B Fachada, João Coração ou Os Pontos Negros, entre outros. Há coletâneas com títulos deliciosos como Cinco Subsídios para o Panque-Roque do Senhor ou Karaoke no Mundo das Trevas, um “novo disco no dia da Reforma”, que se antecipava como “o disco, em forma de cassete, [que] sai no dia 31 de outubro [e] que é tanto Halloween como Reforma Protestante”. 

Há uma certa heresia na ortodoxia destes evangélicos, na música e nas palavras: guitarras em distorção, canções mais gritadas que cantadas, vozes que sussurram amores impossíveis ou recordam as chamas do inferno, temas que dão pelo nome de Toca Xutos ou Salmo 20, Um coração partido é um coração curado ou Sinal da Cruz Invertida, ou versos que nos dizem “Conheci um velho chamado Nicodemos”. Lutero levantou-se de novo para promover uma reforma na música feita por cristãos.

 

 

O “trovador de patilhas”, como a própria editora descreve Samuel Úria, confessava numa entrevista para uma tese académica, em 2017: “Eu, apesar de ser duma religião protestante evangélica, não sou evangélico na minha música, mas a minha música reflete naturalmente aquilo que eu sou. A minha preocupação quando estou a escrever canções é ser fiel.” E ensaiava um credo novo, ao recusar uma possível contradição entre os princípios do punk e a condição de protestante batista: “No final do século XX e início do século XXI, não há nada de mais anti-establishment do que uma pessoa falar abertamente das suas crenças e assumir-se dependente duma entidade superior. Nos nossos dias, possivelmente, este é o ato mais rebelde que se pode ter. E, por isso mesmo, é até olhado de lado, com alguma desconfiança. Embora isso hoje já esteja mais esbatido, a verdade é que eu próprio, durante algum tempo, senti bastante essa desconfiança. Portanto, não há nada mais punk, mais rebelde, do que remontar àquilo que, para muitas pessoas, é uma espécie de atitude e de ideário ultrapassados.”

Com Tiago Cavaco é um pouco diferente, mais prosélito. Tiago desce do púlpito da sua igreja para subir ao palco e converter os ouvidos de incautos e incréus. Apresentado, no seu perfil do Spotify, como um “pregador gospel do punk rock, falso tatuador, escritor português aspirante a americano, [que] começou a ensaiar as suas péssimas primeiras bandas grunge em 1992 [e] nunca mais parou. Em 1999 ele e alguns amigos criaram o selo FlorCaveira e desde então vêm fazendo discos, amigos e inimigos”. Haja fé. Como a que Samuel Úria professa: “As minhas questões de fé não são nem culturais, nem sociais. Eu simplesmente uso-as para fazer uma afirmação que julgo necessária.”

Talvez haja por aí alguma música dita católica que valha a pena, mas neste caso quis mesmo trazer-vos esta música que salta do púlpito para o palco, sem pedir licença, e entre a heresia e a ortodoxia nos põe a dançar e a pensar. E é isto que falta nas celebrações e missas católicas, como também nas iniciativas em que se pretende “passar uma mensagem”. Batam palmas na igreja.

 

Texto originalmente publicado no Ponto SJ, a 6 de outubro de 2023, com o títuloEntre o palco e o púlpito. Será que é recomendável a música (dita) cristã?, e republicado no SeteMargens com este título, a 15 de outubro. Na foto, retirada da página de Facebook da editora, músicos da FlorCaveira em palco (com Tiago Cavaco à direita). A editora define-se pelo mote “Religião & Panque Roque”.

Julho 12, 2023

Milan Kundera, a valsa do adeus

Miguel Marujo

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Milan Kundera foi a minha companhia na viagem de comboio por uma certa Europa em 1988, de Aveiro a Oostmalle. Aos 16 anos, tinha sede de ler A Insustentável Leveza do Ser, antes do filme com que me apaixonei por Juliette Binoche. O livro ficou-me, gravado também na memória pelas imagens de Philip Kaufman, e depois percorri as estantes dos irmãos mais velhos em busca de A Brincadeira, A Imortalidade, o Livro do Riso e do Esquecimento ou a Valsa do Adeus. Houve outros, e também houve aquele tempo em que Kundera passou a ser alguém que devorei na juventude. Há autores que nos fazem viajar. Até na sua morte. Esta noite, o céu apresentou-se assim. E eu terei de regressar aos seus livros.

 

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Junho 04, 2023

20 anos. É muito tempo, muitos dias, muitas horas... a escrevinhar

Miguel Marujo

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Há 20 anos, em 2003, cruzei-me com a Margarida Ferra no metro, que me falou com entusiasmo desse mundo novo que eram os blogues (ela que escrevia o bonito Ponto e Vírgula). Eram um fenómeno recente, havia umas quantas pessoas que já falavam disso nos meios de comunicação tradicionais, como Pacheco Pereira, que tinha iniciado o seu Abrupto, e mais uns jovens de direita que eram uma lufada de ar fresco numa direita órfã do Independente, Pedro Mexia, Pedro Lomba e João Pereira Coutinho, na Coluna Infame (que acabou com estrondo, seis dias depois de começar esta Cibertúlia) e outros de esquerda que faziam o Blog de Esquerda e com quem mais me identificava, pois claro.

A 4 de junho de 2003, depois da conversa entusiasmada no metro, resolvi experimentar como se fazia uma coisa dessas: inscrevi-me no blogspot e ensaiei uns rudimentos de html, e dei-lhe um nome. Cibertúlia. Foi este o nome que algures tínhamos (um grupo de amigos que gosta de falar de tudo e de nada) dado a uma troca regular de mails, nos finais dos anos 90, sobre tudo e sobre nada: foi aí que saudei o verão ("meus senhores, chegou o verão, minhas senhoras, obrigado"), foi aí que mantivemos intensa atividade em favor da independência de Timor-Leste… E em 2003, quando criei o blogue convoquei esses amigos. No início, uns quantos ainda escreveram por aqui, depois foi cada vez mais sendo o blogue de um só, mas sempre falando de tudo e de nada. 

A Cibertúlia saltou do blogspot para o Sapo, numa contratação digna de um qualquer CR7, sem milhões envolvidos. A Cibertúlia trouxe-me novos amigos, velhas amizades, polémicas acesas, piadas pelo tempo fora, músicas e filmes, livros e viagens, e um arquivo cheio de caracteres e imagens. (E algumas saltaram para outro blogue, entretanto acabado.) Hoje, este blogue junta os caracteres que escrevi no tempo de jornalismo e os que vou escrevendo aqui e acolá, daí a sua irregularidade.

A Cibertúlia faz hoje 20 anos. Parece uma eternidade — e no entanto é apenas um dia.